Capitão América: Herói ou Vilão?
É grande a polêmica sobre o status quo do famoso personagem nos dias de hoje. Confira uma retrospectiva da carreira do Sentinela da Liberdade, e tire suas próprias conclusões
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Pesquisa recentemente divulgada pela rede norte-americana NBC aponta que, no mundo inteiro, cresceu a antipatia contra os norte-americanos, e principalmente contra o governo Bush. Um dos motivos mais recentes para essa nova onda de "antiimperialismo ianque" foi a invasão ao Iraque. Nem mesmo o fato de Saddam Hussein ser um dos ditadores mais sanguinários da História, tornou menor a indignação contra a morte de milhares de civis inocentes no conflito, os abusos das tropas aliadas durante a "guerra" ou a falta de provas de que Hussein era mesmo uma ameaça a paz mundial.
As conseqüências desse sentimento antiestadunidense fazem-se sentir até mesmo nas HQs. Enquanto os mangás - quadrinhos japoneses - ocupam mais e mais os corações dos leitores e são sinônimos de boas vendas, mesmo com qualidade renovada os tradicionais "comics" - quadrinhos norte-americanos - têm suas tiragens reduzidas.
Os brasileiros vivem um momento histórico de recuperação de uma "identidade nacional", e parte desse "novo nacionalismo" se manifesta muitas vezes em xenofobia aos estadunidenses: a mesma pesquisa da NBC aponta o Brasil como o terceiro país do mundo onde a população tem maiores sentimentos anti norte-americanos.
Um capítulo especial dessa polêmica no mundo das HQs vem se dando nas revistas da Marvel/Panini do Brasil, onde alguns leitores se manifestaram para que a editora pare de publicar as histórias do Capitão América em nosso país, devido ao conteúdo "político" da atual série do personagem. Segundo esses leitores, essas histórias seriam "propaganda velada" da política de intervenção estadunidense nos demais países e também estariam passando a idéia de que os terroristas árabes estariam totalmente errados no conflito, enquanto os norte-americanos seriam "os santos".
Não é a primeira vez que o Capitão América é acusado de "imperialista". Uma das acusações que muitos estudiosos em Comunicação sempre fizeram contra os comics foi de seu papel enquanto "propaganda ideológica". Um dos maiores alvos nessa crítica sempre foi o Capitão América, personagem que, mais que qualquer outro, carrega o estigma de ser norte-americano: além da bandeira dos EUA ser o seu uniforme, até o aniversário do personagem seria em 04 de julho, dia em que se comemora a independência do país!
Segundo muitos estudiosos, o Capitão seria a síntese da ideologia militarista norte-americana: um herói intervencionista, que toma a justiça pelas próprias mãos, contra governos estrangeiros que representariam "o mal", justamente por seguirem outro modo de vida que não o norte-americano. A única arma usada pelo Capitão - um escudo - representaria a idéia de que os EUA só atacam para se defender; o fato do Capitão agir de forma independente - do governo ou de instituições - faz parte da ideologia liberal capitalista da "livre iniciativa", onde pessoas vestem uniformes e saem caçando criminosos (no caso do Capitão, espiões e agentes terroristas) por sua própria conta.
Assim como todo e qualquer personagem de ficção, o Capitão América é fruto de uma época em especial, foi criado em determinada situação histórica, refletindo assim seu ambiente sócio-econômico. Como personagem típico de HQs norte-americanas, o Capitão continuou sendo publicado através dos anos, em diversos momentos históricos e políticos diferentes, refletindo cada um deles. Ou seja, o personagem sempre foi o retrato de seus criadores, não haveria um "Capitão América" pronto, definitivo, mas uma personagem que expressa mais o que pensam seus atuais autores e editores do que um projeto pronto e acabado.
Quem foi o Capitão América?
Quando
o personagem foi criado, em março de 1941, os Estados Unidos estavam às vésperas de entrarem na II Guerra Mundial. Embora se costume culpar o "ataque traiçoeiro" dos japoneses à base de Pearl Harbor, o certo é que há algum tempo as autoridades militares e políticas estadunidenses já haviam escolhido seu lado na Guerra, só precisavam do motivo certo para angariar o apoio da Opinião Pública. Diversos personagens da ficção - rádio, cinema, pulps, histórias em quadrinhos - já estavam fazendo seu trabalho, pintando os alemães e japoneses como vilões facínoras e denunciando os "espiões" e "traidores" entre a própria população.
