Lourenço Mutarelli: um artista na acepção da palavra
UHQ: Seus dois últimos trabalhos demonstram uma incrível maturidade, com destaque para o roteiro, muito bem construído e amarrado. Fale um pouco sobre esse seu processo de amadurecimento.
Lourenço: Aí tem umas coisas que tenho pensado muito. A primeira é a seguinte, quando falei pro Douglas (Quinta Reis, um dos sócios da Devir), que queria fazer um álbum de quadrinhos, eu estava fazendo ilustrações de RPG, que eu nem gosto muito, mas era meu ganha-pão e eu devo agradecer por isso. Ele disse para eu fazer como hobby, de finais de semana, que depois eles editavam. Por isso, pensei em fazer uma história que eu estivesse com vontade de ler. Eu estava sentindo falta nos quadrinhos de uma seqüência de ação, de alguma trama meio romance policial. Resolvi fazer algo mais ou menos assim.
Outra coisa fundamental, é que comecei a respeitar o que eu chamo de métrica dos quadrinhos, a divisão de número de quadros por página tem muito pouca variação, e isso é fundamental pra leitura. Eu não estava dando atenção a esse aspecto, que ajuda muito a narrar a história, a fazer a pessoa “entrar” na história. Na trilogia, eu trabalhei dentro dessa métrica.
Teve um lance engraçado, em Curitiba, quando eu fui lançar o livro. Um cara estava muito incomodado de comprar um álbum meu, pois era fã de super-herói e nunca tinha gostado do meu trabalho. Ele ganhou O Dobro de Cinco e, com muita dificuldade, admitiu pra mim que curtiu. Depois, foi comprar O Rei do Ponto e, só de folhear, gostou mais ainda. Aí, me perguntou: “Você está ficando comercial? É por isso que estou gostando do seu trabalho?”.
Eu respondi que não estava ficando “comercial”, até porque havia acabado recusar um convite para quadrinizar a vida de uma determinada pessoa, que me renderia uma boa grana. Mas o que percebi, sem querer, é que, antes, minhas histórias tinham dificuldade pra conseguir entrar no mercado, porque era difícil classificar o que é aquilo, principalmente em quadrinhos. Não é humor, não é erótico, não é terror, não é aventura, não é infantil…
Acredito que, quando eu fiz um romance policial, ficou mais fácil me julgar. Se eu sei ou não sei escrever uma história, porque estou escrevendo um gênero que já existe. Talvez seja mais ou menos por aí, porque, apesar do que todos dizem dos meus outros trabalhos, eu também não gosto muito. Alguns até me envergonham, mas creio que, de um jeito ou de outro, eu sempre contei uma história.
As pessoas achavam que era pura e meramente biografia, mas não era. É que o personagem falava em primeira pessoa. Eu nunca tive um pai que tinha quatro braços, trabalhando no circo, nunca matei ele, nem nada. Mas as pessoas acham que aquilo era a verdade pura, talvez porque o personagem era tão autentico, que parecia que era minha vida, sei lá…
UHQ: Suas obras são permeadas de citações literárias e visuais. Você lê muito? Quais suas fontes de referência?
Lourenço: Eu leio. Não como gostaria, porque, às vezes, quando estou lendo, me sinto culpado por não estar produzindo. Mas, pelo menos, uns quatro ou cinco livros por ano, fora o quanto eu pesquiso. Eu leio livros de psicologia e psiquiatria, para me ajudar a estruturar personagens e entender mais ou menos os mecanismos humanos. Leio muito o dicionário de símbolos, uma coisa incrível.
Eu tenho uma coisa legal. Se eu pegar um livro, sei lá, “Dona Benta”, e estiver escrevendo uma história sobre alguma coisa, vou achar alguma referência. Eu tenho uma sintonia incrível! Se pegar uma bula de remédio, um negócio de igreja evangélica, sempre acho um elemento. Eu tenho uma coisa meia paranóica, de gostar muito de ler enciclopédia, pegar um termo qualquer, ver com que se relaciona e vou indo. Talvez pelo cansaço de ler, chega uma hora em que me da a impressão de que tudo deriva de um mesmo assunto, que tudo está amarrado.
