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LITTLE LIT- FÁBULAS E CONTOS DE FADAS EM QUADRINHOS

1 dezembro 2004

Título: LITTLE LIT- FÁBULAS E CONTOS DE FADAS EM QUADRINHOS (Cia. das Letras) - Edição especial

Autores: Art Spiegelman, William Joyce, Ever Meulen, Daniel Clowes, Joost Swarte, Bruce McCall, David Mazzucchelli, Lorenzo Mattotti, Wat Kelly, Harry Bliss, J. Otto Seibold, David Macaulay, Charles Burns, Claude Ponti, Kaz, Barbara McClintock e Chris Ware (roteiro e desenhos).

Preço: R$ 39,00

Número de páginas: 64

Data de lançamento: Setembro de 2003

Sinopse: Coletânea de contos de fadas, fábulas e brincadeiras, elaboradas por diversos grandes nomes dos quadrinhos ou dos livros infanto-juvenis, como Daniel Clowes (Como uma mão de veludo moldada em ferro), William Joyce (vencedor do Emmy) e o monumental Walt Kelly (Pogo), para citar somente alguns.

Traz ainda um jogo de tabuleiro, para que o leitor arme sua própria história.

Positivo/Negativo: Os contos de fada e as fábulas estão, sem dúvida, entre as maiores criações da humanidade. De tão importantes para a compreensão de nossa essência, acabaram se transformando em palco de acalorados debates científicos. Das críticas marxistas (que os viam como máquinas ideológicas a serviço da dominação) às conclusões de Freud (sempre obcecado com a questão da sexualidade contida nas "inocentes" narrativas), as histórias "infantis" deixaram há muito de se limitarem às cabeceiras pueris. São "coisas de gente grande" agora. Para serem esmiuçadas, destrinçadas, separadas, contestadas, nas Academias de todo o mundo.

Transpô-las para os quadrinhos, linguagem considerada inicialmente como que exclusivamente infantil, mas depois amadurecida, pode não ser uma idéia original (o conto de Kelly, por exemplo, é de uma revista chamada Fairy Tale Parade, de 1943), mas não deixa de ter seu encanto.

Em contrapartida à aceitação dos contos de fadas e fábulas nas discussões acadêmicas, os quadrinhos são ainda uma arte marginal, considerada, quando muito, uma subliteratura pela maioria dos intelectualizados. Não raro, os que defendem os gibis ou graphic novels (como quer Will Eisner), utilizam como argumento principal de sua defesa a possibilidade de que sirvam de incentivo aos jovens para adquirir o gosto da leitura, e assim passem em seguida aos livros, de preferência os "sérios".

Ou seja, não consideram os quadrinhos como um fim em si, uma arte plenamente constituída, com linguagem diferenciada da literatura, bastante peculiar; uma arte possuidora de tanto potencial e direito a ser respeitada quanto o próprio cinema, por exemplo (para ficarmos em uma contemporânea sua).

Little Lit parece padecer um pouco desse mal, quando afirma na quarta capa que suas histórias "abrem as portas encantadas do prazer pelos livros e pela leitura". Isso quem diz é um esquisito livro com pernas e braços.

Entretanto, como é difícil livrar-se do estigma literário ou assumir uma identidade à parte, não se pode recriminar este "livro" por tomar para si essa idéia equivocada dos quadrinhos. Aliás, se o objetivo de Spiegelman e Mouly foi apresentar às crianças "de todas as idades" o prazer de uma boa leitura, certamente obtiveram êxito extraordinário. A excelente seleção de profissionais e das histórias não poderia ter outro resultado, senão o sublime. É preciso analisar cada fábula, cada conto.

O álbum começa com Príncipe Galo, do próprio Spiegelman. Trata-se de uma parábola chassídica. O chassidismo foi um movimento judaico de retorno à simplicidade. Um de seus modos de ensinar era por meio de narrativas alusivas ou "parábolas". Como o autor é judeu, é quase certo que tenha ouvido a história quando criança. Profunda e enriquecedora, está entre os melhores momentos do livro.

O conto seguinte, Humpty em apuros, é um pouco mais complicado. Baseia-se numa história popular dos Estados Unidos, segundo a qual um grande ovo (Humpty Dumpty) estava no alto do muro, se balançando (a despeito dos avisos de cautela).

Caiu e partiu-se. William Joyce, conceituado escritor de livros infantis, apresenta-nos uma história bem curta, engraçada e insólita, de um casal colecionador de ovos que vai ao socorro de Humpty. Seu traço é um caso à parte. Esplendoroso.

Daniel Clowes parte de um livro do século XVII para contar uma parte desconhecida da história da Bela Adormecida, em que a mãe do príncipe (uma ogra) decide devorar seus dois filhos e sua esposa - essa é para aqueles que pensam ter a pior sogra do mundo.