A editora Timely Comics (que viria a se tornar a Marvel) entrou no clima, e encomendou ao estúdio de Joe Simon e Jack Kirby um personagem que encarnasse os "ideais" do país, alguém que fosse um "Super-Americano". Os motivos eram puramente editoriais: um personagem "patriota" deveria fazer muito sucesso entre as crianças norte-americanas, já que as convocações em massa estavam sendo realizadas, e dificilmente havia uma família na América onde não houvesse um pai, um tio ou um irmão maior na lista de convocados.
Simon e Kirby decidiram transformar um desses soldados no seu "super-herói". Baseados numa nota publicada num jornal, sobre um jovem que queria se alistar mesmo que o departamento médico do exército o tivesse considerado inapto, os criadores elaboraram a origem do herói: ele seria um voluntário franzino de um experimento secreto do governo para criar um supersoldado para as tropas norte-americanas. Infelizmente o cientista que elaborou o experimento seria morto por um espião nazista, razão esta que só haveria um supersoldado, e este seria o Capitão América.
Kirby projetou o visual clássico do personagem, vestindo-o com as cores da bandeira dos Estados Unidos, e dando-lhe um escudo como única arma, símbolo de que ele só atacava para se "defender" e também porque o uso de armas de fogo por um personagem que deveria ser "modelo" para as crianças era visto como tabu naquela época.
O Capitão ganhou um pré-adolescente como parceiro, Buck, uma cópia descarada de Robin, com quem os leitores se identificariam. Sidekicks eram comuns naquela época, e praticamente uma "obrigação editorial" em histórias de super-heróis.
A identidade secreta do Capitão América era Steve Rogers, e, apesar de ser o Capitão América, ele se disfarçava como um simples e incompetente soldado de um destacamento do exército estadunidense. Seria por essa "identificação" em especial para com o personagem, que mais tarde o Capitão América também se tornaria popular entre os combatentes, e não somente entre as crianças nos EUA. O próprio Exército chegou a comprar e encomendar edições da revista para que ela fosse distribuída para suas tropas e servisse de "inspiração".
E que inspiração as histórias do Capitão América eram! Apresentando os alemães e japoneses como facínoras, burros e sanguinários, as histórias eram recheadas de ação e de bandidos antológicos, como o Caveira Vermelha e o Barão Zemo.
Sim, era estranho que a "raça ariana perfeita" que pregava o nazismo tivesse gente deformada e aterrorizante como o Caveira Vermelha como modelo e "herói", mas essa história estava sendo contada pelos norte-americanos e não pelos alemães. Os meios de comunicação trataram a II Guerra Mundial como um simples confronto entre o bem e o mal, e esse maniqueísmo foi muito forte nas histórias do Capitão. Mas mais do que isso, essas histórias estabeleceram o primeiro "super-herói" político de fato, onde não havia mensagens implícitas ou meios termos: Steve Rogers dizia com todas as letras que era o defensor da democracia, da justiça e do modo de vida americano.
Finda a Guerra e o herói teve de voltar para casa. Qual seria a solução? Transformaram-no em combatente do crime, como tantos por aí - bem mais competentes, diga-se de passagem. Tanto é que o herói não aguentou a concorrência na nova "linha de trabalho", e sua revista foi cancelada em 1948, em meio a crise de vendas que também seria uma das causas do fim da chamada "Era de Ouro das HQs".
Em 1954 tentou-se uma "ressurreição" do título, voltando ao tema "político". Agora o Capitão América e seu parceiro Buck enfrentam agentes e espiões comunistas. Estamos na Guerra Fria e muitos outros personagens das HQs e do cinema foram chamados para desempenharem seu papel na luta contra a "opressão e subversão" vermelhas. Chegaram, inclusive, a transformar o Caveira Vermelha em agente comunista, afinal os autores de HQs e norte-americanos médios nunca foram especialistas em política, nem teriam como saber das diferenças irreconciliáveis entre nazistas (extrema-direita) e comunistas (extrema-esquerda). Bastava dizer que eram todos iguais, que comunistas e nazistas eram sanguinários, facínoras, covardes e burros.
