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Entrevistas

Fabian Nicieza, um dos pais de Deadpool

17 maio 2018

Numa entrevista exclusiva para o Universo HQ, o autor fala de sua carreira, método criativo e próximos projetos.

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Fabian Nicieza nasceu em 31 de dezembro de 1961 na cidade de Buenos Aires, na Argentina. Aos quatro anos de idade, se mudou para Nova Jersey, onde cresceu e estudou até a universidade, na qual se formou em Propaganda e Relações Públicas em 1983. Dois anos depois, passou a trabalhar na Marvel. Foi gerente publicitário e escrevia histórias esporádicas, até assumir o roteiro de Força Psi, um dos oito títulos mensais do Novo Universo Marvel, em 1988.

Em 1990, deu vida à série dos Novos Guerreiros, ao lado do artista Mark Bagley, e lá ficou até a edição # 53. Paralelamente, passou a escrever a revista dos Novos Mutantes, na qual, ao lado do desenhista Rob Liefeld, criou os personagens Deadpool e Shatterstar, além do título mensal que a substituiria, X-Force.

Então, em 1992, Nicieza passou a ser o roteirista oficial da revista X-Men. Entre idas e vindas à Marvel, também escreveu diversas histórias estreladas por Cable, Thunderbolts e o próprio Deadpool.

Na DC Comics, roteirizou Asa Noturna, Robin Vermelho e Legião dos Super-Heróis. A partir de 2002, Fabian passou a trabalhar na empresa de transmídia Starlight Runner Entertainment – inicialmente de forma paralela aos compromissos com diversas editoras de quadrinhos e, com o tempo, integralmente.

O site especializado Comic Vine atribui a ele 1217 créditos no mundo dos quadrinhos. Apesar de sua agenda lotada, o Universo HQ conseguiu realizar esta entrevista exclusiva com o autor, falando de sua carreira, opiniões, personagens e, claro, Deadpool nos quadrinhos e no cinema.

Fabian Nicieza

Universo HQ: O primeiro filme do Deadpool, em 2016, foi um grande sucesso de bilheteria no mundo inteiro, e Deadpool 2 está sendo lançado este mês. Como você se sente com relação ao impacto de sua criação fora das histórias em quadrinhos e o que podemos enxergar de Fabian Nicieza no primeiro longa-metragem?

Fabian Nicieza: É sempre muito bom ver algo em que nos envolvemos ganhar tanta vida própria, mas, como o Deadpool foi ganhando crescente visibilidade bem antes de chegar ao cinema, eu meio que estava emocionalmente preparado para o “próximo passo”, resultante do incrível sucesso do filme.

Quanto à minha “presença” no primeiro filme, acho que o fato de existir um primeiro, segundo ou qualquer filme com o personagem já é um dos meus elementos em si, uma vez que o humor, a personalidade e a tragédia do Wade Wilson foram aspectos que, no começo, nele desenvolvi e, acima de tudo, é o que mais agrada seus fãs.

UHQ: Boa parte dos seus tweets parecem ter sido escritos pelo Wade Wilson. Dá para dizer que o Deadpool é a mente cínica de Fabian Nicieza em um corpo de Rob Liefeld?

Nicieza: Sou eu mesmo que escrevo todos os meus tweets e, como a voz do Deadpool é criação minha, faz sentido que se vejam partes dele em mim (e vice-versa).

Enquanto o Wade é o Wade 24 horas por dia, o meu lado Deadpool só é visível para o público de vez em quando – embora sempre esteja presente.

The New Mutants # 98 Primeira aparição do Deadpool, em The New Mutants # 98

UHQ: Você passou longos períodos de tempo, de dois a cinco anos, em diversas revistas mensais. Qual é o segredo de tamanha dedicação e sobrevivência no ramo das HQs?

Nicieza: Eu duvido que sobreviveria tanto tempo atualmente! Acho que a maioria dos roteiristas não consegue mais fazer isso. Na minha opinião, mudou a lógica dos criadores porque, hoje, quem escreve para a Marvel ou a DC encara sua passagem como um trabalho de curto prazo, enquanto, na minha geração, preferíamos sair de um título só quando morrêssemos.