Uma vez, comprei um livro do Anatole France, O Manequim de Vime, numa banquinha, por R$ 1,00. Aí, descobri que o autor tem esse nome porque a família dele tem origem na Anatólia, que é onde ficava o ponto, a região do Rei do Ponto. No fim do livro, ele fala sobre a irmã de Mitridates, que tinha uma arcada dentária dupla, tipo um tubarão; conta como Mitridates morreu etc. Foi uma coincidência! Peguei algo pra ler caí no assunto de meus álbuns. Isso acontece bastante comigo.
UHQ: Você é um dos autores nacionais mais premiados dos últimos tempos, conseguindo uma quase unanimidade de público e crítica. Isso aumenta a “cobrança” a cada nova história produzida?
Lourenço: Quando eu estou trabalhando, não penso nos leitores, não penso em prêmio, não penso em nada. Eu me ligo naquilo e trabalho. A minha cobrança com o meu trabalho é muito forte, sou bastante duro e exigente comigo. Os prêmios não me dizem muito, sinceramente. Tem um ou outro mais importante, como o da 1ª Bienal de Quadrinhos e o HQ Mix que eu ganhei como roteirista, que eu ganhei por roteiro, por Seqüelas (nota do UHQ: Lourenço não gosta muito do seu texto nesse álbum). Os de desenho, às vezes, acho meio injusto. É bom ser premiado, mas eu não tenho muita vaidade.
UHQ: Numa entrevista recente, você mesmo diz achar seus trabalhos do início da década de 90 muito “pesados e agressivos”. Isso estava diretamente ligado com o seu sofrimento com a psicose maníaco-depressiva (nota do UHQ: doença mais conhecida como Síndrome do Pânico)?
Lourenço: Tinha muito a ver. Não só com isso, mas uma série de problemas que eu tinha, a dificuldade que eu estava vivendo, que tinha passado a vida inteira. Era meramente terapêutico, um jeito de drenar. Desgraçados é um livro que eu me envergonho, eu não queria reeditar, acho ofensivo. É minha fase heavy metal, uma coisa meio juvenil, que o pessoal vai e grita, tira as calças, tentando sei lá o que…
UHQ: Como os quadrinhos te ajudaram a combater essa doença, Lourenço?
Lourenço: Ajudaram muito. Os quadrinhos salvaram minha vida! Eu tinha dificuldade de me relacionar, de me expressar. O quadrinho fez com que eu me relacionasse, me casasse, com que eu tivesse um filho. O quadrinho foi fundamental!
UHQ: Nos seus trabalhos você costuma inserir pessoas do seu convívio como personagens. Além de Lucimar, sua esposa, que foi tema de um de seus álbuns, quem mais já apareceu?
Lourenço: O Glauco (Mattoso, escritor), o Gambero, o Zoião… Geralmente, os vilões são baseados em pessoas que gosto muito e posso brincar com isso. Teve uma época que todo personagem que eu desenhava tinha a minha cara. Colocava uma barbinha e pronto. Aí, comecei a pegar pessoas próximas, fazer uma caricatura da alma, do lado negro de cada amigo.
UHQ: E essas experiências pessoais te ajudaram na elaboração de roteiros?
Lourenço: Sim, porque você começa a pensar atenção na postura, como aquela pessoa é diferente. Quando eu era bem moleque, eu lia Snoopy, do (Charles) Schulz,. Você pode observar, não tem um balão errado. O Linus é sempre o Linus; cada um é cada um. Eles têm uma personalidade bem estruturada e definida. Eu também tento fazer isso, não criar estereótipos, fazer com que os personagens oscilem um pouco. Acho que prestar atenção nessas diferenças entre as pessoas, ajuda a construir um roteiro melhor.
UHQ: Pouca gente sabe da sua passagem nos estúdios Mauricio de Sousa. Quando foi isso? O que você fazia? Hoje, o que você acha do trabalho do Mauricio? Como é seu relacionamento com ele?
Lourenço: Eu sempre fui muito distante do Mauricio, pois era só mais um funcionário, entre cento e tantos da parte de desenho animado. Na época, tinha um certo desprezo pelo trabalho dele, hoje, tenho um profundo respeito, principalmente, porque meu filho adora. Eu me sinto bem comprando um Cebolinha, muito melhor que comprando um Pokémon, embora eu compre, também.
Na minha opinião, ele faz um trabalho incrível, fora a oportunidade que dá para tanta gente que trabalha lá. Eu trabalhei lá do comecinho de 1986 até 1988 ou 1989. Comecei como intercalador, que é a pessoa que desenha o intermediário da animação, mas eu queria ser cenarista, pintar os lay-outs de cenário. Depois de um tempo consegui e foi no cargo em que fiquei mais tempo!