Não deu certo. Após três anos, o herói foi novamente aposentado pelas baixíssimas vendas. A figura do herói como "anticomunista" não colou tanto quanto a do Superman, por exemplo, que na mesma época lutou contra a "ameaça vermelha" com mais sucesso.
Chegam os anos 60, e os EUA vivem outro momento político. Depois da "Caça as bruxas" e a paranóia anticomunista dos anos 50, são agora tempos de "abertura". A luta pelos direitos civis, principalmente das minorias, ganha força, tendo como ícones Martin Luther King, John Kennedy e o movimento hippie. Nas HQs, surge a Marvel Comics (antiga Timely), que humaniza o mito dos super-heróis.
A medida em que novos heróis vão surgindo, a Marvel se volta para seu passado e traz de volta alguns de seus antigos personagens, entre eles, o até então aposentado Capitão América. Stan Lee resolve dar uma nova chance ao antigo herói, o colocando na superequipe "Vingadores" ao lado de Homem de Ferro, Thor, Homem Formiga e Vespa. Em Avengers # 4 (1964) é explicado que o herói não envelhecera porque havia sido congelado ao final da II Guerra Mundial. Ou seja, resolveram desconsiderar a diáfana fase do personagem nos anos 50. O Capitão América "macarthista" seria outro, não Steve Rogers.
Isso quer dizer que o Capitão não enfrentava a "ameaça comunista" nos anos 60? É claro que sim, mas essa não era sua prioridade. Stan Lee o via como um super-herói que havia se tornado mais do que humano não por ter superpoderes, mas por ter um "supercaráter". Apesar de ser um cara "normal", o Capitão era tratado como um herói absoluto e invencível, longe de dúvidas e de falhas, bem ao contrário de outro ícone da editora, o Homem-Aranha, que apesar dos superpoderes era tão suscetível de falhas como qualquer um de nós.
Nesse cenário ainda de Guerra Fria, o Capitão teve alguns atritos contra espiões comunistas, chineses ou soviéticos, mas esse nunca foi o "centro" de suas histórias. Como o próprio Stan Lee reconheceu muitos anos mais tarde, a Guerra Fria era mais do que um confronto entre o bem e o mal, por isso essas histórias não "funcionavam tão bem quanto aquelas contra os nazistas". Afinal, não haveria ninguém em sã consciência que apoiasse a causa nazista, quando esta estava tão identificada com o genocídio e o preconceito. A solução? Trazer os nazistas de volta, sobre a forma de velhos vilões como o Caveira Vermelha e o Barão Zemo, e também com a criação da Hidra, organização terrorista neonazista, com objetivo de dominar o mundo.
Essas histórias de fins dos anos 60 em muito se assemelhavam com outro sucesso de mídia: James Bond. Assim como 007, o Capitão América lutava contra organizações criminosas espalhafatosas, que abusavam de equipamentos de alta tecnologia, e até convivia com sedutoras espiãs, como a sua namorada de então, Sharon Carter, agente da Shield - o equivalente Marvel ultratecnológico à Cia.
Mas voltando a luta pelos direitos civis: em tempos de Martin Luther King, Malcom X e Panteras Negras, porque não identificar o Símbolo da Liberdade também com a luta de emancipação das minorias? Assim, no fim dos anos 60, o Capitão trocou de parceiro: ao invés de Buck - agora vivido pelo adolescente Rick Jones - foi apresentado aos leitores Sam Wilson, o Falcão. Negro, ex-marginal, e militante da luta de seu povo, Sam foi um legítimo representante dos guetos nas histórias do Capitão. Ao invés de um "discípulo", o Falcão era realmente um parceiro para Steve Rogers, lutando juntos, de igual para igual, por um país melhor, livre do Caveira Vermelha, da Hidra, ou outros facínoras.
Nos anos 70, a derrota na Guerra do Vietnã e o Escândalo Watergate - que derrubou o presidente Nixon - colocaram a tal "consciência americana" em crise. Com o Capitão não foi diferente. Nas páginas de sua revista, aparecia uma nova organização criminosa - O Império Secreto. Ao contrário da Hidra, o Império era formado por criminosos norte-americanos que pretendiam tomar o poder nos EUA e no mundo, e, pior do que isso, ao fim da série de lutas contra o Império, o Capitão América chega até o misterioso líder da Organização, nada mais, nada menos, que um Chefe de Gabinete da Casa Branca, uma das figuras mais respeitadas do país.
