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30 anos do casamento do Homem-Aranha... e dez da separação

19 junho 2017

A história do casamento mais badalado dos quadrinhos, que durante anos animou leitores e incomodou os editores da Marvel

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Manhã de sexta-feira, em Nova York, Estados Unidos, dia 5 de junho de 1987. Homem-Aranha e Mary Jane, visivelmente ansiosos, concediam entrevista ao programa Good Morning America, do canal ABC. Graças a uma ampla publicidade, que incluía um anúncio no jornal The New York Times, a cidade já sabia que, naquela noite, o super-herói escalador de paredes se casaria com a supermodelo internacional. Mas, ainda assim, a entrevista estava “causando frisson” entre os telespectadores.

Chegada a hora da cerimônia, os noivos trajavam seus respectivos terno e vestido longo criados pelo designer Willi Smith. O palco do enlace matrimonial era o estádio Shea, que minutos depois abrigaria o jogo de beisebol entre New York Mets e Pittsburgh Pirates. O padre, para delírio do público composto por cerca de 50 mil pessoas – dentre elas, heróis e supervilões, como Capitão América e Dr. Destino -, era ninguém menos que Stan Lee, cocriador de vários personagens da Marvel Comics. Tudo transmitido ao vivo pelo programa Entertainment Tonight, da CBS.

E foi assim a intensa campanha midiática que, há 30 anos, a Marvel realizou no mundo real para promover o casamento mais badalado da história dos quadrinhos, cujas consequências obrigaram a “Casa das Ideias” a se valer de um grande e estapafúrdio Deus Ex Machina para desfazer o que a editora até hoje afirma ter sido um de seus maiores entraves.

O casamento

Stan Lee era o roteirista do Homem-Aranha nas tiras diárias de jornal quando resolveu casar Peter Parker e Mary Jane.

A ideia surgira depois de ele saber que MJ havia descoberto a identidade secreta do herói mascarado na continuidade original dos gibis. A partir daí, as tiras - que até hoje seguem uma cronologia própria - passaram a mostrar esse fato e as histórias caminhavam para levar o casal ao altar em pouco tempo.

Lee foi o grande incentivador do matrimônio, para tentar alavancar as vendas das tiras de jornal, e sugeria que isso também acontecesse nas revistas em quadrinhos.

Havia muitas opiniões contrárias, na Marvel. Mas a proposta acabou convencendo o então editor-chefe da “Casa das Ideias”, Jim Shooter, que se apressou em reintroduzir Mary Jane nas histórias do Homem-Aranha.

MJ estava havia muito tempo esquecida na vida de Peter Parker, nos sentidos conceitual e editorial. O fotógrafo do Clarim Diário havia passado por muitos relacionamentos amorosos, desde a última vez que se encontrara com a sobrinha de Anna Watson. E os leitores já haviam apontado e aprovado Felícia Hardy – a Gata Negra – como a mulher dos sonhos do Homem-Aranha.

Mas a corrida contra o tempo, para que Peter Parker e Mary Jane se casassem nos gibis ao mesmo tempo que nas tiras de jornal, acelerou tudo na vida dos dois: a volta de MJ, o resgate da paixão interrompida, o pedido de casamento feito por Parker e o “Sim!” aconteceram em apenas três edições de Amazing Spider-Man (# 290 a # 292).

A preparação, com direito a muita reflexão de ambos os noivos – sobre o passo gigantesco que dariam para o curso de suas vidas -, culminou em Amazing Spider-Man Annual # 21, de junho de 1987, a clássica edição que apresentou o casamento do Homem-Aranha, trazendo duas capas icônicas: uma com Peter Parker e Mary Jane posando com a família e os amigos; outra com Homem-Aranha e MJ ao lado de super-heróis e vilões da Marvel – todas desenhadas por John Romita.

No Brasil, somente anos depois os leitores puderam assistir à cerimônia – e, de bônus, à lua de mel do casal -, em Homem-Aranha # 100 (Editora Abril, outubro de 1991). Esse atraso ocasionou um fato curioso, meses antes, quando a cultuada minissérie A última caçada de Kraven chegou às bancas: alguns diálogos e recordatórios foram alterados para não revelar que Peter Parker e Mary Jane estavam casados e não comprometer a cronologia própria adotada pela editora para os quadrinhos da Marvel no País.

Vida de casado

Com o passar dos anos, o casamento se mostrava uma dor de cabeça para os personagens. Uma gravidez tragicamente interrompida; as dificuldades de conciliar uma vida a dois com as respectivas carreiras de super-herói e modelo das passarelas; oportunidades de crescimento profissional perdidas; pouco tempo dedicado um ao outro e muito mais problemas trafegavam entre os dois. As crises de relacionamento também fizeram parte desse rol de obstáculos contra uma convivência tranquila.

Nada que se comparasse ao sofrimento dos editores e roteiristas para driblar as limitações criativas que esse casamento proporcionava. Ao longo do tempo, Mary Jane passou a ser um estorvo - se não na vida do Homem-Aranha, confessadamente na dos editores.

Ao longo de 20 anos, aconteceram muitas tentativas de desfazer o casamento, por mais que a união eterna entre os dois personagens fosse um desejo consolidado entre os fãs do Homem-Aranha. Mary Jane já havia fugido do controle dos editores e se tornado querida pelo público o suficiente para não sair de cena sem causar traumas.

