Ivo Milazzo: um mestre italiano do traço, em São Paulo
O co-criador de Ken Parker, o personagem mais cultuado dos quadrinhos de western, fala, COM EXCLUSIVIDADE, ao Universo HQ sobre sua carreira e projetos atuais e futuros
Uma típica sexta-feira paulistana. Numa pizzaria da zona oeste da cidade, a equipe do Universo HQ, com Sidney Gusman, Sérgio Codespoti e Marcelo Naranjo, aguarda, ansiosa, a chegada de seu ilustre entrevistado, ninguém menos que Ivo Milazzo, um dos maiores desenhistas de quadrinhos da Europa.
Nascido em 20 de junho de 1947, em Tortona, Milazzo, hoje com 53 anos, considera-se um genovês de adoção. Sua parceria com o roteirista Giancarlo Berardi, iniciada no início da década de 70, imortalizou o personagem Ken Parker, tornando-o o mais badalado cowboy dos quadrinhos mundiais.
No Brasil, Ken Parker tornou-se cult entre os leitores. Dos 59 números de seu título mensal, 53 foram lançados pela Vecchi, a partir de 1978, e duas pela Best News, no início dos anos 90. Portanto, quatro continuam inéditos (a Tendência, que está republicando todos os volumes, desde o número 1, em edições caprichadíssimas, no formato original, promete lançar a série completa. Veja aqui). Além disso, foram publicados no Brasil a edição especial O Cervo e Um Hálito de Gelo, pela Editora Ensaio; e a minissérie (em duas partes) Onde morrem os Titãs e o álbum de luxo Um Príncipe para Norma, ambos pelo CLUQ (Clube dos Quadrinhos). Recentemente, a Mythos colocou nas bancas material inédito (da Parker Edittore, a editora fundada por Milazzo e Berardi) de “Rifle Comprido” (como é conhecido entre os índios), numa minissérie em 3 números que, devido ao sucesso entre os leitores, pode se tornar uma revista mensal em 2001.
Mas a carreira desse torcedor do Genoa (o grande rival da Sampdoria, em Gênova) vai muito além de Ken Parker. Em seu currículo há diversos trabalhos de sucesso na Europa, como L’Uomo delle Filippine (na coleção Un Uomo un’Aventura); Welcome to Springville; as séries Marvin il Detective, Tom’s Bar, Giuli Bai & Co (uma série ambientada em Gênova nos anos 50) e a recente Magico Vento.
Num papo descontraído, regado a muitos chopps, Milazzo nos falou sobre sua carreira e seus trabalhos, numa entrevista EXCLUSIVA, que você confere a partir de agora!
Universo HQ: Com quantos anos você começou a trabalhar com quadrinhos?
Ivo Milazzo: Meu primeiro trabalho profissional foi em 1971, com uma história chamada Il Cieco, publicada na revista Horror, da editora Sansoni.
UHQ: Quanto tempo levou desde a concepção do personagem até o lançamento da primeira revista?
Milazzo: Em 1974, quando eu e (Giancarlo) Berardi apresentamos o primeiro episódio para o Sergio Bonelli (o editor de Tex, Zagor e Cia.), os quadrinhos e o cinema estavam repletos de westerns. Por isso, nossa primeira preocupação com Ken Parker era fazer uma boa história, em que, muitas vezes, a natureza era a principal protagonista. Depois de aprovada a primeira edição, foram três anos de trabalho, pois, como a revista seria mensal, precisávamos ter material suficiente. Assim, em 1977, Ken Parker fez sua estréia.
UHQ: É verdade que a fonte de inspiração para a criação do personagem foi o filme Jeremiah Johnson, de Sydney Polack, com Robert Redford? Vocês extraíram do filme somente o visual do personagem ou o conceito também?
Milazzo: Sim, é verdade. Além do visual, Ken Parker herdou muito do personagem vivido por Redford, que, no filme Jeremiah Johnson (nota do UHQ: Mais Forte Que a Vingança, no Brasil), era um homem bom, de princípios, que vivia nas montanhas e, ao invés de enfrentar os desafios da natureza, resolve integrar-se a ela, abdicando da civilização. Sua influência foi tamanha, que, inicialmente, o personagem iria se chamar Jedediah Baker, mas Bonelli decidiu que seu nome deveria ser algo curto, que fosse fácil de memorizar. Ele estava certo! E assim surgiu Ken Parker.
UHQ: Ao contrário de outros quadrinhos western, Ken Parker não tem tiroteios intermináveis, bandoleiros malvados ou sujos ladrões de gado. O personagem prefere usar o cérebro ao invés dos músculos. Isso foi previamente determinado por você e Berardi para fazer algo diferente de outras revistas do mesmo estilo?