O autor, sempre competente quando se trata de narrativas estranhas, resgata o clima de crueldade e pesar dos antigos contos de fadas. Seu eficiente trabalho com as expressões faciais lembra Dave Gibbons.

A árvore sem folhas é um primor da ironia. O holandês Joost Swarte conta uma "velha história de seu país", que tem como cenário a cidade onde vive. Um pai de família arruinado sonha com uma fada que promete levá-lo à fortuna. O autor usa uma narrativa simples para cravar pequenas críticas, muito espertas, ao comportamento humano, mostrando que nunca se está satisfeito, e que (não importa se ricas ou miseráveis) as pessoas não mudam. Sua condução, bem como seu traço, são excelentes.

Quem conhece David Mazzucchelli de suas parcerias com Frank Miller (na revista do Demolidor, por exemplo), por certo, estranhará muito o estilo cartunesco de O Pescador e a Princesa do Mar. Traços leves, infantis, com o tom preciso para a fábula japonesa do pescador que perde seu grande amor pela curiosidade. Guarda certo paralelo com o mito de Pandora. O uso das cores (principalmente pela ausência do preto) imerge o leitor numa atmosfera de um onirismo único, suave lirismo.

Os Dois Corcundas, de Lorenzo Mattotti, prima pela teatralidade. As próprias formas dinâmicas, as cores vivas obtidas (aparentemente) de modo artesanal, o uso de rimas, o inusitado, tudo é utilizado com propriedade para incutir um caráter lírico, vibrante, dinâmico e divertido. O autor é italiano. Tem duas graphic novels para adultos publicadas nos Estados Unidos: Murmur e Fires. Por aqui, em 2003, a Conrad Editora lançou Estigmas.

Em seguida vem Walt Kelly. Sua tira Pogo é considerado pela crítica como um dos cinco melhores trabalhos em quadrinhos já publicados na América. A influência dos anos em que trabalhou na Disney como animador pode ser sentido nessa deliciosa fábula, O Homem-Biscoito, que começa com aspectos de livro ilustrado, até ganhar o dinamismo dos quadros seguintes, numa perseguição que dura até a última página, quando a raposa mostra que quem usa a cabeça não precisa correr inutilmente.

A Filha do Padeiro traz aquela moralidade básica e crua dos antigos contos de fada, presente nas fábulas de todo o mundo e muito perceptível na literatura de cordel. Uma menina sovina é transformada em coruja por uma fada revoltada. Harry Bliss, o autor, é chargista da revista The New Yorker.

David Macaulay é um conhecido autor de livros ilustrados. Segundo consta, João e o Pé de Feijão é sua estréia nos quadrinhos. Fica difícil acreditar diante do excelente domínio que demonstra do uso dos quadros, os ângulos que escolhe, além de certos elementos narrativos dispostos no corpo do conto. A história flui com ritmo de tira diária, com um humor interessante (principalmente quando entra em cena a mãe de João). O gigante, em certos, parece ter sido feito à imagem de Alan Moore.

Segundo a pequena biografia da página 64, Kaz, autor de O Cavalo Faminto, afirma ter se baseado em uma narrativa estoniana que "lhe foi contada numa pista de corrida por um veterinário cigano que tinha um braço só". De fato, parece mesmo. Trata-se da história de um cavalo encantado que é roubado por um fazendeiro humilde, que enriquece com o bicho, mas ao alimentar o animal, contrariando as instruções da bruxa de quem o levou, vê o animal se transformar num homem e levar toda a sua fortuna. O estilo do autor lembra muito o do cartunista brasileiro Adão Iturrusgarai.

Para terminar, A Princesa e a Ervilha, um clássico, famoso em todo o mundo (consta haver uma versão em cordel). Barbara McClintock, escritora de livros infantis, tem um traço bastante detalhista, elegante e bonito. Condiz com a história.

Curioso que a autora tenha transformado todos na história em animais. A família real é constituída por leões. A princesa é uma gata branca. O príncipe havia recusado princesas de diversas espécies, mas encantou-se de imediato por uma possível plebéia, mas de sua "classe" (ou será "família"?), felina como ele. Digna de um estudo mais aprofundado, bem como todo o restante do livro.

Some-se às histórias, as diversas brincadeiras pelo caminho e as pequenas biografias dos autores, e você terá uma obra indispensável, de inesquecível encanto. Só uma palavra para descrever Little Lit: Uau!

A edição da Companhia das Letras é perfeita. Da encadernação adequada ao esmero com o português, passando pelas cores e letras, nada passa descuidado. A editora, especializada em livros, tem se mostrado cada vez mais interessada em publicar obras de grandes autores mundiais dos quadrinhos, como o próprio Spiegelman (além do recente À Sombra das Torres Ausentes, já prometeu republicar o clássico Maus em 2005). Seu trabalho é digno de virar referência de qualidade.

Classificação:

4,0

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