A catrefa dos bons costumes vem aí
Esta semana comecei a escrever uma coluna sobre alguns riscos que a expansão (1) do mercado de quadrinhos poderiam trazer para artistas, editores e leitores. Nela, eu especulava sobre a possibilidade de o suposto boom atrair a atenção dos velhos guardiões da moral e dos bons costumes. E questionava, por exemplo, o estrago que essa catrefa poderia fazer com um exemplar de Lost girls nas mãos.
Não deu nem tempo de o texto ser publicado. Ontem mesmo, o jornal Folha de S.Paulo publicou a reportagem SP distribui a escolas livro com palavrões, sobre a distribuição da HQ sobre futebol Dez na Área, Um na Banheira e Ninguém no Gol para crianças de nove anos usarem em sala de aula. O repórter Fábio Takahashi cita as expressões "chupa rola", "cu" e "chupava ela todinha" como inadequadas. E eu, que não sou educador nem pedagogo, até acho que são mesmo. Para o público infantil.
Em entrevista à TV Globo, o governador de São Paulo, José Serra, disse na tarde ontem que achou o livro de mau gosto. Deu paulada nos artistas e na editora.
O problema não é o álbum. Óbvio que não. O problema, claro, é que alguma besta do governo (2) indicou o livro para compra porque deve ter considerado que era uma boa recomendação.
Para se proteger, Serra jogou a culpa no lado mais fraco: a HQ. É uma atitude covarde. Mas recorrente em políticos acuados pelas barbaridades que fazem.
Mas o caso reflete uma situação que, certamente, vai se repetir nos próximos anos.
Durante muitos anos, os quadrinhos estiveram no ostracismo. Com exceção das revistas infantis, em especial as criações de Mauricio de Sousa e de um ou outro mangá, as HQs eram consumidas por alguns poucos milhares de leitores abnegados, esparsos em uma população de milhões de pessoas. Em bom português, os quadrinhos eram irrelevantes.
Foi assim que títulos ousados como Lost girls e Homunculus, o trabalho de Marcatti e Hideshi Hino e até os mangás teen Gravitation e Negima foram lançados sem ninguém encher a paciência.
Enquanto os quadrinhos eram nanicos, era fácil. Mas agora a coisa corre o risco de complicar.
Digamos que um líder religioso resolvesse erguer uma cruzada contra Lost girls, obra-prima de Alan Moore e Melinda Gebbie. Daria pano pra manga: é um álbum que pega três personagens de histórias infantis e as reintroduz, ainda que mais velhas, em uma trama pornográfica bem libertária. Tem de tudo: heterossexualismo, homossexualismo, pansexualismo... De tantas que são, nem vale a pena listar as modalidades praticadas. Mas tem coisa ali que duvido que apareça em revistas pornôs vendidas em bancas.
Num culto dessas igrejas novas, imensas, montadas em estacionamentos e cinemas antigos, provavelmente tem mais público em uma sessão do que Lost girls tem de leitores no Brasil inteiro. Comparar com a TV, então, é covardia. Melhor nem tentar.
Outro exemplo: vai que um senador resolvesse discursar contra a violência das HQs do vigilante Justiceiro, da Marvel. Provavelmente, a TV Senado e a Voz do Brasil ajudariam a elevar as vendas de Marvel Max, e isso sem contar com nenhuma repercussão da imprensa.
Só que, nos últimos tempos, os quadrinhos começaram a aparecer bastante. De certa forma, voltaram à moda. Entraram até nas escolas, cumprindo uma meta histórica. A consequência disso é que não vai faltar gente pra defender as crianças e adolescentes e a moral e os bons costumes de terríveis malefícios causados pelos gibis, sejam eles quais forem.
Acho que pode até mesmo surgir um Fredric Wertham tupiniquim - mas sinceramente duvido que ele terá a sagacidade intelectual do original.
Não adianta pensar que argumentar com lógica vai resolver. Extremistas são intransigentes, teimosos e não gostam de diálogo. A rigor, não prestam. São baixos. Não valem a pena.
Perto do novo cenário, o caso de Dez na Área, Um na Banheira e Ninguém no Gol tem tudo para ser fichinha.
A única reação possível contra a catrefa é o mercado de quadrinhos ter uma postura firme. Editores, autores, leitores, jornalistas especializados varejistas e leitores precisam estar preparados, ter ideias sedimentadas, argumentos afiados e uma postura imbatível. A briga vai ser grande.
Afinal, os quadrinhos queriam crescer e ocupar mais espaços. Conseguiram. Agora chegou a hora de amadurecer.
Eduardo Nasi não entende nada de futebol, mas sabe muito de quadrinhos; e, infelizmente, não se surpreende quando pessoas mal-informadas (ou mal-intencionadas) espalham um preconceito tolo contra a arte seqüencial como se estivessem nos anos de 1950.
Notas
1) Nas bancas, há uma boa variedade de mangás, de vários estilos. Os super-heróis, embora desfavorecidos por muitas histórias ruins, vêm recebendo um tratamento digno e estável da Panini há cinco anos, tanto em bancas quanto em livrarias.
Aliás, as livrarias vêm sendo abastecidas por bons títulos de vários cantos do mundo por editoras como Devir, Companhia das Letras, Zarabatana, Desiderata e outras. Diz-se que a Cosac Naïfy se une a elas em breve, juntamente com outras mais conhecidas por lançar ficção e não-ficção. A Conrad, pelo visto, se reergueu após a venda para o Ibep.
No campo das infanto-juvenis, a Turma da Mônica Jovem conseguiu fazer um lançamento espantoso - o maior desta década, com mais de 400 mil exemplares vendidos. Mas os artistas brasileiros também lançam HQs em menores proporções - aqui e em outros países.
Em meio a todo esse mercado, os independentes estão articulados tanto no coletivo mais badalado, o Quarto Mundo, quanto em movimentos espalhados por todo o Brasil, do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul.
Fora dos quadrinhos em si, os personagens de HQs ganharam destaque nos cinemas e na TV.
Mesmo assim, não há só boas notícias: a Ediouro encerrou o contrato que permitia a Pixel Media publicar os bons títulos de Vertigo e Wildstorm no Brasil. E a Globo tirou suas HQs das bancas ainda no ano passado. Mas um mercado movimentado não é feito só de conquistas.
2) Talvez tenha sido o mesmo burocrata que liberou um livro didático com dois Paraguais, embora isso seja difícil de avaliar. Como se sabe, o Poder Executivo brasileiro não é um celeiro de competentes.