Desde o sumiço ou a morte forjada de MJ para induzir os leitores a esquecerem a personagem, até insinuações e indícios de traição para sujar sua imagem, não havia artifício que funcionasse, pois uma legião de fãs mantinha alto o índice de reclamações e protestos em seu favor. Os leitores queriam ver a ruiva na vida do Homem-Aranha, na alegria e na tristeza, sem que a morte ou qualquer outro infortúnio os separasse.

Tudo seguia bem, até que o impensável aconteceu.

Graças a um editor determinado e sem nenhum prurido, que ousou sacrificar décadas da cronologia do Homem-Aranha para destruir um casamento do qual nunca gostou. E tampouco se importou em abalar a linha editorial do Universo Marvel nesse processo.

A separação

Joe Quesada já era editor-chefe da Marvel desde 2000 e nunca escondera sua insatisfação com o estado civil do Homem-Aranha. Fazendo coro a muitos artistas da editora, ele alegava, além da decantada limitação criativa, o fato de que o conceito juvenil do personagem não combinava com uma vida madura de casado.

Para realizar o tão sonhado fim do casamento do Homem-Aranha, ele articulou um mirabolante plano que envolvia misticismo e cinismo. Os pedidos e as pressões foram muitos; as críticas, antes e depois, na mesma proporção, mas nada disso impediu que Joe Quesada pusesse em prática a fase intitulada Um dia a mais (One more day, no original) , cuja história final, em Amazing Spider-Man # 545 (dezembro de 2007), resolveu a "sinuca de bico" em que o herói aracnídeo se metera ao revelar publicamente sua identidade de Peter Parker - na megassaga Guerra Civil - e, na esteira, limou da cronologia o casamento do Amigão da Vizinhança.

Recorrendo ao sobrenatural, o editor invocou o demônio Mefisto para, sob o pretexto de oferecer a Peter Parker e a Mary Jane a chance de salvar Tia May - internada em um hospital às portas da morte, desde que fora baleada durante a Guerra Civil -, apagar a memória do alter ego do Homem-Aranha e "rebobinar" a realidade do personagem até o ponto em que se encontrava três anos antes em sua vida cronológica. Com isso, criou-se uma espécie de cronologia paralela na Marvel, que se chocava com a original e confundia os leitores.

O misticismo estava aí. O cinismo dos editores estava na motivação de Mefisto para se importar com Peter Parker e Mary Jane dentre tantos mortais da Terra: marcar um ponto contra Deus, pondo fim a um “amor puro, incondicional, que se fez santo aos olhos Dele, pois um amor como o seu ocorre uma vez em milênios e afastar isso Dele… é uma vitória inimaginável”, de acordo com as palavras do demônio. "Vocês dois já não serão casados. Porque jamais foram casados. Simplesmente nunca aconteceu”, sentenciou.

Desde então, para todos os efeitos, Peter e MJ são ex-namorados que se tornaram apenas amigos.

Na nova cronologia, conforme explicado somente dois anos depois dos eventos de Um dia a mais, os dois estavam sem se falar havia algum tempo, logo após Peter Parker ter abandonado Mary Jane no altar, inadvertidamente - na hora do casamento, o Homem-Aranha não comparecera porque estava lutando contra um inimigo mortal, enviado por Mefisto, e depois não aceitou o pedido de MJ para que encerrasse a carreira de super-herói, o que levou o casal a se afastar.

Os leitores nunca deixaram de se manifestar contrariamente à polêmica decisão editorial, mesmo que os arcos de histórias seguintes do Homem-Aranha, na fase Um novo dia (Brand new day), tenham angariado elogios de público e crítica.

Talvez por isso, nestes dez anos desde a separação, a Marvel venha aplacando a fúria dos fãs do casal com algumas aventuras especiais vividas em outra linha temporal ou em universos paralelos, nos quais Peter Parker e Mary Jane estão casados e têm uma filha (a pequena May "Mayday" Parker, que muito tempo antes dos eventos de Um dia a mais já protagonizava aventuras solo como a jovem super-heroína Garota-Aranha, no universo MC2).

Juntos novamente

Da mesma forma que as revistas em quadrinhos seguiram a dica das tiras de jornal e realizaram o casamento do Homem-Aranha, o fim do matrimônio nos gibis chegou às tiras, embora isso tenha acontecido tardiamente, no dia 1º de janeiro de 2009, com um simples aviso aos leitores de que a série readotaria a condição de solteiro do personagem para acompanhar seu título mensal vendido nas comic shops.

Mas não durou muito tempo.

No dia 24 de maio do mesmo ano, Peter Parker e Mary Jane voltaram a ser casados nas tiras de jornal, atendendo aos apelos incessantes dos leitores. Na tira em que o enlace é refeito, a explicação também não foi nada original, mas, nesse caso, pouco importava para os fãs: a curta fase de solteiro - e tudo que acontecera nesse período - não havia passado de um sonho do escalador de paredes.

Ao menos nessa cronologia alternativa, o casamento continua valendo e completou três décadas de solidez, apesar de todos os percalços.

Que Peter Benjamin Parker e Mary Jane Watson sejam felizes para sempre.

Marcus Ramone não aconselha ninguém a convidar Joe Quesada para ser padrinho de casamento

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