Eu saía, voltava… Era muito rebelde nessa época. Nunca cumpria os prazos… Às vezes, eu trabalhava de óculos escuros, passava durex nos meus dedos, para ficar segurando a lapiseira e dormia (risos). Fazia muita palhaçada, tipo funcionário público: colocava minha camisa na cadeira e ia pro cinema. Mesmo assim, aprendi demais, inclusive sobre quadrinhos. O Mauricio tinha uma biblioteca pros funcionários. Às vezes, não ia almoçar, pra ficar lá vendo aquilo.
Acho o Mauricio fascinante, um trabalho coerente. Hoje, eu o respeito muito mais do que quando estava lá.
UHQ: Se fosse convidado para fazer uma HQ de super-heróis, você aceitaria? Teria algum personagem em especial?
Lourenço: Eu teria curiosidade. Há algum tempo, uma pessoa me sugeriu isso. Se eu tivesse a minha liberdade, no meu traço, mesmo que sem mexer no roteiro, acho que seria um desafio interessante. Eu passei a respeitar mais os super-heróis depois que eu li um texto do Mauro (Martinez dos Prazeres, um dos sócios da Devir), no qual ele mostra que, na evolução do mundo, todos os momentos importantes foram acompanhados do surgimento de algum herói.
Agora, se fosse escolher um super-heróis, talvez seria o Homem-Borracha, um de segunda linha, que me atraem mais. Acho que seria legal. O Batman já fizeram mais do que podia. O Homem-Aranha também seria interessante e eu sempre gostei daquele Duende Verde. Seria curioso.
UHQ: Como você vê o atual momento de segmentação do mercado brasileiro, como tiragens menores e vendas em livrarias e bancas especializadas?
Lourenço: Descobri que é o único caminho que funciona para os meus álbuns. Eu não podia depender de revistas, que duravam um, dois, três, no máximo, seis números; e depois demorava um ano pra surgir um novo título. Por isso, comecei a fazer álbuns. Eu sempre falei pros autores que reclamavam por não ter tempo pra fazer quadrinhos: “você tem que fazer álbuns”. Se você fizer um quadrinho por dia, em um certo tempo, terá um álbum. Agora, se ficar reclamando algumas horas por dia, não terá nada! Fico muito feliz que lugares como a FNAC (Nota do UHQ: uma rede de livrarias/centro culturais de São Paulo) esteja respeitando os quadrinhos e abrindo espaço, tratando as HQs de uma forma muito especial… Acho que é um caminho, pelo menos, de sobrevida.
UHQ: Hoje você consegue viver apenas dos quadrinhos?
Lourenço: É preciso ter um outro trabalho. No meu caso, deixei pra minha mulher ter o outro trabalho (risos). Eu vivo só de quadrinhos. Mal, mas vivo.
UHQ: Outro aspecto peculiar do seu trabalho tem sido a ilustração para livros. Quando isso começou? Além dessa, que outras atividades, foras das HQs, você tem exercido?
Lourenço: Não me diga que você viu isso! Eu odeio esse trabalho! Já ilustrei muitas coisas, até de músicos que não gosto, como os Guns N´ Roses, que eu detesto. Fiz coisas de Raul Seixas, porque precisava de grana. Quando pintou esse livro, estava totalmente sem trabalho. Eu detesto o autor, um cara arrogante, medíocre. Me encheu o saco pra fazer, foi uma experiência horrível. Não podia isso, não podia aquilo. Muito chato.
Também tive uma experiência péssima com a SuperInteressante (nota do UHQ: revista sobre ciência, da Editora Abril), que me chamou pra ilustrar uma matéria sobre violência urbana, mas não me deixaram fazer nada. Não entendi por que me convidaram! No fim, botaram o desenho tão rebaixado na página, que você nem o percebia. Atualmente, pego menos coisas que me desagradam. Mas, às vezes, preciso de grana e aí…
UHQ: Qual a sua história predileta?
Lourenço: Tem uma que eu gosto muito, não sei se é a predileta, mas ela veio num surto: estava ilustrando um livro pra Record, trabalhando no meu álbum e, pra me distrair, à noite comecei a rabiscar um papel e me veio uma idéia pra uma história: “Todos são iguais perante a lei”. Eu quase “psico-quadrinizei” essa história. Também curto bastante “A ninguém é dado alegar o desconhecimento da lei”, que saiu na Cybercomix e a trilogia dos álbuns, com o Diomedes.
