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Ardalén

21 dezembro 2015

ArdalénEditora: Realejo Livros & Edições – Edição especial

Autor: Miguelanxo Prado (roteiro e desenhos) – Originalmente em Ardalén (Tradução de Paulo de Toledo).

Preço: R$ 119,00

Número de páginas: 256

Data de lançamento: Setembro de 2015

Sinopse

Somos o que nós nos lembramos, mas a memória não é um registro objetivo e inalterável.

Sabela tenta reconstruir uma parte de sua história familiar. Ela busca informações sobre o paradeiro do avô, Francisco Lamas, que emigrou jovem para Cuba, nos anos 1930, e nunca mais deu notícias.

Chegando a um vilarejo na Galícia, ela conhece o velho Fidel, um marinheiro aposentado que pode ter sido companheiro de seu avô numa de suas viagens marítimas.

Contudo, esse senhor de idade avançada tem muitos problemas para recordar. Há mais fios que se entrelaçam neste processo de resgate através das memórias de Fidel: outras pessoas, outras lembranças...

Positivo/Negativo

Antes de mergulhar na análise propriamente dita na obra de maior fôlego de um dos grandes nomes dos quadrinhos mundiais, Miguelanxo Prado, um parêntese deve ser colocado aqui: como um oásis, Ardalén preenche a “seca” que o Brasil tinha com relação às obras do autor espanhol.

Além de esparsas histórias curtas em revistas mix como Heavy Metal Brasil e Aventura & Ficção (Abril), a arte de Prado pode ser conferida no especial Sandman – Noites sem fim (lançado em 2003 pela Conrad e republicado em 2014 pela Panini) e na série Cidades ilustradas (Casa 21), na qual retratou Belo Horizonte, em 2003. A única coletânea autoral lançada no país foi Mundo cão, em 1991, pela Abril, no # 26 do selo Graphic Novel.

Com esses isolados exemplos, fica difícil ter a ciência dos horizontes criativos – tanto no traço quanto nas histórias – desse essencial quadrinhista. É possível fazer até um paralelo dessa falha gravíssima do cenário editorial brasileiro para preservar a memória da obra de Miguelanxo Prado e as confusas lacunas reminiscentes da cabeça de Fidel, personagem central de Ardalén. Os pequenos pedaços lançados por aqui não oferecem a dimensão oceânica das HQs do autor.

Falando em nacos, é justamente pelos fragmentos de memória que a construção da figura ausente do avô de Sabela se constrói. O que nós somos? O que vai ficar de nós na passagem terrena? Como as memórias sobrevivem nas nossas mentes e são passadas de maneira geracional? Essas e muitas outras questões podem ser levantadas no decorrer da leitura.

Existem vários “tipos” de memórias, que vão desde a coletiva até a metafísica, mas nada é mais cara a cada indivíduo do que a pessoal, principalmente quando as terminações nervosas são enraizadas no solo genético, afetivo, familiar.

Sabela se encontra numa encruzilhada com sua vida em naufrágio a pique. Madura, com cerca de 40 anos, ela está passando por várias dificuldades que acarretam a sua crise existencial: ao mesmo tempo em que procura por emprego, passa pelo burocrático processo de separação conjugal.

Prado preenche a complexidade de ambos os protagonistas também com outros elementos de igual importância narrativa, a exemplo de uma série de objetos dispostos na cabana de Fidel que (a certo ponto) autenticam seus relatos ou de habilidades esquecidas, como os entalhes de formas marítimas no pedaço de madeira.

Sem as fronteiras da realidade e fantasia, veracidade e delírio, o autor cria seu próprio universo, que sempre deixa o leitor com “o pé atrás”. Prado também reforça e “remonta” essas lembranças com versos, documentos, fotografias, trechos de enciclopédias, artigos de revistas e afins entrecortando os capítulos da obra.

Não esquecendo também dos pontos paralelos à trama principal, auxiliados pelos coadjuvantes, os habitantes da vila e os preconceitos provincianos dos mais velhos, revelando que a maldade, a ganância e a hipocrisia podem residir em qualquer lugar.

Essas características do presente não são gratuitas e partem de uma sutil análise sociológica entremeada nas buscas (e respostas) dos personagens no passado. Na época do avô de Sabela e de Fidel, a pobreza tinha índices elevados, principalmente na região da Galícia, obrigando a imigração para países da América Latina e Caribe.

Ardalén é uma história de amores, ódios, frustrações, rivalidades, esperanças, encontros e desencontros, na amplitude desses significados. O teor onírico, poético e fantasioso é correspondido na belíssima arte, com técnicas mistas de pintura. A expressividade e naturalidade lúgubre dos personagens são tão importantes quanto os detalhes cênicos.

O nome do álbum corresponde ao batismo do vento que sopra do mar para a terra nas costas atlânticas europeias. Não tem um resumo melhor da história, conduzida ao bel-prazer da memória e da busca de identidade, mesmo que seja norteada por uma rosa dos ventos guardada numa velha caixa de lata para fortalecer as lembranças.

Um dos melhores lançamentos do ano, a edição só não ganha nota máxima em virtude de algumas escorregadas da Realejo em termos de editoração e revisão. Com formato 19 x 26 cm, capa cartonada com orelhas e papel couché, o que pode afugentar leitores é o preço alto, mesmo que valha a pena.

Em 2013, o álbum foi eleito a melhor obra espanhola no Salão Internacional de Quadrinhos de Barcelona, na Espanha, e arrebatou o Prêmio Ecumênico no Festival de Angoulême, na França. Frutos de um trabalho que levou três anos para ser produzido.

Assim como outra obra-prima de Prado que toca o tema marítimo (e precisa ser lançada no Brasil) – Traço de giz –, Árdalen vai ficar por um bom tempo na memória, até que se embarque para velejar por uma nova leitura, após os fragmentos da primeira sejam oxidados pela maresia do tempo.

Como já disse o poeta baiano Waly Salomão (1943-2003), “A memória é uma ilha de edição”.

Classificação

4,5

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