Meio malas, mas bastante persistentes
A primeira vez que ouvi falar de Fábio Moon e Gabriel Bá foi em meados dos anos 90. Eu ainda não morava em São Paulo, mas vinha de vez em quando e tinha alguns amigos por aqui. Um dia, uma amiga me deu um exemplar do fanzine 10 Pãezinhos. Se bem me lembro, o namorado dela era colega de um deles na faculdade. Ela disse mais ou menos assim:
- Já ouviu falar desses caras? São até meio malas, mas bastante persistentes. Ficam pedindo pra você comprar os gibis deles. Eu nem gosto muito, mas eles são tão empenhados que a gente fica com vontade de comprar.
Esse empenho todo não só os levou longe, mas também fez com que esse caminho se tornasse notório. Suas carreiras internacionais incluem edições por casas importantes, um punhado de prêmios Eisner e um livro muito bem-sucedido, Daytripper. Não foram só os dois se beneficiaram dessa trajetória: outros quadrinhistas brasileiros seguiram caminhos parecidos.
Sempre que alguém pergunta pra eles como construíram essa carreira (e sempre há alguém que pergunta), a resposta passa por: esforço, dedicação, horas e horas de trabalho, mostrar a cara. Imediatamente, lembro-me do que minha amiga falou quando ganhei minha primeira edição de 10 Pãezinhos: "meio malas, mas bastante persistentes".
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Esta semana, um casal importantíssimo para as artes gráficas do mundo inteiro está passando pelo Brasil.
Art Spiegelman é certamente o nome mais conhecido. É um dos sujeitos que tirou os quadrinhos norte-americanos do gueto: ele ganhou o conceituado prêmio Pulitzer com a graphic novel Maus, que retrata o Holocausto utilizando animais antropomorfizados. Também é autor de outras HQs, como À sombra das torres ausentes e Breakdowns - Retrato do artista quando jovem %@&*!, além de um vasto punhado de histórias esparsas.
Françoise Mouly, sua esposa, é menos popular. Com Spiegelman, publicou a antológica revista RAW. Também cuida da linha de quadrinhos ToonBooks, para crianças bem pequenas. Só que, pras artes gráficas brasileiras, talvez seja mais importante que seu marido: ela é editora de arte da revista New Yorker, responsável pela escolha da capa. E a capa da New Yorker, bem, é a maior vitrine que um artista gráfico pode ter no mundo.
Dizem que não é fácil trazer Spiegelman. Depois de desistir da Flip uns anos atrás, veio para uma palestra do seminário de jornalismo cultural que a revista Cult promove. Chegou também com uma sessão de autógrafos programada pela sua editora, a Companhia das Letras.
E Françoise Mouly falou no começo da noite de sábado, na Livraria da Vila do Shopping Pátio Higienópolis, num evento também promovido pela Companhia. Lá, o jornalista, tradutor e amigo Érico Assis conduziu uma entrevista com ela por uma hora e meia.
Foi incrível: Françoise comentou sobre a decisão de trocar Paris, sua cidade natal, por Nova York, sobre a RAW (que foi impressa numa gráfica que ela montou no seu próprio apartamento), sobre ir para a New Yorker convocada pela polêmica editora Tina Brown (inglesa, até então especializada em revistas mais triviais, portanto odiada pelos nova-iorquinos), sobre a primeira HQ que fez, sobre seus três casamentos com Art...
Quando abriram as perguntas para o público, uma garota, de forma bastante delicada e sutil, questionou como se faz para publicar na capa da New Yorker.
Em síntese, é assim: Françoise fica sempre de olho em novos talentos, mas tem que deixar espaço pros artistas regulares. Então, só consegue inserir um ou dois novatos por ano. Ou seja, é difícil pra caramba.
Logo depois, um rapaz fez a pergunta clássica: "Mudando um pouco de assunto, você conhece algum quadrinhista brasileiro?".
A resposta foi: "Hmmm. Conhecemos alguns argentinos... E ali fora, antes de começar, conhecemos dois rapazes que publicaram uma história pela Vertigo".
Lembrei da minha amiga: "meio malas, mas bastante persistentes".
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Quando a entrevista acabou, Françoise e Spiegelman ficaram por um tempinho na livraria. Francos e abertos. Ele autografou uns Maus. Ela recebeu uns garotos que vão lançar uma revista independente daqui a duas semanas.
Senti que ali havia uma oportunidade. Era a editora de arte da New Yorker, pombas. E ela estava de olhos abertos. Quando chegou à livraria, folheou alguns álbuns de quadrinhos. Não é uma chance que se tem toda semana.
E tem aquilo: o Brasil é um país que está na moda. A Granta já vai lançar sua edição brasileira. E se a New Yorker resolve fazer uma publicação temática e chamar um artista pra capa?
Nessas, eu já estava quase mostrando meus desenhos pra ela, e eles nem são grande coisa.
Só que não tinha muitos quadrinhistas e artistas gráficos por ali. Na real, só reconheci o Fábio e o Gabriel.
Naturalmente, não conheço todos os quadrinhistas e artistas gráficos do País. Talvez você seja um e estivesse lá. Mas senti falta dos que conheço.
Não estou falando de ninguém especificamente. Cada um cuida da sua vida. Tem gente que precisa trabalhar, cumprir prazo. Tem gente que tem namorada, mãe, filho. Tem gente que está doente. Mas achei um pouco estranho não ter mais ninguém.