Em "crise de valores", Steve Rogers abandona o uniforme de Capitão América e passa a circular o país sob a identidade de "Nômade", procurando a verdadeira "alma" da América. Após esse período de "auto-exílio", o herói retorna sua identidade como Capitão e define que sua luta não é por nenhum governo ou política, mas sim pela gente simples e comum, que vive em cada cidade e em cada região do grande território dos Estados Unidos.
Essa "mudança de orientação" teria transformado o Capitão América num super-herói comum, não fosse continuar usando as roupas e o "nome" da América. Nos anos 80, em meio aos escândalos da Nicarágua e do Irã-Contras, mais uma vez a consciência norte-americana sofria um duro golpe, e isso iria se refletir nas páginas de Capitão América, numa das melhores fases já escritas para o personagem.
Numa trama brilhantemente elaborada pelo roteirista Mark Gruenwald, Steve Rogers é pressionado por uma Comissão de Assuntos Super-humanos para que passe a trabalhar sob os auspícios do governo, uma vez que seu uniforme, seu escudo e seu nome foram criados pelo Governo dos Estados Unidos.
Indisposto a seguir ordens que poderiam fazer com que colaborasse na queda de regimes de outros países, a fazer espionagem contra outros povos e a participar talvez de lutas e ações injustas, Steve Rogers decide ceder seu "cargo". O discurso proferido por ele nesta ocasião é de uma simbologia toda especial, porque definiria por completo quem realmente é o Capitão América e o que ele defende:
"Eu não represento os Estados Unidos, o presidente dos EUA faz isso. Por toda minha vida o que representei e o que lutei foram os ideais pelos quais foram fundados o nosso país: os ideais de liberdade, justiça e igualdade, que são comuns a todos os povos, e não só o norte-americano. Se eu aceitasse as regras da Comissão estaria traindo esses ideais. Por isso não poderia continuar sendo o Capitão América".
Enquanto a Comissão escolhe um substituto para Steve Rogers - um individuo militarista e sem escrúpulos, perfeito seguidor de ordens, que interpreta aquele Capitão América que os estudiosos em comunicação tanto falam -, o herói original segue sua luta, adotando uma nova identidade, um uniforme semelhante, mas com as cores vermelho, branco e preto (representando luto, talvez?).
Por quase um ano, o confronto ideológico entre o novo Capitão América (John Walker) e Steve Rogers, o Capitão original, permeou as páginas da revista, reinterpretando as motivações do personagem e seu papel no universo dos Quadrinhos.
No final da saga foi revelado que o Caveira Vermelha - que havia adquirido uma identidade civil de alta respeitabilidade no governo norte americano - havia manipulado a Comissão para que destituíssem Steve Rogers do seu papel de Capitão América.
Ou seja, os próprios Estados Unidos estavam nas mãos do maior Inimigo da justiça, da liberdade e do "modo de vida americano".
Caveira desmascarado, Steve Rogers volta ao uniforme e a identidade de Capitão América, assumindo agora o papel de comandante máximo dos Vingadores.
Crise e Queda de um mito
Após esse "debate ideológico" intenso entre conservadores e liberais nas páginas de Capitão América, o herói voltou a linha de trabalho "super-herói".
Mais uma vez, esse papel não lhe caiu bem e as vendas despencaram outra vez. Mas mais do que isso, a queda nas vendas pode também ter sido reflexo do clima político em que viviam os EUA nos anos 90. Enquanto super-heróis "durões" como Spawn, Motoqueiro Fantasma, Wolverine, Lobo, entre outros, cresciam em vendas e popularidade, o Capitão América era quase uma peça de museu.
A idéia de globalização ganhava a mídia com força e pregava um mundo sem fronteiras; o neoliberalismo aposentava o conceito de Estado e paralelamente atacava o nacionalismo; as idéias coletivas - e o nacionalismo sempre foi uma delas - perdiam espaço frente a propaganda individualista.
