Um Almanaque que não está mais no Gibi
Há exatos 30 anos, no dia 24 de junho de 1975, chegava às bancas o saudoso Almanaque do Gibi Nostalgia
Por Nobu Chinen
Há
exatos 30 anos, no dia 24 de junho de 1975, chegava às bancas do Brasil
uma das mais importantes publicações em quadrinhos de todos os tempos:
o Almanaque do Gibi Nostalgia. Como o próprio nome permite adivinhar,
tratava-se de uma edição especial, uma compilação com antigas histórias
de personagens clássicos. E que histórias! E que personagens!
Publicado pela Rio Gráfica, que na época ainda não havia adotado
o nome de Editora Globo, o Almanaque tinha formato tablóide,
132 páginas, acabamento grampeado e era impresso em preto-e-branco, em
papel jornal.
A edição trazia a primeira aventura do Fantasma, primorosa criação
de Lee Falk com desenhos de Ray Moore, dono de um traço quase expressionista,
de 1936. Depois vinha uma história em tiras diárias do Mandrake,
do mesmo Falk, com lápis de Phil Davis, datada de 1938. Na seqüência,
Dick Tracy, de Chester Gould; duas HQs do talentosíssimo Alex Raymond:
Agente Secreto X-9 e Jim das Selvas; a ingenuamente divertida
Tereré, de Ralph Fuller; e uma dose dupla de The Spirit,
do incomparável Will Eisner, para fechar a revista.
A
partir do segundo número, a publicação passou a ter lombada quadrada,
ficando mais parecida com os almanaques do Globo Juvenil e congêneres
de décadas atrás, com a desvantagem de não ter as cores, nem as capas
duras dos títulos antigos. Para compensar, o conteúdo era nada menos do
que espetacular.
Logo de cara, duas aventuras de Flash Gordon, de Alex Raymond,
de 1938/39. A seguir, a estréia de Terry e os Piratas, de Milton
Caniff, de 1934; Red Barry, de Will Gould, de 1936; e três histórias
de The Spirit. Para completar, 11 esplêndidas páginas do onírico
Little Nemo in Slumberland, de Winsor McCay, incluindo o famoso
episódio da "cama andarilha", a seqüência mais cultuada, reproduzida e
analisada pelos estudiosos das HQs.
A mesma qualidade e variedade desses dois primeiros números permeou as
outras quatro edições do Almanaque, com clássicos como Príncipe
Valente, de Hal Foster; Brick Bradford, de William Ritt e Clarence
Gray; Ferdinando, de Al Capp; Krazy Kat, de George Herriman;
entre outros, além de algumas preciosas raridades: Sonhos de um Comilão,
do original Dreams of the Rarebit Fiend, do mesmo Winsor McCay;
Garra Cinzenta, dos brasileiros Renato Silva e Francisco Armond,
de 1937; e duas obras do genial Gustave Verbeek: Os Tadinhos, tradução
de The Terrors of Tiny Tads e o mirabolante Vira-Vira ou
The Upside-Downs of Lady Lovekins and the Old Man Muffaroo, cuja
página era composta de duas fases, uma para ser lida normalmente e a outra,
em continuidade, virada de cabeça para baixo, num incrível exercício de
criatividade e fantasia gráfica.
Em 1976, foi lançado um solitário número do Almanaque do Gibi Atualidade.
Em contraponto ao Almanaque Nostalgia, trazia alguns exemplos do
que havia de moderno nas HQs: a primeira aventura de Valentina,
do italiano Guido Crepax, em que a heroína era apenas uma coadjuvante;
uma história de Corto Maltese, do também italiano Hugo Pratt; Scarlett
Dream, da dupla francesa Robert Gigi e Claude Moliterni, este um prolífico
estudioso dos quadrinhos, autor de vários livros, incluindo um dicionário
sobre o assunto.