Milazzo: Quando criamos Ken Parker era impossível uma história em quadrinhos de western não ter personagens trocando socos ou trocando tiros com os inimigos, pois, na época em que ele vivia, a vida era mais rude. Até mesmo as mulheres eram mais rudes naqueles tempos. Por isso, o diferencial teria que estar no contexto da história, na trama. E foi isso que Berardi sempre procurou fazer.
Há uma curiosidade na primeira edição de Ken Parker. O personagem começa de barba (nota do UHQ: como Robert Redford, no filme) e depois, no número seguinte, está sem. Sabe por que? É que, na Itália, nenhum personagem barbudo faz sucesso. Os fãs parecem não gostar. Daí, a história foi conduzida para que tivesse uma razão para se barbear!
UHQ: Comparado com outros quadrinhos western, Ken Parker é relativamente novo (1974). Qual a vantagem de Ken Parker sobre as outras obras, para ter conseguido alcançar esse sucesso?
Milazzo: Não sei dizer exatamente. É uma questão de gosto pessoal. Talvez, a razão desse sucesso venha do fato de Berardi e eu sermos um pouco mais jovens que os autores que faziam quadrinhos de western, naquela época; e por termos vivenciado outras coisas, diferente dos mais velhos. Nós enxergávamos as histórias de um modo diferente.
UHQ: Para desenhar as histórias de Ken Parker, você fazia muitas pesquisas. Fale um pouco sobre isso, pois muitos desenhistas ignoram a importância da pesquisa dos elementos visuais que compõem a história!
Milazzo: A pesquisa é fundamental numa história de western. Eu sempre procurei passar muitas informações através do meu desenho. No começo era difícil, pois as condições financeiras não me permitiam comprar livros caros, onde pudesse me basear. Por isso, o cinema também acabava me servindo como fonte de referência.
A caracterização da época em que o personagem vivia, passa pelas roupas, casas, armas e mais uma infinidade de coisas. Tudo isso compõe o cenário de uma boa história! Para desenhista mais antigos, acho aceitável a falta de pesquisa, mas na geração moderna, isso é inadmissível, ainda mais com tantos recursos à disposição.
UHQ: Você é um perfeccionista por natureza. Qual o conselho que dar para quem está iniciando agora no mercado de quadrinhos?
Milazzo: Você acha? Alguns não me acham perfeccionista. Dizem que eu tenho um traço “veloz” demais. Muita gente não gosta do meu desenho, acham-no simples.
UHQ: Nós, não! (risos)
Milazzo: Obrigado. Na verdade, meu traço é simplificado, mas fruto de um estudo intenso. É uma opção de estilo. Eu utilizo um traço apenas, para fazer o que fariam outros com 3 ou 4, na escola clássica. É o caso, por exemplo, do Milton Caniff (nota do UHQ: do clássico Terry e os Piratas). O Marraffa, que também desenhou Ken Parker, já segue mais essa linha, com um traço diferenciado do meu.
Meu objetivo sempre foi, através do meu traço, passar uma imagem visual direta para o leitor. Veja também os casos dos excelentes ilustradores que trabalham atualmente nas revistas. Para mim, eles estão mais próximos da pintura do que dos quadrinhos. Na minha concepção, o desenho de uma história em quadrinhos exige uma outra narrativa, um outro estilo.
UHQ: Você acha que o estilo western ainda tem muito a dar para os quadrinhos? Por quê? Você gosta de algum outro quadrinho western?
Milazzo: Certamente, que sim. O western é uma fonte inesgotável. Tanto que, há mais de 50 anos, a Itália produz personagens de western, com grande sucesso. É um gênero inesgotável, cuja paixão passa de pai para filho. Eu cresci lendo Tex e O Pequeno Xerife e, mais tarde, vim a conhecer outros grandes quadrinhos de western, como Blueberry, digo, o “verdadeiro” Blueberry, aquele feito por (Jean-Michel) Charlier e Jean Giraud, bem antes de se tornar o Moebius, desenhista de ficção científica. Também gostava de Jerry Spring, do Jijé (nota do UHQ: pseudônimo de Joseph Gillian).
UHQ: Na edição nº 15 de Ken Parker (Homens, Feras e Heróis), ele encontra com Tex e Zagor. Como surgiu essa idéia? A repercussão entre os fãs dos três personagens deve ter sido imensa, não?
Milazzo: Minha intenção nessa edição era prestar uma homenagem; e o resultado foi excelente, pois os fãs de Tex e Zagor também gostaram muito. Nessa história aparecem também Lucky Luke e outros personagens dos quadrinhos de western.