Se em países de terceiro mundo o nacionalismo já teve dias melhores, no chamado "primeiro mundo" não foi diferente. A bandeira norte-americana foi aposentada por uma nova geração que tinha como pátria não o mundo, mas a si próprios. Ao invés das liberdades civis, surgiam programas de segurança que tinham como principais alvos minorias, como o "tolerância zero"; o movimento neonazista crescia em proporções assustadoras, em resposta a tudo isso. Que chances teriam o pobre Steve Rogers e seus ideais de democracia, justiça e modo de vida americano?
A
Marvel tentou uma saída com a contratação da dupla Mark Waid / Ron Garney, que tentaram trazer de volta os temas políticos como "pano de fundo". Na primeira saga, o Capitão América é salvo pelo próprio Caveira Vermelha, que precisa da aliança do Capitão contra uma ameaça ainda pior: o próprio Adolf Hitler, cuja consciência fora aprisionada dentro do Cubo Cósmico, artefato de possibilidades mitológicas, capaz de redefinir a realidade e transformar a América num pesadelo nazista.
A saga a seguir foi a premiada Homem Sem Pátria, na qual Steve Rogers era acusado de traidor, desterrado do seu país e novamente perdia o uniforme e a identidade de Capitão América. No final, provou-se que o Capitão América não tinha traído ninguém, mas sim sua mente havia sido "lida" pelo vilão conhecido como Mecannus. Num final simbólico, o próprio Bill Clinton devolve o escudo para o Capitão América, dizendo que ninguém mais poderia representar esse papel.
Ainda sim, apesar das vendas melhorarem, os editores queriam os números astronômicos que tantas outras publicações detinham. Numa burrice sem par, articularam o bizarro projeto Heróis Renascem, na qual a continuidade de seus mais tradicionais personagens era zerada. Para trabalhar um "novo" Capitão, foi chamado ninguém mais, ninguém menos, que o nefasto Rob Liefeld (figura ameaçada de morte por 11 em cada 10 leitores de quadrinhos). Liefeld é conhecido nas industria de HQs como um dos símbolos da Era Image - ou seja, super-heróis de moral dúbia, de proporções anatômicas impossíveis, e de capacidade intelectual questionável.
Apesar do desastroso traço de Rob Liefeld, e das muitas idéias idiotas que trazia para a nova série, ele deu uma dentro: percebeu que "política" era o pano de fundo natural das histórias do Capitão. Não adiantava fazer com que ele funcionasse como simples super-herói, isso nunca tinha dado certo. Naquele momento, grupos neonazistas pipocavam em todo canto pela Europa e Estados Unidos, e esses foram os vilões escolhidos para serem os antagonistas máximos de Steve Rogers.
Por trás disso, vilões como Caveira Vermelha e Barão Zemo estariam manipulando tudo, se aproveitando do ódio dos jovens norte-americanos contra negros, judeus e latinos. Infelizmente, Liefeld nunca foi conhecido por ser um roteirista muito talentoso... após oito meses, a Marvel reincidia seu contrato, insatisfeita com as vendas e resultados. A série foi assumida pelos estúdios Wildstorm (de Jim Lee) até que a editora (graças a deus!) acabasse de vez com o malfadado projeto.
Tentou-se uma volta com a dupla Mark Waid e Ron Garney, mas mesmo essas histórias não tinham o brilho da primeira fase da dupla, ainda que apresentassem qualidade bem razoável, e ainda trouxessem a discussão dos ideais do Capitão como pano de fundo. Após um ano e meio, a dupla estava novamente fora do título, e então a série foi para a batuta de um "especialista" em super-heróis, o roteirista e desenhista Dar Jurgens, conhecido por seus trabalhos em Superman e Thor. Novamente a linha "super-herói contra supervilões" foi adotada, e novamente o Capitão conheceu uma franca decadência.
O Capitão América pós 11 de Setembro
Foi
quando Joe Quesada assumiu como editor-chefe e decidiu "pôr ordem" na "Casa das Idéias". Primeiro trabalhou com os títulos líderes de venda da editora (X-Men e Homem Aranha), para depois se concentrar em outros "personagens referência".