No passado, abandonei vários projetos por opção própria, como no caso dos Novos Guerreiros, Tropa Alfa e até mesmo os X-Men. E, em outros casos, contra a minha vontade (devido a demissões ou cancelamentos), como com X-Force, Thunderbolts e Robin Vermelho.

Nos quadrinhos mainstream, você raramente controla todos os aspectos de suas escolhas e, por isso, cada vez mais roteiristas estão optando por trabalhar com personagens dos quais são donos.

UHQ: Você trabalhou como gerente de publicidade da Marvel durante o período de maiores vendas no mercado direto. Como essa experiência o ajudou como roteirista de quadrinhos?

Nicieza: Talvez tenha me dado um foco bem mais comercial do que eu teria normalmente. Com frequência, eu escrevia “para vender” – criando histórias com o intuito de gerar empolgação, mistério e, às vezes, até mesmo ódio nos leitores.

Isso não é algo ruim em si, mas nos leva a “escrever visando um evento” – tentando gerar choque ou drama exagerado, mais para chamar atenção do que para elaborar histórias baseadas nos personagens ou tramas.

The New Warriors # 1Red Robin # 13

UHQ: Em uma entrevista de 2004, você afirmou que tentou ser Alan Moore quando escreveu os roteiros de Força Psi para o Novo Universo Marvel. É muito fácil, literalmente, enxergar as influências de um desenhista ou arte-finalista, mas não é o caso com roteiristas. Afinal, quais são as suas quando escreve?

Nicieza: Na época, eu quis dizer que estava tentando reproduzir a profundidade que Alan Moore imprime em suas obras. Aprendi bem depressa que não era tão bom assim para obter esse efeito e, por isso, abandonei aquela ideia maluca! :)

Eu não tenho “influências” de outros criadores. Acho que meu estilo deriva de escritores de romance e roteiristas de quadrinhos ou cinema, mas não consigo citar nenhum deles como referência direta para o meu trabalho.

Em última análise, meu estilo nos quadrinhos sempre foi uma síntese do que Stan Lee e Roy Thomas faziam nas primeiras histórias de super-heróis que eu li, além dos roteiristas das revistas que eu acompanhava nos anos 1970 e 1980.

UHQ: Naquela mesma entrevista, você disse que muitas pessoas o associam aos X-Men, mas que o material que produziu com esses personagens nem de longe serve de exemplo do seu verdadeiro estilo ou preferência de direção criativa. Seria por que os personagens já tinham muita bagagem histórica? Qual seria o seu método de trabalho na época?

Nicieza: Meus roteiros para os X-Men não servem de exemplo de preferência de estilo ou direção devido a uma combinação de vários fatores, mas principalmente por causa de uma relação de trabalho que, apesar de amigável, não contribuía para que eu obtivesse melhores resultados.

Trabalhar em uma família de títulos mensais, como é o caso dos X-Men, exige um esforço em grupo, mas Scott Lobdell possuía métodos criativos bem mais compatíveis com os do editor Bob Harras.

Scott é uma máquina de produzir ideias, jogando fora hoje as ideias de ontem e jogando fora amanhã as de hoje. Bob também trabalhava bem nesse contexto e não se sentia muito à vontade com planejamento a longo prazo.

Eu sou bem prático, e não o cara das “ideias e teorias”. Por isso, gosto de pegar uma ideia e planejar durante arcos de 4, 6 ou 12 edições, construindo o enredo por meio de subtramas etc.

Como resultado, eu rapidamente acabei isolado do processo, e isso não me ajudou muito a extrair o melhor de mim. Aqueles dois são meus amigos até hoje. Não foi nada pessoal, apenas abordagens diferentes do processo.

Psi-Force #9X-Men # 12

UHQ: Em 2011, você afirmou que revistas de equipes dão muito mais trabalho que as de personagens solo...

Nicieza: Essas revistas dão mais trabalho devido à natureza da quantidade de personagens envolvidos, cada um exigindo uma certa quantidade de tempo de exposição, de coordenar múltiplas tramas pessoais, elencos de apoio, e ao fato de que as ameaças que as equipes de heróis confrontam precisam ser gigantes ou, frequentemente, um grupo de supervilões, o que aumenta a complexidade de todos os fatores acima!