UHQ: Qual a sua história predileta de Ken Parker?
Milazzo: Ah, são muitas. Mas eu poderia destacar Adah (edição nº 46), Lily e o Caçador (nº 25) e Lar Doce Lar (nº 30), pois são histórias muito humanas. Aliás, aqui vai uma informação em primeira mão: duas delas, Lily e o Caçador e Lar Doce Lar serão reeditadas em forma de um álbum luxuoso, em formato gigante, em toda a Europa, chegando simultaneamente à Itália, Portugal, Espanha e França.
Essas histórias foram escolhidas, porque, nas minhas andanças junto com Berardi pela França, notamos que não havia nenhuma história de western, desse gênero, publicada. Algo sentimental! Numa, retratamos um homem que caminha com seu cão pela neve e, na outra, Ken Parker vai às montanhas, para encontrar o seu velho pai. Devo mencionar que Lily era o nome de minha cadela!
UHQ: Aqui no Brasil, Ken Parker tem uma legião de fãs. Agora, o personagem está voltando a ser publicado aqui, por duas editoras, a Tendência e a Mythos. O que você diria aos leitores que ainda não conhecem o personagem?
Milazzo: Eu diria que comprem ou peçam a revista emprestada (risos)! Na verdade, eu convidaria os novos leitores a conhecer o personagem; e os antigos, a revê-lo. Gostaria, mesmo, é de enaltecer o corajoso trabalho da Tendência, pois é difícil trabalhar com histórias em quadrinhos em forma de livros. Só na França, esse material é universalmente aceito como literatura. No resto do mundo é um subproduto cultural, relegado às bancas. Por isso, o conceito de livros de quadrinhos é difícil de se trabalhar.
Mas, como as edições estão belíssimas, com uma nova tradução, um papel de qualidade e no seu formato original (nota do UHQ: você pode encomendar as revistas da Tendência Editorial pelo e-mail tendenciaedi@uol.com.br), os leitores têm gostado bastante, o que me deixa muito feliz.
UHQ: Além do Brasil, em que outros países Ken Parker foi publicado?
Milazzo: Ken Parker foi publicado, com sucesso, em 13 ou 14 outros países, como Turquia, Grécia, Espanha, Iugoslávia, Holanda, França e países escandinavos. Nos Estados Unidos e na América do Sul (exceto o Brasil), infelizmente, ele nunca foi publicado.
UHQ: Você e Giancarlo Berardi fizeram uma parceria que ficou reconhecida como uma das melhores duplas de criação de western dos quadrinhos, mas o último trabalho publicado de vocês foi em janeiro de 1998. Existem planos para uma volta aos “velhos tempos” e produzirem algo juntos novamente?
Milazzo: Como estivemos juntos por muito tempo, resolvemos seguir caminhos distintos para diversificar nossa produção, e ambos temos conseguido êxito em nossos novos trabalhos. Mas temos planos para atuarmos juntos novamente, como no projeto da publicação multinacional de Ken Parker (Itália Portugal e França), em edições mais sofisticadas e coloridas (nota do UHQ: a colorização será feita na França).
UHQ: Que tipo de quadrinhos você lê? Quem foram seus ídolos nos quadrinhos?
Milazzo: Eu tive muitos ídolos, mas tenho uma péssima memória e, com certeza, esqueceria algum. Por isso, prefiro não citar nomes. Mas costumo dizer que meus ídolos são as pessoas que me ensinaram algo tecnicamente e me fizeram crescer profissionalmente. Atualmente, leio poucos quadrinhos, por dois motivos. Primeiro, para não deixar influenciar; segundo, porque gosto de histórias cuja arte seja bem balanceada com o texto, algo raro atualmente.
UHQ: Há algum personagem que você gostaria de ter desenhado e não conseguiu?
Milazzo: Hummm… Acho que não! Poderia me considerar um profissional realizado. Durante a minha infância eu pensava em desenhar alguns personagens de Galeppini, Hugo Pratt e dos desenhistas da revista “L’Intrepido”. Depois, quando me tornei um profissional, estes sonhos desapareceram. De Hugo Pratt tinha uma preferência especial pelo personagem Ernie Pike, um correspondente de guerra.
UHQ: Você faria quadrinhos de super-herói?
Milazzo: Super-herói? Não! Bem, se me pagarem… Afinal, eu sou um profissional.
UHQ: Qual sua opinião sobre os quadrinhos de super-heróis? Na Itália, atualmente, eles ocupam muito especo no mercado de fumetti?