UHQ: Lourenço, a Argentina, que é muito menor do que o Brasil, tem uma grande tradição de artistas de quadrinhos. Na sua opinião, por que isso não ocorre no Brasil?
Lourenço: A Argentina se espelhou na Europa, isso ajudou muito ter um quadrinho próprio e a descobrir verdadeiros artistas absurdamente talentosos. O Brasil sempre se mirou na América, e aí deu no que deu.
Eu sempre me espelhei na Argentina. É uma coisa engraçada, pois ouço tango desde que nasci. Eu adoro, ouço muito. O sonho do meu pai é colocar um cigarro aceso na mão do Gardel; é o sonho do Diomedes, também. Eu tenho um respeito muito grande pela cultura folclórica deles e do Uruguai. Nunca me mirei na Europa, porque achei que jamais teria condição de publicar meu trabalho lá. Já na Argentina, por ser um lugar próximo, em último caso, eu iria até lá a pé!
UHQ: Você acha possível que ocorra uma “nacionalização” dos quadrinhos?
Lourenço: É difícil… Meu quadrinho é brasileiro. Eu faço exatamente as coisas que eu vivo. Não tenho culpa se eu vivo numa cidade, São Paulo, que não tem identidade. Tem tanta cara, que acaba não tendo nenhuma. Não vou fazer histórias de carnaval, de cara com chapéu de lampião, se essa não é minha realidade, mas pode ser em outra parte do País. Tudo isso é Brasil, por isso, acho difícil encontrar uma unidade, num país de tantas diferenças.
UHQ: O que você acha da nova geração de desenhistas brasileiros? Existe algum artista que você destacaria?
Lourenço: Olha, tenho acompanhado pouco. Tem alguns muito bons, mas que nunca publicaram nada, gente que eu queria muito ajudar a encontrar seu espaço, como o Guilherme Caldas, de Curitiba, e o Judas, de São Paulo.
Do pessoal da Cybercomix, tem o Fido, o Alan Sieber e outros, com coisas bem interessantes. Percebo neles um excesso de agressividade que eu também tinha no começo; e que não gosto de ver no meu trabalho hoje. Talvez isso me incomode um pouco, mas pode se eles forem dosando, aprendendo a usar isso de forma mais sutil, creio que podem crescer muito, pois têm potencial. Embora seja muito aquilo, do underground contemporâneo americano.
Tem também aqueles irmãos, o Fabio Moon e o Gabriel Bá que tem um trabalho interessante, mas totalmente calcado no herói americano. Quem sabe?
UHQ: Você trabalha sempre com roteiros próprios. Existe algum roteirista com quem gostaria de trabalhar?
Lourenço: O Douglas (da Devir), uma vez, me contou uma história que eu quadrinizei e coloquei naCybercomix. Era algo que tinha acontecido com ele. Também já fiz uma parceria com o Glauco Mattoso. Mas não sinto muito prazer, pois se acrescentar um diálogo estarei adulterando o trabalho do cara. A coisa que eu mais gosto no meu trabalho é essa soma, você ter uma idéia, escrever uma história e distribuir isso entre imagem e texto. Prefiro trabalhar sozinho, a não ser que seja uma coisa curta, de repente, uma experiência.
UHQ: Você poderia deixar um recado para a galera que é fã do seu trabalho, Lourenço?
Lourenço: Humm….Compre um livro pra dar pro seu amigo (risos)! Eu agradeço e peço desculpas. Não sei o que dizer. Talvez pra que não me levem muito a sério, também.
Ah, eu queria dar um toque de um espaço que tem no site da Devir, no qual os leitores podem me enviar perguntas.
UHQ: Valeu, Lourenço. Foi muito legal entrevistá-lo para o Universo HQ!
Lourenço: Valeu!
Confira aqui todas os trabalhos solo de Lourenço Mutarelli:
- Transubstanciação, pela Editora Dealer, em 1991
- Desgraçados, pela Editora Vidente, em 1993
- Eu te Amo, Lucimar, pela Editora Vortex, em 1994
- A Confluência da Forquilha, pela Editora Lilás, em 1997
- Seqüelas, pela Devir Editora, em 1998
- O Dobro de Cinco, pela Devir Livraria e Editora, em 1999
- O Rei do Ponto, pela Devir Livraria e Editora, em 2000