As cenas mais citadas dos quadrinhos
Descubra quais as imagens da arte seqüencial que mais aparecem em livros teóricos do mundo todo
Por Nobu Chinen (20/12/05)
Vira e mexe, alguém elabora uma lista com os "mais mais sei lá o quê".
Os melhores filmes, canções, seriados dos anos 70, mulheres mais desejadas
etc. Há alguns meses, a revista Bizz, na sua edição de reestréia,
trouxe a relação das melhores capas de álbuns. Ou seja, disco fonográfico,
categoria que inclui os dinossáuricos LPs e os CDs, que também partem,
agonizantes, rumo a um inevitável processo de extinção.
Antes que alguém imagine que essa mania foi inventada pelo escritor Nick
Hornby, autor de Alta Fidelidade, um fanático por listas de todas
as espécies, é bom lembrar que esse é um hábito de longa data e os antigos
já eram chegados a elaborar um ranking como, por exemplo, a famosa
relação das sete maravilhas do mundo. Quando, quem e como elaborou esse
primeiro top seven, fogem ao escopo desta matéria. Quem tiver curiosidade
que vá pesquisar.
Tentando ser original onde a originalidade é artigo escasso, a intenção
foi criar uma lista própria, com o objetivo de estabelecer qual seria
a página ou a cena dos quadrinhos mais reproduzida em todos os tempos.
Aqui não está se referindo àquelas imagens que foram copiadas aos milhões
em artigos de alto consumo, como a do Garfield dizendo que odeia as segundas-feiras
ou às carinhas do Snoopy, do Mickey, Pato Donald e congêneres que estampam
desde camisetas a canequinhas e penicos, em todos os cantos do planeta.
Também não está se falando de certas ilustrações como o famoso perfil
do Dick Tracy com lapela e chapéu amarelos e gravata listrada sobre fundo
azul royal ou a do Spirit visto de frente correndo, que acabaram
se tornando ícones da cultura pop.
O tipo de cena a que esta lista se refere é a que os autores de livros
sobre HQs recorrem para ilustrar seus textos, aquelas imagens que, por
seu valor histórico ou estético, ou ainda, por seu visual arrojado, passaram
para a história dos quadrinhos, literalmente.
Numa pesquisa feita em 300 livros de estudo sobre as HQs, de diferentes
países, épocas e idiomas, foi feito o levantamento para saber quais cenas
eram mais recorrentes para exemplificar o trabalho de um e/ou outro autor.
Parecia certo que séries com mais prestígio ou de maior apelo popular
deveriam, em tese, emplacar os principais vencedores. Krazy Kat, Buck
Rogers, Superman, Batman, Peanuts, entre outros, são obrigatórios em todo
livro teórico sobre HQ que se preze, e de fato, são citados em todos os
volumes pesquisados, com exceção das obras dedicadas a um único artista/personagem
ou tema.
No entanto, desses há uma variedade imensa de imagens e cenas para representá-los
e que não costumam se repetir muito. A bibliografia final resultou em
72 livros que trazem uma ou mais cenas que constam da lista.
Na ausência de um precedente, foi estabelecido, arbitrariamente,
um limite mínimo, fixado em cinco menções. A partir dessa quantidade,
a cena entraria na relação. Dessa forma, não há esse negócio de "As 7
Mais", nem as 8 ou 10. No total foram selecionadas 17 imagens.
Como houve muitos casos de empate, a classificação acabou contemplando
nove colocações, sendo a nona correspondente àquelas que apareceram cinco
vezes, o número mínimo. A pesquisa foi realizada em outubro de 2005, portanto,
contempla livros lançados até essa data.
Quanto mais vezes melhor
Na nona posição ficaram quatro cenas.
A primeira é a página de abertura da aventura de The Spirit, de
Will Eisner, datada de 2 de outubro de 1949.
Também em nono, aparece a cena desenhada por Alex Raymond, na qual Flash
Gordon esgrime com o Imperador Ming, da página dominical de 14 de agosto
de 1938.
Igual colocação teve uma página de autoria de Winsor McCay, da celebrada
série Little Nemo in Slumberland, de 23 de fevereiro de 1908. Nela,
Nemo e seu dois companheiros de aventuras Imp e Flip caminham pelas paredes
internas e abóbadas de um palácio tombado, não no sentido de protegido
pelo Patrimônio Histórico, mas caído mesmo.
Uma cena isolada e provavelmente concebida como simples ilustração também
teve cinco citações. É a de Milton Caniff para Terry e os Piratas,
um soberbo trabalho de formas e sombras, uma marca registrada de seu estilo
claro-escuro que lhe faz jus à fama de Rembrandt das HQs.
