Mangás: os novos donos do mundo dos quadrinhos?
Por Marcus Ramone e Pablo Casado
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Mais do que uma batalha pela preferência dos leitores, os mangás disputam com os comics norte-americanos os apertados espaços de mercado e até mesmo influências culturais.
Vem de muito tempo a rixa mercadológica e ideológica entre norte-americanos e japoneses no que diz respeito às suas produções de histórias em quadrinhos. Não somente entre eles, mas também envolvendo consumidores de outras nacionalidades espalhados pelo mundo. Basta uma rápida visita a uma comunidade virtual, fórum ou lista de discussão relacionada aos comics ou aos mangás para se deparar com opiniões acaloradas sobre qual estilo é o melhor.
O jornalista japonês Yoshikazu Hayashida apimentou ainda mais o caldo desse debate há poucos anos, ao publicar um artigo no site nipônico Oh My News, traduzido e reproduzido pelo norte-americano Manganews. No texto, ele discursa sobre a carreira mundial bem-sucedida dos quadrinhos de sua terra e explica por que o mesmo não acontece com aqueles produzidos pelos filhos do Tio Sam.
Segundo Hayashida, o fato de os quadrinhos norte-americanos utilizarem o inglês, o idioma mais conhecido do planeta, não seria necessariamente uma vantagem contra os mangás. E ele explica isso em duas teorias: o uso de papel de baixa qualidade por parte das publicações executadas no Japão e o fato de os publishers nipônicos serem melhores do que os norte-americanos.
Na Terra do Sol Nascente, as revistas semanais de quadrinhos – antologias tão volumosas quanto listas telefônicas – têm seu miolo em papel reciclado. Inclusive, como informa o artigo, uma das principais revistas do país é conhecida historicamente pela péssima qualidade do papel que utiliza. Para Hayashida, a vantagem desse modus operandi é a viabilidade econômica de um volume maior de histórias a serem publicadas.
Boa parte dessa produção norte-americana (principalmente a do mercado mainstream) é realizada com páginas coloridas de boa qualidade. O que, para muitos, encarece o custo e limita as edições mensais a terem, em média, cerca de 30 páginas. Somando isso à distribuição mensal dos títulos, a variação entre a quantidade do que é produzido em cada país é gritante.
A respeito disso, durante a crise econômica mundial de 2008 surgiu uma discussão que ganhou certa repercussão em sites, blogs e fóruns na grande rede nos Estados Unidos: a adoção do tamanho dos mangás nos gibis mensais, em detrimento do prestige (formato americano), como alternativa para tornar os preços dos comics mais acessíveis.
Um debate sem grandes pretensões e que logo se dissipou, mas ainda assim curioso por envolver duas tradições tão distintas, em que uma delas invadiu a seara da outra sem pedir licença.
Produções internas
A quantidade de mangás publicados atualmente nos Estados Unidos só não é maior do que no Japão. Desde 2002, o mercado norte-americano de mangás triplicou, movimentando mais de 200 milhões de dólares, segundo informações divulgadas em um artigo da revista Time. Apesar de uma queda progressiva nos últimos anos, os números ainda são espantosos e incomodam a concorrência.
Além de editoras antigas que aderiram à produção de mangás próprios ou reeditam os originais japoneses, surgiram, já na década de 1990, outras exclusivamente para esse fim. Como a Tokyopop, que quase fechou as portas nos Estados Unidos, em 2011, depois de perder o licenciamento com a japonesa Kodansha, incomodada com a iniciativa caseira e a aposta no mercado digital promovidas pela parceira norte-americana. A editora, que chegou a publicar cerca de 400 títulos por ano (dos quais mais de 300 eram criações próprias), foi a primeira nos EUA a lançar HQs japonesas sem espelhar as páginas, mantendo a ordem original de leitura dos quadros.
As produções caseiras vendem, em média, quase o dobro da quantidade que os títulos traduzidos dos originais japoneses conseguem alcançar. Isso fez com que se abrisse uma nova frente de trabalho, já no início da década atual, e muitos novos autores vêm despontando nesse cenário.
No Japão, com apenas alguns títulos de renome junto ao público, é possível a uma publicação obter um bom índice de vendagem, permitindo que o restante do material disponibilizado no miolo possa contar com novos autores e mangás mais "experimentais". Eventualmente, alguns deles podem atingir o sucesso de público, tornando-se mais um chamariz da revista.
E o que estimula os autores japoneses é outro elemento ausente (em parte) para os norte-americanos: a manutenção dos direitos autorais das histórias para os próprios artistas em um cenário não dominado pelas criações de longa data de grandes editoras – no caso, a referência, obviamente, está relacionada à Marvel e à DC Comics. No entanto, editoras como Image, Dark Horse e Oni Press são exemplos de selos que oferecem bons acordos de copyright de suas publicações. A Vertigo e a WildStorm, subdivisões da própria DC, também se encaixam nesse quesito.