Milazzo: Hoje, na Itália, os super-heróis ocupam uma fatia muito pequena e restrita do mercado. Hoje, os campeões de vendas são os mangás. Pokémon é uma coqueluche. Vende mais que Toppolino (nota do UHQ: Toppolino é o nome do Mickey na Itália e, durante muitos anos, seus títulos foram os campeões absolutos de vendas no país).
UHQ: Você conhece autores brasileiros? Qual sua impressão sobre os seus trabalhos?
Milazzo: Sim, conheço alguns. Mauricio, Laerte, Ziraldo, Angeli, Miguel Paiva. O Mauricio é o Disney brasileiro. Os outros seguem uma linha mais de humor, muito característica do povo de vocês.
UHQ: Fale um pouco mais de seus trabalhos recentes, como Texone (Tex Gigante, no Brasil) e Shado (uma edição da recém-lançada série do personagem Magico Vento).
Milazzo: Ah, é melhor fazer esta pergunta ao Bonelli (risos).
Texone foi uma experiência fantástica, a realização de um sonho, pois somente grandes artistas fazem essas edições e eu tive a honra de ser convidado para uma delas (nota do UHQ: já desenharam esses especiais feras como Victor de la Fuente, Magnus, Jordi Bernet e Joe Kubert, entre outros). Mas tive que me adaptar ao personagem, que tem uma narrativa muito peculiar. Cláudio Nizzi (nota do UHQ: o roteirista de Tex) me disse: “Lembre-se que Tex nunca ri. No máximo, ele sorri!”. Precisei até refazer algumas páginas, porque estava fazendo o personagem numa outra linha. Eu também não podia esquecer que Jack Tigre é o Tex com uma pena na cabeça; Kit Carson é o Tex com bigode e cavanhaque; e Kit e o Tex Júnior (risos).
Sobre Mágico Vento, já fiz 3 edições da revista e entreguei a quarta. O material está vendendo bem na Itália, o que me deixa muito feliz.
UHQ: Quais os projetos em que você está trabalhando atualmente e quais seus planos para o futuro?
Milazzo: Eu tenho trabalhado em muitos projetos. Um deles é Racontare Genova – Itinerari alla Ricerca di Aromi, Sapori e Curiositá, um guia da cidade, que vai ser lançado em 2001, no qual mostro, por meio dos aromas, sabores e detalhes, a “velha” Gênova, que andava esquecida.
Há também um convite de um autor brasileiro para realizar um álbum com histórias em quadrinhos da participação da FEB (nota do UHQ: Força Expedicionária Brasileira) nos campos de batalha da Itália, durante a II Guerra Mundial; uma série sobre um índio iroquês (tribo que hoje vive na divisa entre o Estado de Nova York e o Canadá), que se passa nas montanhas Adirondacks (nota do UHQ: estado de Nova York), e conta sua relação com os sonhos; e uma versão em quadrinhos de D. Quixote, de Miguel de Cervantes, feita em parceria com Jorge Zentner (nota do UHQ: um argentino que vive em Barcelona).
UHQ: Você já leu a versão de D. Quixote feita por Will Eisner (publicada no Brasil pela Cia. Das Letras)?
Milazzo: Não sabia que Will Eisner, que eu acho um artista “grandíssimo”, havia feito uma adaptação de D. Quixote, mas posso dizer que não a verei até concluir o meu, para não correr nenhum risco de ser influenciado.
UHQ: Existe algum desenhista que você gostaria de ver desenhando Ken Parker?
Milazzo: Que pergunta difícil! Não sei, são tantos grandes nomes… Mas eu citaria Alex Toth, que é um grande artista, tem o dom de sintetizar o desenho e domina como poucos as técnicas de chiaroscuro (luz e sombras).
UHQ: Ivo, muitíssimo obrigado pela entrevista!
Milazzo: Eu espero que seus leitores gostem. Um grande abraço a todos!
* Agradecimentos especiais a Wagner Augusto, do CLUQ (Clube dos Quadrinhos), pela força que nos deu para a realização dessa entrevista.
Universo HQ na Itália: essa entrevista que você acabou de ler, também pode ser acessada pelos internautas italianos.
É que, para nossa imensa satisfação, a entrevista foi transcrita para o italiano (o texto está disponível também em português e, em breve, em inglês) pelo site UBC Fumetti (Universo Bonelli Comics), e é um destaques da edição 79 de sua revista eletrônica, ao lado de um especial sobre Gianluigi Bonelli (com depoimentos de personalidades, reportagens nos principais jornais da Itália e uma completíssima ficha técnica do autor), das resenhas dos últimos Tex brasileiros de 2000 (em seis idiomas) e outros assuntos ligados aos fumetti.
É o Universo HQ rompendo fronteiras!