Isso exige mais trabalho na elaboração de tramas, ritmo narrativo, diálogos, tudo. Da mesma forma, quando se trabalha em uma revista de um supergrupo em evidência, apesar de envolver muito trabalho, costuma ser mais fácil, pois, a exemplo de todo malabarista experiente, você consegue manter várias bolas no ar com uma belíssima e graciosa coreografia.

UHQ: Juntando X-Men e X-Force, você escrevia duas das dez revistas mais vendidas de 1995. O que estava planejando para X-Force e acabou levando à sua saída dos dois títulos?

Nicieza: Eu nunca perco tempo pensando no que teria feito, e menos ainda com uma revista que não escrevo há mais de 25 anos. Para mim, isso é besteira. Só vale o que foi publicado e, para o bem ou para o mal, meus comentários são apenas sobre isso.

X-Force # 1X-Men # 45

UHQ: Em uma entrevista no final de 2017, você disse que não consegue pensar em um melhor exemplo das coisas em que acredita do que seu trabalho com os Novos Guerreiros. Por quê?

Nicieza: Aquela série mensal ajudou a me transformar de alguém que trabalhava no setor administrativo da Marvel (e tinha qualidade pra contar algumas histórias de vez em quando) no profissional que é reconhecido por outros roteiristas, artistas, editores, jornaleiros e leitores, como alguém com que podem contar, capaz de escrever histórias atraentes e vender gibis de primeira linha.

Isso, claro, quando falamos de negócios. Pelo lado criativo, a revista dos Novos Guerreiros me permitiu expressar e discutir várias das preocupações, confusões, conflitos e hipocrisias que os adolescentes veem no mundo, além de obrigar aqueles personagens tão jovens a encarar realidades bem adultas, diante das quais a paixão, as crenças e o senso de justiça só ajudam a resolver parte dos problemas.

UHQ: Em New Warriors # 8 (1991), a Namorita dá ao Nova uma das melhores explicações já vistas sobre as queimadas realizadas em florestas tropicais, contando os papéis dos fazendeiros, seringueiros, tribos, ecologistas e até do governo brasileiro. Sendo da Argentina, você sentiu a necessidade de conscientizar os leitores sobre a realidade da América Latina?

Nicieza: Não, de forma alguma. Eu somente tinha lido o suficiente sobre o assunto para saber que seria um tema relevante para os personagens, e queria que eles tivessem condições de expressar pontos de vista bem informados e engajados.

The New Mutants # 98Página de The New Mutants # 8

UHQ: Em novembro de 2017, C.B. Cebulski, o atual editor-chefe da Marvel, afirmou que “Nós precisamos refletir sobre o que está acontecendo no mundo, mas seria melhor se, às vezes, os heróis da Marvel não se politizassem demais ou refletissem as opiniões de seus roteiristas. É preciso encontrar um equilíbrio”. Como você compara essa nova tendência com as das gestões anteriores?

Nicieza: O equilíbrio sempre foi necessário e sempre esteve lá, desde a forma como se descreve os asiáticos durante a Segunda Guerra Mundial, passando por Stan Lee e Jack Kirby criando o primeiro super-herói africano, até o Estrela Polar, da Tropa Alfa, saindo do armário.

Às vezes, essas coisas são malfeitas; e em outras, realizadas de forma brilhante. O problema da Marvel não é tentar apresentar a diversidade em suas revistas.

Dá uma olhada na capa de New Warriors # 51, publicada em 1994, e depois vem falar comigo sobre diversidade. Na minha opinião, o problema é que eles estão perdendo tempo demais se dando tapinhas nas costas por fazer da diversidade o tema das histórias, em vez de simplesmente narrar aventuras que incluem diversidade.

UHQ: Quais foram os seus principais desafios ao converter o poema de Stan Lee God Woke (Deus Acordou) em uma graphic novel? Você se surpreendeu ao ganhar o Independent Book Publisher’s Award em 2017 por essa obra?