No caso do Capitão América foi decidido cancelar a revista regular do herói e criar uma nova série, agora sob o selo Marvel Knigths - publicações mais "adultas" e mais "realistas" com os tradicionais personagens da editora. Para essa nova visão do personagem, mais humanista e apresentando temas políticos, foram contratados o roteirista John Ney Rieber e o desenhista John Cassaday, ambos selecionados entre uma dezena de candidatos ávidos por trabalhar com o velho Capitão.
Foi no meio desse processo que ocorreram os atentados ao World Trade Center: como se a Marvel ganhasse na loteria! Rapidamente, a editora lançou uma campanha na internet e em cartazes espalhados por Nova York, convocando as pessoas para doarem sangue para ajudarem no resgate das vítimas: adivinha quem ocupava 70 % do cartaz, "chamando os americanos nessa hora de necessidade"!
A sacada rápida de Joe Quesada gerou resultados, e com a volta do nacionalismo exacerbado, das bandeiras nos pátios e do espírito beligerante dos norte-americanos, o Capitão América parecia ter o terreno pronto para ocupar de novo o coração do jovem leitor estadunidense. Mas, o que parecia um "auspício" de uma gloriosa nova fase na vida do "Sentinela da Liberdade", mostrou-se como início de uma série de problemas que até hoje atingem o titulo.
John Ney Rieber tem pinta de pacifista. O escritor ganhou notoriedade com seu excelente trabalho em The Books of Magic, no qual mais do que a saga do menino que se tornaria "o maior mago da Terra", na verdade, contou uma fábula sobre a adolescência, os passos de uma criança rumo à maturidade. O profundo sentimento humano no texto introspectivo de Rieber foi considerado como o ideal pelos editores Stuar Moore e Joe Quesada para a nova série que pretendiam para o Capitão. Mas a série que se imaginava anteriormente ao WTC era uma série de tempos de paz, com um Capitão América voltado para si e questionando os valores do "modo de vida americano".
O alinhamento da Marvel à "Guerra ao terrorismo" fatalmente empurraria o Capitão América a uma direção contrária daquela pretendida por Rieber & Cassaday. Ao invés de um pacifista introspectivo, o Capitão agora obrigatoriamente já era apresentado no primeiro número da nova série como um "guerreiro reticente", alguém que faz "guerra pela paz", que luta contra o terrorismo porque nada justifica a morte de vítimas inocentes. Ainda assim, mesmo essa nova orientação editorial, não impediu Rieber de tecer fortes críticas ao militarismo norte-americano - a verdadeira causa do terrorismo, na sua opinião.
Já em Capitão América # 1 (Marvel 2002 # 10), Rieber mostra o Capitão defendendo um nova-iorquino descendente de árabes de um ataque de exaltados xenófobos norte-americanos: "Guardem suas forças para o verdadeiro inimigo", diz ele. Não bastasse isso, Rieber constrói uma saga na qual mostra que as armas de alta tecnologia usada pelos terroristas foram de fabricação norte-americana. A crítica à Indústria da Guerra vai além: Num confronto contra um grupo terrorista, o Capitão ainda é obrigado a ouvir, pela boca do líder do bando, que a "América estava colhendo o que plantou". Cenas de vilas palestinas e asiáticas destruídas permeiam a história, mostrando que, na verdade, o terrorismo é conseqüência de um outro tipo de terror, plantado pelos próprios norte-americanos.
O programa básico de Rieber agora era levar o Capitão América para uma "volta ao mundo". Mostrar as barbaridades que os militares norte-americanos tinham aprontado globo afora, e porque tanta gente odeia os Estados Unidos. Colocar em questionamento o que é o tal de "sonho americano".
Numa primeira etapa, o herói vai até a Alemanha, e visita uma cidade onde combateu na Segunda Guerra Mundial. Dai então, vemos de forma surpreendente, o Capitão lembrando de como os Aliados mataram milhares de civis, mulheres e crianças alemãs, para poder derrotar os nazistas. Não são poupados detalhes daquelas mortes, nem o remorso do Capitão, ao refletir que é sempre o povo quem paga nesse tipo de conflito.
