A dura arte do realismo
Não é difícil notar que muitos dos desenhistas trabalhando atualmente para as grandes editoras dos Estados Unidos no estilo "realista" tem uma arte dura, sem movimento, forçada e muitas vezes nitidamente artificial.
O realismo é uma das tendências estéticas mais populares dos quadrinhos estadunidenses nos últimos 15 anos, alavancada por vários nomes, mas principalmente Bryan Hitch (Authority, Supremos), dentro daqueles que trabalham com frequência com o desenho de páginas de arte sequencial e não apenas capas.
Como tendência artística, o realismo não é algo novo, pelo contrário E, assim como outros estilos, é algo que desponta ciclicamente como uma nova maneira de interpretador o mundo ao nosso redor. Isso não é exceção nas HQs.
Levado ao extremo, o realismo (ou hiper-realismo), independentemente da solução artística, produz imagens quase fotográficas, como no trabalho de ilustradores como Alex Ross, Hajime Sorayama ou Timothy Bradstreet.
Nos quadrinhos, a busca do realismo está relacionada a problemas que vão além da simples resolução estética para uma imagem. O que se procura é uma solução para um conjunto de imagens que será visto e interpretado de forma sequencial. E a escolha do estilo influenciará a narrativa da história.
Scott McCloud, em seu livro Desvendando os Quadrinhos, fala da relação entre o realismo e a abstração icônica nas HQs, no capítulo dois, O Vocabulário dos Quadrinhos, no qual faz um triângulo cujos vértices são: realidade, linguagem e plano pictórico.
No caso, por exemplo, de A Piada Mortal ou de Watchmen, ambos escritos por Alan Moore, a arte, respectivamente de Brian Bolland e Dave Gibbons, faz concessão às convenções do gênero dos super-heróis, mas não deixa de ser realista. Ao mesmo tempo, nenhum dos dois desenhistas permite que a representação do real atrapalhe a narrativa.
A composição dos quadros, a diagramação e o ritmo das imagens são planejados levando-se em conta as possibilidades artísticas, para se contar a melhor história, da maneira mais eficaz, independentemente do estilo escolhido.
Infelizmente, contudo, esses dois artistas são exceções dentro de um verdadeiro oceano de desenhistas que pouco entendem da narrativa dos quadrinhos ou, quando entendem, se apoiam no uso excessivo e artificial das referências fotográficas, de uma maneira óbvia, o que prejudica o ritmo da narrativa.
Para citar um exemplo, basta olhar o trabalho de Greg Land. Ele é bastante procurado pelos editores desde seu trabalho em Sojourn, para a Crossgen, apesar das constantes reclamações dos leitores de que exagera na cópia direta de suas referências fotográficas, que incluem até mesmo imagens tiradas de revistas pornográficas (fato que fica evidente em algumas poses e expressões faciais, tanto dos personagens masculinos quanto femininos, que parecem estar em pleno êxtase sexual. Os norte-americanos se referem a isso como pornfaces.).
Não é o uso de referências fotográficas que incomoda, pois esta é uma prática comum. O que torna a arte de Land dura e sem movimento é a maneira como ele aplica isso em seu trabalho.
Ao usar a fotografia diretamente, seja decalcada com o uso do vegetal ou aplicada com a mesa de luz, mesmo que modificada em termos das proporções, ou até espelhada, Land sacrifica a composição da cena, decisões sobre o posicionamento da luzes e sombras e também a narrativa.
É preciso lembrar que a fotografia, na maioria dos casos, gera distorções, seja nas pessoas ou nos cenários. Para se minimizar isso em figuras humanas, de modo geral, é necessário usar uma lente de 50 mm, que resulta numa imagem mais próxima, em termos de perspectiva e distorção, do campo de visão do olho humano.
Outras lentes geram distorções diversas, indo das mais óbvias (como a falta de paralelismo nas linhas verticais de um prédio fotografado com uma lente grande angular) às mais sutis.
Decalcando a fotografia, e colocando no plano do desenho, Land precisa ajustar tudo: perspectiva, distorção da figura humana (rostos etc.). Como muitos artistas, ele parece esquecer que está trabalhando com a representação do real; e não com a realidade em si mesma.
Assim, sobra apenas a reinterpretação de outra representação bidimensional, sem movimento ou expressividade
Para representar o gestual dos seres humanos, é necessário escolher poses condizentes com o movimento ou a atitude da pessoa representada. O desenho e a pintura estão repletos de recursos que podem ser aplicados na linguagem dos quadrinhos para simular isto, que vão desde linhas e traços bem simples, como em Tintim a efeitos sofisticados de pincel, como no caso da arte de Gene Colan.