Encerrando a edição, a HQ Ano da Mulher, um trabalho de altíssima
qualidade do sempre surpreendente brasileiro Luiz Gê. Curiosamente, se
os clássicos do Almanaque Nostalgia eram quase todos norte-americanos,
no Atualidade, o predomínio era dos europeus, o que, de alguma
forma, já apontava uma certa tendência em relação aos novos rumos que
os quadrinhos estavam tomando, a partir dos anos 1970, com a evolução
da Pilote e o surgimento da Métal Hurlant, ambas francesas.
Nem todos as edições saíram com data de publicação, mas deduz-se que mantiveram
uma periodicidade semestral. O que é possível afirmar é que os seis volumes
do Almanaque do Gibi Nostalgia constituem uma das melhores coletâneas
de clássicos dos quadrinhos lançadas no Brasil, com uma amostra do que
mais significativo foi publicado nos anos de ouro das HQs norte-americanas.
Uma saga em 40 capítulos
O primeiro Almanaque, na verdade, nasceu como edição especial do
Gibi
Semanal, que havia sido lançado quase um ano antes, em setembro
de 1974, com a proposta de resgatar um tipo de publicação com personagens
variados dos mais diferentes gêneros e estilos, como faziam os cadernos
de quadrinhos dos grandes jornais dos Estados Unidos, no final do século
XIX e que teve no Brasil o pioneiro Suplemento Juvenil.
Se a idéia não era original, o título tampouco. Ele remetia ao famoso
Gibi, lançado em 1939 pela mesma editora, e cujo sucesso faria
com que o nome passasse a ser sinônimo de revista em quadrinhos no Brasil.
O Gibi original foi publicado durante 11 anos e gerou um filhote,
o Gibi Mensal, que durou de 1940 até 1963. Já a versão mais recente
não teve a mesma sorte. Não completou um ano de vida e durou apenas 40
edições. Mas marcou história.
Por suas páginas desfilaram cerca de 60 séries. A revista, em formato
tablóide, tinha 32 páginas e abria com pranchas dominicais coloridas de
algumas das melhores HQs de humor como Peanuts, Frank e Ernest, Zero,
Popeye, Brucutu, Mãe! e Hagar.
Depois, vinham três ou quatro séries de aventuras mais longas, em preto-e-branco.
Algumas eram completas, outras se estendiam por mais duas ou três edições.
Essas páginas normalmente eram complementadas por tiras de humor, diagramadas
na lateral, em sentido longitudinal. Para lê-las, era preciso girar a
revista em 90 graus. No final, mais duas ou três HQs coloridas.
No número 6 do Gibi Semanal foi lançado um concurso de tiras para
revelar novos autores brasileiros. Somente na edição 21 foram publicados
os primeiros selecionados: Fausto Hugo Pratts, Marcio Pitliuk e Watson.
Outras seis séries saíram no número 23. Elas ainda não tinham nomes e
eram identificadas pelos de seus autores: Munhoz, Almada e Souza, Paulo
Santos, Paulo Paiva, Novaes e Sérgio. Mais seis, agora devidamente batizadas,
foram divulgadas na edição 27: Seixo Rolado, de Demasi, Kathia
e Appel; Zig e Zag, de S. Miguez; Olimpo, de Xalberto; Zezinho,
de Javê; Kateka, de Britvs; e Lolita e Sócrates, de Archimedes
dos Santos.
Dessas, apenas algumas chegaram a ser publicadas outras vezes e somente
uma viria a fazer carreira nas páginas do Gibi: a de autoria de
Munhoz, denominada Chico Peste, que passou a sair regularmente
a partir do número 26, em que teve direito a página inteira colorida e
tiras laterais. O personagem, aliás, teve revista própria editada em 1986
pela Press.