Perto dos melhores trabalhos de Caniff, o Sin City de Frank Miller
é um primitivo amontoado de borrões, brincadeira de criança. Para quem
duvidar é só conferir pra ver. Em oitavo lugar, com seis menções, há outras
quatro cenas.
A página de Yellow Kid na academia de ginástica, de 27 de setembro
de 1986, e que seria a penúltima do personagem desenhada por seu criador,
Richard Felton Oultcault, para o jornal New York World.
Oultcault e o Yellow Kid estavam se transferindo para o concorrente
New York Journal, de William Randolph Hearst. Na página há uma
intervenção de um personagem grotesco no canto superior direito, no traço
do substituto do autor, o desenhista Geo B. Luks. Como peculiaridade,
há duas assinaturas: a do desenhista antigo e a de seu sucessor.
A cena de abertura de A Balada do Mar Salgado, de 1967, de autoria
de outro mestre das sombras, e das luzes obviamente, Hugo Pratt, também
apareceu em meia dúzia de livros.
De Caniff também é a terceira cena com seis menções, a da seqüência da
morte da personagem Raven, na série Terry e os Piratas, publicada
entre 13 a 17 de outubro de 1941. Uma verdadeira aula de como se criar
tensão com um eficiente jogo de planos e pontos de vista, e praticamente
sem palavras.
Completando o time das seis menções, a impressionante
página em "câmera subjetiva" de Dreams of the Rarebit Fiend, de
Winsor McCay, de 25 de fevereiro de 1905, que mostra o ponto de vista
de alguém que está sendo sepultado. Uma composição idêntica, ou por ela
inspirada, foi criada por Johnny Craig, num episódio publicado na década
de 1950 por uma das revistas da EC Comics.
Em sétimo lugar, com sete menções, está uma cena que sintetiza toda a
dinamicidade da série Príncipe Valente impressa pelo seu autor
Hal Foster. Na verdade, embora pertença ao "arco" (está na moda chamar
assim) referente à invasão dos hunos, que corresponde mais ou menos ao
período de 1941 na série, ela não foi extraída de nenhuma página dominical,
mas produzida especialmente para figurar em uma coletânea, em 1952.
Em sexto, com oito menções, vem a famosa primeira página de Steve Canyon,
de Milton Caniff, de 19 de janeiro de 1947, analisada vinheta por vinheta
por Umberto Eco, em seu livro Apocalípticos e Integrados.
Nela, o autor habilmente vai construindo as características do protagonista
apenas pelo diálogo com outros personagens, antes de revelar a sua face,
quase na metade da página.
Em quinto, com nove aparições, está a primeira página do episódio Lorelei
Rox, outra aventura do Spirit, de 19 de setembro de 1948, uma seqüência
toda na penumbra que mostra o detetive entrando no gabinete do Inspetor
Dolan. Lembra a iluminação dos filmes noir e o cartunista e escritor
Jules Feiffer a classificou como exemplo de expressionismo alemão transposto
para os quadrinhos.
Em quarto lugar há três cenas, com dez menções. Uma delas é a magistral
composição em que Val, da série Príncipe Valente, de Hal Foster, enfrenta
sozinho todo um batalhão de inimigos para proteger a passagem sobre uma
ponte. Ela pertence à página dominical de 19 de junho de 1938, servindo-lhe
como última vinheta.
A outra é uma história completa, um clássico do Spirit preferido por inúmeros
críticos que vêem nessa HQ uma poderosa metáfora dos talentos não reconhecidos
ou não revelados: o episódio de Gerhard Shnobble, de 5 de setembro de
1948. Dela, normalmente, são reproduzidas a primeira ou a última vinheta,
mas cenas intermediárias também são usadas por alguns autores. Álvaro
de Moya, no livro Shazam, apesar de não reproduzir nenhuma cena,
faz um relato e uma análise da história.
E a última mostra a personagem Barbarella, de Jean Claude Forest, na cama
ao lado de um robô, após terem transado, de 1962. Na época, ela simbolizava
o máximo de ousadia e unia temas que marcaram a década de 1960: a liberação
feminina, a revolução sexual e os avanços da tecnologia cibernética.
A terceira colocação pertence ao mestre Caniff, cuja página de Terry
e os Piratas, de 17 de outubro de 1943, teve 11 menções. Nela, o Coronel
Flip Corkin faz um discurso elogioso às forças armadas para Terry, incitando-o
a cumprir sua missão e agir como um soldado patriota.
Uma passagem condizente com o momento histórico vivido pelos Estados Unidos,
na época, bastante envolvidos na Segunda Guerra Mundial. Por esse motivo,
a página foi reproduzida nos anais do Congresso norte-americano.