Nicieza: Foi um desafio na questão do formato, mas não na da narrativa. O poema é dos anos 1970 e a linguagem do Stan está ali na íntegra. Portanto, essa graphic novel contém uma dose tremenda de energia, empolgação, tristeza e esperança em seus versos.

Por isso mesmo, foi fácil traduzir palavras em imagens. Já acertar o ritmo, determinar quantas linhas ou palavras teria cada quadro, quantos quadros por página, garantir que a cadência do poema fluísse dentro da página e entre as páginas etc., isso constituiu o grande desafio do projeto, que nem por isso foi menos agradável.

O prêmio das editoras independentes foi uma surpresa muito bem-vinda. Como roteirista, eu não sou “tarado por prêmios”, mas fiquei superfeliz ao ver o incrível esforço de meu irmão Mariano, como editor e dono de uma pequena editora, ser reconhecido.

The New Gods # 51God Woke

UHQ: Na empresa de transmídia Starlight Runner Entertainment, vocês elaboram intricadas “Bíblias da Mitologia” de cada universo de personagens. Você empregava a mesma técnica para escrever histórias em quadrinhos, mesmo que de modo informal, não estruturado? Como a experiência nas HQs o ajuda nas suas responsabilidades como diretor de inovações da Starlight?

Nicieza: O trabalho na Starlight engloba todas as formas de escrever que já usei na vida e frequentemente as reúne em um só projeto, do jornalismo dos tempos de colégio aos ensaios na faculdade e aos textos publicitários na Marvel, sem esquecer os roteiros para séries de quadrinhos em constante expansão.

Tudo isso passa pelo filtro das necessidades do cliente e é coordenado com a visão dos criadores e responsáveis por algumas das maiores franquias do planeta.

Então, digamos que eu tenha uma rotina diária bem interessante…

UHQ: Jeff Gomez, diretor executivo da Starlight, nos disse a seu respeito: “Eu dependo dele para me manter com os pés no chão e garantir que estamos atendendo às necessidades do cliente (em vez de apenas seguir o nosso próprio gosto). Por isso, de vez em quando, temos discussões bem acaloradas!”. Na sua opinião, o que um aprendeu com o outro até agora?

Nicieza: Com o Jeff, aprendi a pensar mais profundamente sobre o DNA do conteúdo criativo, da concepção dos criadores à sua execução corporativa até como isso afeta o público. É muito esclarecedor acompanhar o trabalho criativo de forma tão acadêmica e intensa, mas também pode ser sufocante.

Acho que, nos últimos 20 anos, faltou Jeff aprender comigo que certas coisas são simples e objetivas, e nem sempre têm mais de um significado.

Starlight Runner Entertainment

UHQ: O que pode contar sobre seu mais recente projeto com quadrinhos, Outrage (Ultraje), produzido em parceria com o desenhista Reilly Brown?

Nicieza: Outrage é uma ideia que venho maturando há anos, mas tive preguiça demais para concretizar, além de estar procurando a plataforma correta para lançá-la. No Webtoon, site de quadrinhos digitais, eu e o Reilly encontramos o lugar certo na hora certa.

A ideia de criar um personagem que pega pesado com quem faz bullying na internet e lançar numa plataforma digital é perfeita. Até agora, já nos divertimos bastante, mas só concluímos ¼ do projeto.

Estamos naquela fase frustrante em que trabalhamos há meses, mas ninguém ainda viu nada. Por isso, fica aquela sensação de solidão e insegurança de que estamos trabalhando no vácuo.

Acho que o projeto é divertido, e vai ter um pouco do tom humorístico do Deadpool, mas também é um mistério (quem é o Outrage?) e, na essência, reflete as mais recentes e incrivelmente anormais regras da sociedade (por que o Outrage faz o que faz?). Estou bem ansioso para ver como o público reage!

Mario Luiz C. Barroso é jornalista, foi editor de super-heróis na Abril Jovem e atualmente é o tradutor oficial do Deadpool para a Panini Brasil. Ele agradece a Mariano Nicieza, pela colaboração nesta entrevista.

Outrage

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