Essa obscuridade: o leitor
Quem é o leitor de HQs?
Essa pergunta paira sobre a indústria dos quadrinhos no Brasil. E sem resposta. Pior: sem qualquer perspectiva de ter uma resposta.
É uma questão crucial. Antes de tudo, porque conhecer o consumidor é uma premissa bastante básica para qualquer indústria.
O dono de uma fábrica de molho de tomate faz de tudo para conhecer a dona de casa que usa o seu produto para dar um toque especial na macarronada de domingo. O exemplo é propositadamente tosco: macarronada que se preza dispensa molho pronto. Mas já voltamos a falar disso.
O mercado de quadrinhos brasileiro é cheio de perguntas sem respostas. A revista do Lanterna Verde vai se dar bem nas bancas? Como as vendas vão reagir à crise do crédito? Há espaço para uma nova editora de quadrinhos europeus? Se alguém se animar a lançar Blankets, o imenso álbum de Craig Thompson, tem chances de ser um sucesso ou um fracasso? A Fest Comix deve trazer convidados internacionais ou aumentar os descontos? Qual a receita para o mercado crescer? Por que centenas de milhares de leitores de Mônica abandonam as HQs e não compram mais nada? E por aí vai - e a lista de enigmas não acaba tão cedo.
Mas saber quem é o leitor de HQs brasileiro ajudaria muito a responder todas as outras questões.
Quem ele é? O que faz da vida? Quais são seus interesses? Que quadrinhos compra? E quais quer comprar? Ele acompanha as notícias do meio? Qual o seu gênero favorito? É homem ou mulher? Quantos anos tem? Mora onde? Joga videogame? Gosta de futebol? Assiste TV a cabo? Vai à banca com que freqüência - se é que vai? Lê as tirinhas de jornal? Lê quadrinhos na web? Baixa scans? Compra DVD pirata? Curte desenhar?
E, aliás: quantos leitores de quadrinhos existem no Brasil?
A falta de dados concretos faz com que o mercado aja na base da intuição. É o popular chutômetro. O problema do chutômetro é que ele não é baseado em fatos, mas em idéias pré-fabricadas. É o risco do chavão.
Voltando à hipótese do dono da fábrica de molho de tomate: usando o chutômetro, ele provavelmente pensaria que seu consumidor é uma dona de casa que faz macarronada para a família no domingo. E talvez ignorasse o fato de que essas mulheres são zelosas e, aos domingos, preferem fazer elas próprias o molho, ralando cebola, picando tomate, cozinhando tudo com tempero.
Talvez fosse mais sensato, então, esperar que a dona de casa recorresse ao molho pronto durante a semana, quando tem menos tempo. Ou que seu consumidor mais voraz seja um jovem universitário que mora sozinho e não tem saco para cortar tomate e ralar cebola.
Outro dia, recebi o e-mail do Mané. Não conheço o Mané direito, mas temos amigos em comum. Mas, sobre ele mesmo, sabia pouquíssimas coisas: tem mais ou menos 18 anos e gosta de rock independente.
O Mané tinha interesse em ler quadrinhos. Sabia, sei lá como, que havia coisas interessantes nas HQs - e pedia dicas para encontrar esses materiais em meio às centenas de títulos disponíveis em bancas e livrarias. E, por algum motivo qualquer, achou que eu daria uma resposta satisfatória.
Nessas horas, é sempre dureza. Porque não é simples. Por exemplo: a linha ABC, do Alan Moore, é sensacional, mas você aproveita melhor Tom Strong, Top Ten e Promethea se tiver as referências de HQs de super-heróis. O mesmo vale para Watchmen, A Nova Fronteira ou O Cavaleiro das Trevas. São trabalhos incríveis, mas que estão profundamente relacionados com a crítica a um gênero bastante hermético.
Resolvi apostar na verve roqueira do Mané e recomendei uns álbuns do Crumb. Foi uma manobra ousada: conheço bons leitores de quadrinhos que não têm sensibilidade para este autor. Mas o Mané curtiu. Acabou lendo quadrinhos com mais freqüência.
Na última vez em que falamos sobre isso, ele me contou que comprou até mesmo a série Buda, do Osamu Tezuka, que tem 14 volumes. Quem diria que Crumb pode ser um bom começo?
O Mané é um leitor de HQs brasileiro.
Quem acompanha o Blog do Universo HQ deve lembrar da história da Beth, uma moça que trabalha comigo. Ela não entende nada sobre quadrinhos. Era fã da Mad quando adolescente - especialmente do Ota, mas ela nem sabia que o Ota era o Ota.
Aí, ela me acompanhou ao evento de lançamento de Superman - Crônicas que a Panini promoveu em São Paulo.
Antes de o bate-papo começar, ela pegou uma revista do Lanterna Verde e perguntou pro Levi Trindade, editor da linha DC: "Quem é esse? Eu gostei da roupa dele". Em uma das fotos da platéia, ela saiu com a mão na boca, fazendo careta. A imagem acabou em um desses fóruns de leitores da internet - e um leitor a chamou de "retardada".
A Beth, mesmo sem saber quem é o Lanterna Verde, é uma leitora de HQs brasileira.
O sujeito que a chamou de "retardada" também.
Eu nunca vi. Quem me contou foi o Fausto, dono da banca em que eu comprava quadrinhos em Porto Alegre. Mas tinha um sujeito que ia comprar quadrinhos com luvas, lupa, pinça e régua. Pegava uma pilha de revistas e buscava, uma a uma, sem encostar os dedos, o exemplar perfeito - com medidas corretas, sem marcas, dobras e defeitos de impressão. Quando achava, lacrava-o em um saco plástico.
Esse cara também é um leitor de HQs brasileiro.
O caso da Clarah é bem o oposto. Ela pegou a edição brasileira de Como matar seu namorado, do Grant Morrison e do Philip Bond, e cotejou com o original norte-americano. Viu que a tradução era medonha, mas que a história em si era genial.
Então, fez uma tradução muito melhor na hora, rabiscando o texto dos balões à caneta, na própria revista.
E ela também é leitora e coisa e tal.
Tudo bem que o leitor de quadrinhos não é um único sujeito. São muitos perfis diferentes, sem dúvida. Assim como os consumidores do molho de tomate pronto.
Mas o dono da fábrica do molho de tomate sabe disso: para vender mais molho, ele tenta entender melhor a dona de casa, o estudante, o dono do carrinho de cachorro quente e todo mundo que possa vir a comprar algumas latas. Não é preciosismo. É apenas profissionalismo.
Com mais de 100 lançamentos por mês, a indústria de quadrinhos brasileiros está em um momento-chave. Se a crise da bolsa de valores chegar à economia real, vai ser hora de o leitor cortar títulos, reduzir aquisições, rever coleções e até mesmo repensar o hábito de colecionar. Se não chegar, o mercado de quadrinhos vai ser forçado a se profissionalizar para crescer mais.
Nos dois casos, armar uma pesquisa para conhecer melhor os leitores de HQs é uma tarefa básica que ainda está para ser feita. Um movimento desses custa dinheiro, claro, e não é pouco. Mas, com certeza, rende mais dinheiro ainda - e ajuda a garantir um mercado tão rico e farto como o que vimos nos últimos anos.
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do UHQ.
Eduardo Nasi é um leitor de quadrinhos brasileiro que adora molho de tomate.