Não me entenda mal: o auditório era pequeno e estava lotado. Mas, ainda assim, senti falta de gente presa do lado de fora, de pessoas mendigando por meio minuto do tempo dela, de um chato sem noção com portfólio a tiracolo. Enfim: senti falta de alguém muito a fim de fazer uma capa da New Yorker.
Quando a função acabou, os gêmeos foram conversar mais um pouco com o casal.
"Meio malas, mas bastante persistentes."
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Não conheço direito o Fábio e o Gabriel. Trocamos meia dúzia de palavras na vida, como acontece quando as pessoas mais reservadas se encontram.
Quando falamos, são gentis e diretos, mesmo pra discordar. Admiro isso neles. Não posso ser categórico, portanto, mas não me parecem "meio malas". Já a parte do "bastante persistentes" é inegável.
Mas entendo o que minha amiga quis dizer com "meio malas".
Quando todo mundo se acomoda, aquele cara que vai lá e faz acaba com uma pecha desse tipo.
Com gente como o Fábio e o Gabriel por perto, não dá pra ficar de mimimi. Não é qualquer desculpa esfarrapada que cola. Pelo que sei, enquanto a turma da faculdade ainda estava no bar bebendo e pensando no que fazer da vida, os dois já estavam vendendo suas revistas pra galera.
A essa altura, com uma carreira bastante sólida, talvez os dois irmãos pudessem relaxar um pouco. Talvez não precisassem ir até a palestra. Talvez pudessem ficar com a família, ficar vendo um jogo ou ir ao cinema. Talvez pudessem se dar ao luxo de esquecer.
"Meio malas, mas..."
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Domingo à tarde, eu estava dando um tempo na rua até minha sessão de cinema começar.
Fui olhar o Twitter no celular. Lá estava o Fábio Moon entrando em uma conversa sobre o encontro que eu tinha tido mais cedo com o André Conti, editor da Quadrinhos na Cia. e, portanto, de Art Spiegelman.
"Fiquei conversando com o Bá sobre o 'objeto impresso' o resto da noite. Muito bacana", escreveu Fábio.
O "objeto impresso" é o conceito que Françoise usou para definir o que ela vê como contraponto do livro digital (e do quadrinho digital, por tabela): um livro tão bonito, tão bem acabado, ou tão marcante em sua forma, que só faz sentido como objeto impresso.
Sou muito entusiasta da ideia. Não é nada de especialmente novo nas artes visuais. A clássica editora Printed Matter, conterrânea e contemporânea da RAW, e ainda ativa, faz objetos impressos há décadas. No Brasil, Waltercio Caldas tem um trabalho notável com livros-objeto. Alguns coletivos de artistas fazem livros em edições do gênero.
Na literatura, Jonathan Safran Foer usou o conceito em Tree of Codes. Nos quadrinhos brasileiros, o projeto Gazzara, de Rafael Coutinho, tem uma relação bastante forte com o conceito, mas ele não está sozinho. Falei um pouco sobre isso há umas semanas, quando comentei a revistinha Mix Tape, da Lu Cafaggi.
De qualquer forma, é algo que ganha força com a iminência do livro digital. E a possibilidade de Fábio e Gabriel criarem uma obra a partir desse conceito me anima muito.
Gosto desse comentário do Fábio pra deixar bem claro: não sei o que levou os dois a ver a palestra da Françoise Mouly. Talvez fosse para tentar uma capa da New Yorker mesmo. Duvido um pouco que eles tentassem uma abordagem tão direta. Mas eles foram lá e ouviram. E levaram algo pra casa. E discutiram. E tomara que a gente possa ver o conceito incorporado no trabalho deles.
"Meio malas, mas..."
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Respondi qualquer coisa ao tweet do Fábio e, quando ergui a cabeça, do nada, vi o casal Spiegelman e Françoise a alguns metros de mim, com um mapa bastante grande aberto em cima da mesa de um café. Parecia que estavam tentando se achar.
Não tenho vocação pra tiete e, em condições normais, teria deixado os dois a sós. Mas, mesmo na Av. Paulista, não é fácil para um turista que não fale português encontrar alguém que possa ajudá-lo.
E tem mais: quando alguém faz Maus, RAW, Sombras Ausentes e escolhe capas pra New Yorker, o mínimo que você pode fazer como agradecimento é oferecer alguma ajuda quando a pessoa parece perdida.
Mesmo correndo o risco de ser meio mala.
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Pra minha alegria, os dois foram gentis, e se comportaram como se estivessem mais gratos pela oferta de ajuda do que me achando um mala. Em pouco tempo, analisamos as possibilidades para um passeio de duas horas por São Paulo. Depois disso, de alguma forma, acabamos num papo sobre a conversa de ontem.
Não foi uma entrevista, até porque Spiegelman já avisara de antemão que não daria entrevistas. Portanto, não seria justo nem cordial tentar reproduzir a conversa.
Mas eu ainda estou um pouco impressionado de não ter visto ninguém implorando pra fazer a capa da New Yorker. E, em certo momento, Françoise falou algo que tem a ver com isso, e fiquei com a impressão de que ela estava passando uma mensagem. Mais ou menos assim:
- O que vi ontem, e o que estou vendo nas livrarias daqui, é algo muito impressionante. Me lembra de Nova York dos anos 80, quando estávamos fazendo a RAW. É muito efervescente, e os quadrinhos ainda não viraram um negócio. Há editoras pequenas e interessantes. Vocês têm que aproveitar. Isso vai crescer, não vai ser assim pra sempre. Esta é a melhor fase pra fazerem os melhores quadrinhos de vocês.
Ou, como diria uma amiga, talvez seja hora de todos nós nos tornarmos meio malas, mas bastante persistentes.