Ocupando o segundo lugar, aparece, novamente, Yellow Kid, de Richard
Fenton Outcault. Considerada por muitos a primeira HQ de todos os tempos,
sempre é mencionada pelos estudiosos e a página do personagem que aparece
com mais freqüência é a Takes a Hand at Golf, de 24 de outubro
de 1897, com 16 reproduções.
And the winner is...
Finalmente, em primeiríssimo lugar e disparada na frente está a famosa
e deslumbrante página de Little Nemo in Slumberland, de McCay,
na qual o protagonista Nemo e seu amigo Flip fazem um passeio pelas ruas
de uma grande cidade, montados numa cama dotada de enormes pés que se
movimentam.
Ela foi publicada originalmente em 26 de julho de 1908 e aparece em nada
menos que 21 livros, inclusive entre as imagens que ilustram o verbete
Quadrinhos da Enciclopédia Mirador. Não chega a ser tão
onipresente quanto a Monalisa em livros sobre a dita arte séria, mas,
proporcionalmente, é quase tão constante quanto a Vênus das Águas, de
Botticelli e mais do que qualquer um dos quadros de Van Gogh.
Em alguns livros, a página é reproduzida inteira em todo seu esplendor
e beleza. Em outros, apenas algumas vinhetas mais significativas e, em
duas das ocasiões, aparece apenas o último quadrinho que, aliás, não tem
nada de particularmente especial, sendo semelhante a inúmeros outros desfechos
que Winsor McCay desenhou para a série.
John Canemaker, em seu livro Winsor McCay. His Life and Art, uma
magnífica biografia do cartunista, atribui à página um tom anticlerical,
pois, como observa, a mágica e a fantasia do passeio são abruptamente
interrompidos quando um dos pés da cama enrosca na torre de uma igreja.
Simbolismos à parte, trata-se de um dos mais instigantes e belos trabalhos
do autor.
A página, ou parte dela também serviu de base para análise do estudioso
italiano Daniele Barbieri, no excelente livro Los Lenguajes del Cómic.
No capítulo em que compara os quadrinhos ao cinema, ele a cita como exemplo
de plano-seqüência.
O crítico Sebastião Uchoa Leite, no livro de ensaios Jogos e Enganos,
dedica um dos capítulos a analisar uma outra série de McCay, Dreams
of the Rarebit Fiend, classificando os sonhos em categorias que, segundo
o próprio autor, também servem para analisar Little Nemo, embora
enxergue nessa série um lirismo e uma poesia que contrastam com o clima
de tensão e inadequação que marcam a outra.
Outro que não resistiu ao encanto dessa página foi Art
Spiegelman, que se detém a analisá-la duas vezes, conforme mostrado no
livro Quadrinhos, Ensaios, Gráficos e Fragmentos, editado no Brasil
como um livro-catálogo da exposição de suas obras.
Apesar
de cultuadíssima, Little Nemo é uma HQ pouco divulgada entre os
leitores brasileiros, principalmente os mais jovens, e quem quiser conhecê-la
precisa recorrer a material importado.
Da década de 1970 para cá, foram lançados álbuns de luxo com coletânea
das páginas do personagem nos Estados Unidos e na França. No Brasil, ele
saiu ainda no início do século 20, inclusive na revista O
Tico-Tico, mas as publicações mais recentes do personagem ocorreram
no Almanaque do Gibi Nostalgia de 1975, que teve 11 páginas da
série, entre elas a nossa campeã. E a revista Eureka,
da extinta Vecchi, na edição 11, de 1978, trouxe uma única página.
Fora isso, mais nada.
Este foi o resultado da pesquisa. Para os que eventualmente possam achar
esse método discutível, os parâmetros adotados foram os mais precisos,
para não dar margens a subjetividades. Portanto, as cenas escolhidas não
são necessariamente as que são consideradas as melhores ou mais bonitas.
O critério usado é idêntico ao que a comunidade científica
costuma usar: consignar o número de citações que um pesquisador acumula
em publicações especializadas.
Para
conhecer a bibliografia consultada e a relação completa das menções referentes
a cada cena listada, clique aqui.
Talvez não haja nenhuma finalidade prática para um levantamento como este
que, por sinal, é fruto de um trabalho que exigiu extenuante pesquisa.
Pode, quem sabe, servir para indicar que, se tantos e diferentes especialistas
escolheram as cenas aqui citadas, é porque deve valer a pena conhecer
as obras mencionadas e o talento de seus incríveis autores ou, no mínimo,
para enriquecer a sua cultura de almanaque.
A propósito, você sabe dizer de memória quais são as Sete
Maravilhas do Mundo?
Nobu Chinen é redator publicitário e sabe de cor as Sete Maravilhas,
mas ainda não conseguiu decorar os doze trabalhos de Hércules