Nem é preciso dizer que essa história (Marvel 2003 # 3) promoveu o maior bafafá dentro da Marvel. Reza a lenda que Joe Quesada ficou tão irado que passou a interferir diretamente no titulo. Já na edição seis, a tal "volta ao mundo" do Capitão é interrompida, ficando na Alemanha mesmo, antes que mais danos pudessem ser feitos à "imagem americana". Afinal, em época de guerra, não cabe lembrar aos leitores que as tropas americanas também matam civis, mulheres e crianças, mundo afora.
Como se não bastasse, o Capitão ainda passa um discurso moralista para cima do súbito "líder terrorista" revelado, num clima que destoa completamente daquele apresentado nas edições anteriores: sinal claro de intervenção editorial (confira em Marvel 2003 # 4). Assim, Captain América # 6 foi a última edição desenhada por John Cassaday, que teve de redesenhar páginas da história em questão, e se mostrou indisposto a continuar fazendo um trabalho regular num título tão atribulado, preferindo ficar somente com as capas.
Quanto ao roteirista John Ney Rieber, a partir daí teve mais atritos com Joe Quesada, a ponto do editor chamar seu amigo Chuck Austen (autor da "patriótica" The Call of Dutty) para ser parceiro de Rieber no título, começando na edição # 9. Recentemente, foi anunciado que Austen substituirá Rieber em definitivo a partir da edição # 14. Sobre sua saída, John Rieber admitiu que ocorreu em virtude dos conflitos editoriais: "O Capitão América que eu estou escrevendo não é o Capitão América que eles querem. A minha saída é o melhor para todos", chegou a dizer.
Chuck Austen já havia sido cogitado para escrever a nova série do Capitão, mas os editores Stuart Moore e o próprio Joe Quesada haviam preferido as idéias de Rieber. A proposta de Austen, conforme ele próprio admitiu, é fazer um "Capitão América mais ativo na luta contra o terrorismo, combatendo o terror ao redor do mundo". Uma das idéias de Austen inclusive seria o Capitão liderar uma "equipe anti-terror" que contaria com a participação de heróis, como o Gavião Arqueiro, por exemplo.
Paralelamente a isso, estourou a invasão Norte Americana do Iraque. No meio das HQs se preferiu ficar em silêncio diante de tamanha polêmica: embora grande parte dos autores de comics sejam figuras progressistas, a maior parte dos leitores - 70% da população norte-americana foi a favor da guerra - poderia não receber muito bem críticas quanto ao conflito. Os editores optaram pelo silêncio, então, do que criticar ou apoiar a ação.
As almas mais beligerantes da opinião pública estadunidense não se deram por contentes com essa atitude. Queriam mais: queriam engajamento explícito e declarado. E um dos principais "desertores" dessa Guerra de Propaganda foi o Capitão América. A ponto de muitos críticos de entretenimento cobrarem uma postura mais "ativa" do velho Capitão na questão iraquiana, coisa que a Marvel decididamente não estava fazendo.
O
reacionário crítico de cinema da revista National Review, Michael Medved, chegou a publicar, em 04 de abril, artigo acusando o Capitão América de "traição". No texto, Medved diz que, em sua nova série, "o Sentinela da Liberdade parece desiludido, amargo e surpreendentemente simpático aos terroristas".
Ao que parece, Joe Quesada e a Marvel decidiram se render aos espíritos beligerantes, o que explica em muito a saída de Rieber e a confirmação em definitivo de Austen. Uma pena. No entanto, isso serve muito bem para ilustrar: os Estados Unidos passam hoje por uma nova fase na sua História, de aspecto mais bélico e xenófobo. Que o Capitão América acompanhe a consciência dos norte-americanos não seria uma surpresa. Mas, em nenhum momento o problema é o personagem em si, e sim aqueles que o escrevem. Estes são os vilões: Steve Rogers, há muito tempo, provou para milhares de leitores de todo mundo que é um herói, independente das causas espúrias que o forçam a abraçar. Porque justiça, liberdade e igualdade são princípios universais e não podem ser usurpados por este ou aquele governante, de "esquerda" ou "direita". Exatamente pela "universalidade" desses princípios, o personagem é tão amado em outros países, inclusive no Brasil.
Nano Souza é jornalista, escritor amador, e adora escrever fanfictions, entre eles, muitas e muitas histórias de Capitão América, Quarteto Fantástico e sua "série autoral", Clarim Diário.