Sinto muito, mas o Laerte é mais importante do que você
Nada pessoal. Nem sei quem você é. Não importa. O Laerte é mais importante do que você.
Permita-me um rodeio. Já chego lá.
Leitores de quadrinhos (os que se prezam) passam por dias conturbados. Primeiro foi José Serra, governador de São Paulo, que disse que o álbum Dez na área, um na banheira e ninguém no gol é uma obra de mau gosto.
Aí, a perseguição paulista se estendeu até o Will Eisner, coitado. Na mesma confusão do Dez na área..., tentaram limá-lo das escolas de São Paulo. Em seguida, a perseguição migrou para o Paraná. No Rio Grande do Sul, meu estimado estado natal, o governo moralmente falido de Yeda Crusius conseguiu a proeza de mandar retirar Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço, O sonhador e O nome do jogo das escolas estaduais.
A tática de proibir Eisner é tacanha. Sem explicar nada sobre as obras, os governantes tiram de contexto uns quadros que parecem obscenos, levam-nos à imprensa, chamam-nos de inapropriados e dizem que vão salvar nossos jovens (não vão, jovens não precisam ser salvos por políticos) proibindo o acesso (ilusão, a molecada encontra qualquer coisa na internet).
A medida é altamente impopular para leitores de quadrinhos. Mas são poucos os leitores de quadrinhos, uma ninharia mixada.
Já pais de alunos de escolas públicas abundam. A maioria não sabe quem foi Will Eisner. Muitos são trabalhadores que se esfolam para dar o que podem para suas crias, mas se sentem culpados por não dar tudo o que o filho quer ou precisa. Ser pai e mãe é tudo, mas também é uma barra. Dá medo. Dá insegurança. Se o governo mente que está zelando pelas crianças, isso até parece bom, porque às vezes qualquer ajuda é bem-vinda. E é assim que proibir quadrinhos nas escolas se torna uma medida superpopular entre os pais: parece até que os políticos se importam.
(A propósito, o mérito de cobertura mais aguerrida da perseguição às HQs pertence ao Blog dos Quadrinhos, do Paulo Ramos, que é até cocriador de uma carta aberta que merece leitura e assinatura.)
A perseguição aos quadrinhos não é exclusividade brasileira. Em proporções menores, a norte-americana Yvette Spivock tem esperneado na Carolina do Norte. Como ela, como Serra, como a secretária de educação gaúcha, há outros, muitos outros. Nestes dias complicados, a patrulha da moral e dos bons costumes está avançando cada vez mais.
Já falei na coluna anterior, repito agora porque é importante: o aumento da força dos quadrinhos em escolas, livrarias e na mídia vai inevitavelmente atrair moralistas para a seara das HQs.
E aí, na contramão, vem Laerte.
Laerte já foi um quadrinhista genial, talvez o melhor do Brasil, quando fazia os Piratas do Tietê, o puxa-saco Fagundes, o Hugo, os gatos...
De uns tempos para cá, Laerte mudou. Suas tiras deixaram de lado o humor mais convencional e os personagens e seguiram por um caminho muito mais complexo.
Dou um exemplo:
Entendeu?
Não importa. A pergunta a ser feita nesta fase de Laerte é outra: o que você sentiu?
Muitas dessas tiras provocam a introspecção. Mexem com sentimentos que estavam anestesiados.
É um baque para quem espera dar uma risada no último quadro para anuviar dos problemas. Algumas tiras têm o poder de transformar o dia de seu leitor - nem sempre para melhor.
Outros trabalhos acabam escancarando o que as pessoas teimam em varrer para baixo do tapete. É o caso da série Pequeno Travesti, trabalho sensível que mostra um garoto que se veste com as roupas da irmã.
Trabalhos assim incomodam. Mesmo que seja fato notório que crianças têm sexualidade e que muitos meninos se vestem com roupas de meninas.
A fase atual de Laerte chama atenção não só por sua qualidade, por sua força autoral e pela carga de experimentação, mas também pelo veículo que a publica: o jornal Folha de S.Paulo, o maior do país.
Se a divisão entre mainstream e mercado independente ainda é válida (não é), Laerte tem ousado no coração do mercado editorial brasileiro.
(É interessante notar que, enquanto isso, parte do mundo independente tem se esmerado em fazer HQs nos moldes mais comerciais, às vezes até de olho nas editoras convencionais. Se a tal divisão permanecesse, seria curiosa uma inversão de papéis.)
Em outras praças, contudo, jornais já cortaram as tiras de Laerte de suas minguadas seções de quadrinhos. No Rio Grande do Sul, onde existe a tentativa de proibir Eisner nas escolas, já faz um tempo que Laerte foi substituído por Frank & Ernest. Azar do jornal: hoje em dia, o leitor vai continuar lendo na internet de qualquer jeito.
Como eu ia dizendo lá no começo, Laerte é importante. E, para os quadrinhos, é mais importante que você, seja você quem for. Quanto mais a patrulha dos bons costumes se aproxima, mais Laerte fica importante.
Em seu momento atual, Laerte virou um símbolo involuntário do que os quadrinhos são de verdade: uma linguagem artística doce, devastadora, bonita e perigosa. E que, como boa arte, as HQs podem fazer coisas maravilhosas:
O passatempo favorito de Eduardo Nasi é infernizar moralistas. Se você é um deles, ou apenas tem algo a dizer sobre esta coluna, por gentileza, manifeste-se.