Mas a distância entre a produtividade satisfatória dos dois mercados vai além disso.
Arte
Há muitos anos, as vendas em solo norte-americano não têm mostrado grandes cifras – ao menos se comparadas a tempos mais áureos. Ocorrência que se mantém, em grande parte, devido à centralização da distribuição via mercado direto, gerenciada pela Diamond.
Isso não invalida os argumentos sobre a diferença de alcance entre mangás e comics mundo afora – favoráveis aos primeiros –, mas deve ser levado em conta.
E até mesmo esses argumentos se restringem a pontos pequenos de uma indústria que há anos tem se mostrado mestra na geração de itens de consumo pop. As pessoas não apenas leem o mangá feito pelos japoneses, mas também assistem ao desenho animado que o adapta, compram o boneco articulado, camisas e muitos artigos relacionados. Existem apelo e publicidade espontâneos em torno do estilo.
Além disso, no Japão não há distinção no tratamento dado aos quadrinhos e seus artistas e ao que é destinado aos escritores de prosa. Visão similar e não menos empolgada pode ser encontrada na Europa, que concede atestado de arte às suas produções.
Independentemente da rotulação e apreciação, o interessante é notar como o japoneses são capazes de associar o respeito a essa manifestação artística com uma estrutura administrativa e comercial de sucesso. Mesmo no atual momento de estagnação do mercado interno.
Expansão
O que vem acontecendo nos Estados Unidos é muito mais do que se possa chamar de casos isolados ou passageiros da presença do mangá naquelas paragens. A influência dos quadrinhos e desenhos animados nipônicos já se enraizou de forma indelével nesses nichos do mercado da cultura pop norte-americana.
Não à toa, há poucos meses o presidente Barack Obama agradeceu publicamente ao Japão pelos mangás e animês.
Foi também graças à invasão dos quadrinhos japoneses em um território antes dominado pelos super-heróis, que a Marvel e a DC passaram a publicar gibis direcionados ao público jovem feminino.
Isso porque os shojo, mangás feitos para garotas, fizeram a cabeça das jovens e promoveram um fenômeno antes inimaginável nas comics shops norte-americanas: a presença maciça de meninas adolescentes vasculhando as prateleiras em busca de seu gibi preferido. Essas gibiterias agora possuem grandes espaços reservados especialmente para esse estilo de HQ.
É um segmento de mercado no qual as duas maiores editoras de quadrinhos dos EUA já se aventuram nos anos 1960 e 1970, mas de forma não muito eficiente.
Na época, pululavam gibis com temática romântica, reduzindo a isso o que as editoras pareciam entender ser o único interesse das leitoras de quadrinhos. Por sua vez, os shojo tratam de assuntos como crises existenciais, conflitos de gerações, drogas, alcoolismo, menstruação e até homossexualidade, além do romantismo que não poderia faltar nesse caldo de sentimentos e situações vividos por adolescentes de qualquer parte do mundo.
A Marvel chegou ainda a criar um universo alternativo dedicado ao mangá, o Mangaverso, no qual heróis como Homem-Aranha, Quarteto Fantástico e muitos outros eram retratados com os olhos esbugalhados e bocas enormes tradicionais do modelo nipônico, embora os quadrinhos japoneses estejam longe de ser limitados a essa característica.
Brasil
Apesar de, desde a década de 1970, os animês já visitarem as telas pequenas brasileiras, foi somente nos anos 1980 que os mangás começaram sua invasão ao País. De lá para cá, o tsunami de HQs japonesas que engoliu o mundo também atingiu o Brasil e seus efeitos não apenas estão presentes até hoje, como permanecem se alastrando.
Produções nacionais, de forma caseira, independente ou comercial (Holy Avenger, de Marcelo Cassaro e Erica Awano, continua sendo o baluarte do "mangá brasileiro") já rivalizam com as de outros gêneros. E editoras como a JBC, especializada em quadrinhos japoneses, e a Panini municiam o mercado mensalmente com dezenas de títulos.
Assim como nos Estados Unidos, por aqui alguns personagens mainstream também se renderam ao estilo mangá. Foi o caso da Turma da Mônica, cuja versão jovem é a estrela de uma das revistas em quadrinhos mais vendidas no Brasil.
Mais do que isso, tanto no País quanto em qualquer outra parte do mundo, as HQs japonesas ultrapassaram os limites do requadros das páginas e atingiram gostos, hábitos e comportamentos de crianças e jovens, de uma forma que os comics norte-americanos jamais conseguiram chegar perto.
E tudo por causa desses gibis que saíram do Japão, seduziram e dominaram o mundo de forma amistosa e ainda ousaram influenciar o mercado consumidor de quadrinhos – e de cultura pop em geral – do resto do planeta.
Marcus Ramone e Pablo Casado apreciam todos os estilos de quadrinhos, cada um com sua maior preferência, e desejam que todos eles sejam sempre acessíveis a qualquer leitor, em qualquer parte do mundo.