Confins do Universo 216 - Editoras brasileiras # 6: Que Figura!
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Cada um no seu Quadrinho

Dogma 2009

14 abril 2009

Dogma 2009Os quadrinhos, frequentemente, são considerados uma forma de arte vulgar ou infantil. Seus leitores são vistos como portadores de alguma debilidade. Na melhor das hipóteses, chamam-nos de nerds.

Não são poucos os relatos de gente que se sente perseguida no trabalho, na escola e até mesmo no ônibus por ler HQs. Quando a imprensa em geral vai falar de quadrinhos, muitas vezes se sente na obrigação de alertar seu leitor de que gibi nem sempre é coisa de criança.

Dizem até que fã de quadrinhos não "pega" ninguém.

Diante de uma situação dessas, os leitores não se cansam de listar bodes expiatórios. O preconceito, o desconhecimento e a falta de cultura da população são os culpados costumeiros. Mas há outros: o péssimo trabalho de marketing das editoras, a ausência de uma disciplina de quadrinhos nos currículos escolares e por aí vai.

Quem escapa, sempre, é o umbigo do próprio leitor, imune à autocrítica.

Muitos leitores esquecem que são eles mesmos - e as porcarias que leem - que reforçam dia após dia essa perseguição.

São eles que alimentam um mercado tomado por lixo, que compram mês a mês as piores revistas e que, muitas vezes, olham o que é novo e diferente com desdém.

Ainda que as editoras sejam verdadeiras caixas pretas no que diz respeito a números de venda, não é preciso ser nenhum Einstein para estimar que qualquer edição de X-Men vende mais que qualquer álbum da Zarabatana.

Encaremos a verdade: a situação dos quadrinhos é medonha.

Por isso, decidi fazer uma proposta: a criação de um Dogma para salvar os quadrinhos.

Tenho certeza de que se cada leitor deste Dogma se propuser a cumprir à risca todos os itens a partir do momento da leitura, em cinco anos teremos um mercado completamente diferente: mais arejado, leve e divertido.

Além disso, estou certo de que a percepção dos não leitores vai se transformar completamente, acolhendo as HQs como uma forma válida de expressão, arte e entretenimento.

Ao Dogma, portanto:

1) A pluralidade é fundamental. Tendo isso em mente, todo o participante do Dogma deve ler mensalmente quadrinhos de cinco nacionalidades diferentes e de cinco gêneros diferentes. A regra apenas não se aplica a quem ler menos de cinco edições por mês. Nesse caso, ainda assim, não se pode repetir nem nacionalidades nem gêneros.

2) É proibida a leitura de quadrinhos em que personagens ranjam os dentes para expressar raiva ou furor, simplesmente porque essa não é uma reação humana. Humanos gritam, choram, fazem beiço e demonstram emoções.

Quem range dente sofre de bruxismo, e somente personagens com bruxismo declarado poderão ranger sua arcada dentária. Este item, que pode soar ingênuo e despropositado, não deve ser menosprezado, pois resolve aproximadamente 78% dos problemas do mercado de HQs.

3) Como os quadrinhos foram dominados por homens ao longo de sua história, a misoginia não poderia ser vetada de forma alguma. Mas deve-se rejeitar HQs misóginas toscas, de autores que claramente passam a impressão de nunca terem passado a noite com uma mulher de verdade na vida. Em caso de dúvida, o quadrinhista Robert Crumb pode ser considerado um cânone para a avaliação do que é boa misoginia.

4) O uso de saco plástico para proteger os quadrinhos não é aceitável. Bons quadrinhos precisam de oxigênio. Por consequência, veta-se o uso de pinças, luvas ou de qualquer outro tipo de frescura para armazená-los e manuseá-los.

5) O apego ao mundo material, na forma do colecionismo obcecado, tem causado grande mal aos quadrinhos e precisa ser desestimulado. Bons quadrinhos devem circular. Empreste-os ou, preferencialmente, doe-os para que outros possam lê-los.

6) A expressão "É cofre" para designar compra obrigatória de uma HQ está abolida. A aquisição de quadrinhos não pode ser vista como um comportamento ansioso ou desesperado, nem mesmo como um investimento. Além do mais, a ideia de "cofre" implicita a restrição à circulação dos quadrinhos, contrariando o item 5.

7) A publicação de quadrinhos na internet é profundamente incentivada pelo Dogma, desde que as obras sigam o que está estabelecido nele.

8) O Dogma nada tem a dizer a respeito da moralidade envolvida na prática de pirataria digital, que vai da consciência e da postura de cada leitor, bem como da decisão particular de obediência ou não das leis.

Contudo, o Dogma acredita que os autores e editores dos bons quadrinhos devem ser sempre recompensados pelo seu trabalho. Os participantes do Dogma devem ser informados que essa recompensa costuma ser um incentivo para que o trabalho tenha continuidade.

9) As tiras diárias publicadas na imprensa são consideradas um veículo poderoso de catequização do público não especializado. Portanto, todo participante do Dogma é estimulado a entrar em contato com jornais e revistas a que tem acesso para pleitear melhorias na seção de tiras das publicações. Na oportunidade, pode-se solicitar também uma cobertura melhor e mais crítica do setor de quadrinhos.

10) Cada participante do Dogma deverá repassar o texto para outros três leitores de quadrinhos.

Item especial de sustentabilidade - Diante do grave problema ambiental que vivemos, as HQs ruins que estão guardadas no armário de todo leitor devem ser urgentemente encaminhadas para a cooperativa de reciclagem mais próxima.

Como todo dogma, o Dogma 2009 é uma verdade absoluta e não deve ser questionado nem alterado. Entretanto, a discussão de seus itens é saudável, enriquecedora e bem-vinda.

Na verdade, somente esse debate, de forma ampla e irrestrita, pode salvar os quadrinhos de seus leitores.

Eduardo Nasi é um pseudônimo utilizado por Thomas Vinterberg e Lars von Trier, criadores do Dogma 95, para escrever resenhas de quadrinhos.

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