Ainda que houvesse espaço para o material nacional, o predomínio era de
séries estrangeiras, principalmente as norte-americanas, mas também eram
publicadas HQs européias bem interessantes, como a francesa Iznogud,
de Goscinny (autor de Asterix) e desenhada por Tabary; as italianas
O Mestre, de Milo Milani e A. Di Gennaro; Sturmtruppen,
de Bonvi (Régis Bonvicini) e Os Aristocratas, de Alfredo Castelli
e Franco Tacconi; e a inglesa Os Panteras, de John Burns e P. Douglas.
Alguns clássicos, como Ferdinando, Dick Tracy, Fantasma e Mandrake
também marcaram presença. No número 6, saiu a antológica história de Gerhard
Shnobble, de The Spirit, e a primeira aventura de Nick Holmes,
última das séries criadas e ilustradas por Alex Raymond, foi publicada
na edição 26.
Uma versão especial
O Gibi Semanal parecia ter descoberto o caminho certo, tanto que,
alguns meses antes do primeiro Almanaque do Gibi Nostalgia, havia
sido lançado o Gibi Especial, uma edição em formato meio tablóide,
com um único personagem. Para essa estréia, em fevereiro de 1975, foi
escolhido The Spirit.
Essa publicação não tinha periodicidade fixa e a edição seguinte, dedicada
à segunda aventura do Fantasma, saiu em maio. O número 3, de julho,
trouxe Ferdinando com o clássico episódio dos Shmoos. Em agosto,
saía a 4, a partir da qual o formato diminuiu, novamente com The Spirit.
No mês seguinte, foi lançada o quinto volume, com Os Panteras.
O Gibi Especial passou a ganhar regularidade e ressuscitou o nome
e o logotipo do antigo Gibi Mensal. Assim, sob a nova denominação,
mas mantendo a mesma seqüência de numeração, em outubro saiu o número
6, com Tereré; e no mês seguinte, o 7 com o Príncipe Valente.
O oitavo e último número trazia a segunda e a terceira aventuras de Nick
Holmes. Geralmente, o Gibi Especial/Mensal saía com 64 páginas,
exceto nas edições do Fantasma e de Tereré que tiveram 80.
Mais uma vez, adeus
Apesar de toda essa aparente efervescência, o mercado de quadrinhos no
Brasil não estava tão propício assim. O Gibi Semanal, que começara
com 160 mil exemplares de tiragem, viu suas vendas caírem drasticamente
e terminou seus dias com 36 mil, ou seja, menos de 1/4 de quando iniciou.
Entre tantos feitos importantes, o principal destaque do Gibi dos
anos 70, em suas três versões (quatro se contarmos o Almanaque Atualidade)
talvez tenha sido revelar e divulgar para as novas gerações o personagem
The Spirit, de Will Eisner.
Aparentemente, ele devia ser, com total justiça, um dos personagens prediletos
dos editores. Basta constatar a freqüência com que era publicado. O alter
ego de Denny Colt apareceu em nada menos que 17 das 40 edições do Gibi
Semanal, foi o único a merecer dois números do Gibi Especial
(com nove histórias em cada) e saiu em quatro, dos seis Almanaques
do Gibi Nostalgia. No total, foram 42 episódios, quase todos da fase
áurea do herói.
A última edição do Gibi Semanal saiu em 30 de julho de 1975. O
Gibi Mensal deixou de circular em dezembro do mesmo ano. E o Almanaque
do Gibi Nostalgia sobreviveu até o final de 1977.
Com a crise, o título foi descontinuado e o Gibi, simbolizado pela
figura caricata de um menino negro, pela segunda vez disse adeus às bancas,
deixando uma pequena, porém significativa e fiel legião de fãs desconsolados.
Para saber mais sobre o Gibi Semanal, leia a coluna Museu dos
Quadrinhos, de Marcelo Naranjo e o depoimento de Sonia
Hirsch, ex-editora de quadrinhos da Globo e dos Gibis
nos anos 70.
Nobu Chinen é redator publicitário e lê "gibis" desde o tempo em
que eles ainda existiam.