Mas ao optar pela cópia, Land está aprisionado ao que foi fotografado, reproduzindo a luz e as poses. E, mesmo que altere suas figuras para que se aproximem do efeito desejado, é quase impossível dar vida e dinamismo às imagens, que parecem estar sempre estáticas e ancoradas, num simulacro pálido de composição que possui pouca relação de ritmo com a cena seguinte da página.
Artistas como Bradstreet e Ross, que hoje trabalham mais como ilustradores e capistas, tiram suas próprias fotos, muitas vezes com modelos fantasiados, para que tudo esteja bem mais perto da composição que foi originalmente planejada como um desenho.
Hergé (Tintim usa referência nos cenários e objetos, mas não nos personagens), Milton Caniff (Terry e os Piratas e Steve Canyon), Alex Raymond (Flash Gordon e Nick Holmes), Roy Crane (Wash Tubbs e Captain Easy, ou Tubinho e Capitão César, no Brasil), Noel Sickles (Scorchy Smith, ou Ás Smith, no Brasil), Alex Toth (Zorro), são todos nomes clássicos das HQs, que assim como outros artistas, faziam grande uso de referências fotográficas. A foto servia para se compreender a forma, a luz e as sombras, para medir a proporção etc., mas o resultado final era desenhado com base na referência, dentro da composição escolhida, e não decalcado.
Apesar dos problemas, o trabalho de Land ainda está acima da média técnica - que parece ter caído bastante nos últimos anos - de muitos artistas que estão hoje em atividade no mercado norte-americano. Vale lembrar que Land só foi usado como exemplo, porque é um dos desenhistas mais conhecidos pelo seu uso de fotos, muitas delas encontradas numa rápida busca no Google, e extremamente criticado por isso.
O artista francês Jean-Claude Claeys, de A Canção da Magnus (no Brasil L&PM, 1988) e Cabaret Paris-Fripon (L&PM, 1990), optou pela estética da fotografia de cinema copiada no lápis ou nanquim para recriar o ambiente dos filmes noir. Suas histórias são povoadas por personagens que são artistas como Humphrey Bogart, Marlon Brando, Farrah Fawcett etc. A arte também é "dura", mas muito mais gráfica e apropriada ao contexto, principalmente porque foi pensada e planejada dessa forma.
Alex Maleev, conhecido pelo seu trabalho em Demolidor também é um realista da "linha dura", com forte uso de referências fotográficas nos cenários e nas figuras humanas. Mas assim como Claeys, transformou o que seria uma grave deficiência num estilo bastante pessoal, cheio de texturas e grafismos. Além disso, toma muito cuidado com a narrativa e o ritmo das páginas. É só conferir suas HQs.
Tony Harris, de Ex-Machina, que hoje trabalha num estilo derivado da linha clara, é outro que faz muito uso de fotografias, mas com resultados um pouco melhores do que os de Land, e com uma leitura mais fluida.
Até mesmo Bryan Hitch, um dos responsáveis pela ascensão recente do realismo nos quadrinhos, faz uso corrente de referências fotográficas em seus cenários e nos rostos dos personagens, principalmente nos closes. Mas Hitch, um desenhista talentoso, sabe fazer bom uso das fotografias, mesmo que escorregue vez ou outra. Ao contrário de outros artistas seguindo esta vertente, sua arte não é dura e a narrativa é competente.
Um artista brasileiro que vale citar como exemplo é Renato Guedes, que nos seus primeiros trabalhos para os Estados Unidos era forçado a usar muita referência fotográfica por causa dos títulos em que trabalhava, como, por exemplo, 24 e Smallville, ambos baseados nos seriados de TV. Seu trabalho atual na revista do Super-Homem é muito mais solto e dinâmico.
Vale dizer que Alex Toth já criticava o baixo nível técnico dos artistas em atividade nos quadrinhos estadunidenses muitos anos antes de falecer, em 2006. Ele reclamava da falta de diversificação dos tipos físicos e raciais das figuras humanas e do uso das cores como muleta para salvar o desenho precário, entre outras coisas.
Toth escreveu uma pequena crítica, chamada Quem se importa?, na qual diz "Use as fotografias, sim, mas não literalmente! Copiá-las apenas por preguiça? Estude-as, faça anotações, esboços, guarde as fotos e desenhe!
Difícil imaginar uma recomendação melhor.
Sérgio Codespoti é um fã da arte realista de nomes como Crane, Sickles, Caniff, Raymond, Pratt, Toth, Bolland, Gibbons, Gulacy, Hughes, Hitch, entre muitos outros. E não tem vergonha de confessar, que, apesar da arte dura, se divertia com a leitura de Sojourn, de Greg Land..