Prazo x qualidade: o dilema do mercado norte-americano
Recentemente, C.B. Cebulski, editor, escritor e caça-talentos da Marvel, fez duras críticas à qualidade dos trabalhos de alguns artistas e editores, sem revelar os nomes em questão.
Mas o que será que há por trás disso?
Criar uma história em quadrinhos requer um mínimo de conhecimento em diversas disciplinas. Por isso, embora seja normal que um único artista/escritor produza uma HQ, a maioria das grandes editoras emprega uma equipe para executar a tarefa dentro de um prazo mais restrito.
Vamos ao passo a passo.
Primeiro é necessário escrever um roteiro, de preferência com começo, meio e fim (embora, infelizmente, a ausência de final já faça parte da rotina das HQs de super-heróis), tendo em mente que a história será desenhada em quadros. E como não é um filme, de modo geral, apenas uma ação pode ser ilustrada por quadro (1: Peter Parker veste seu uniforme; 2: Homem-Aranh abre a janela; 3: Homem-Aranha se balança em sua teia, entre os prédios de Nova York etc.).
O segundo passo é o desenho a lápis. Para isso, o artista precisa ter conhecimentos de anatomia, perspectiva, composição, luz e sombra e narrativa. Afinal, não se trata de uma ilustração isolada, mas de um conjunto de quadros que serão lidos numa sequência.
E aqui surge o grande vilão dessa história: o prazo. Dentro do processo industrial/comercial de produção nas grandes editoras americanas, existe uma série de prazos a serem cumpridos.
A editora precisa informar, com meses de antecedência, quais revistas serão lançadas, em que meses, com quais escritores e artistas. E, frequentemente, ainda tem que fornecer uma sinopse da história ou a capa para que a Diamond (distribuidora que mantém um monopólio do mercado direto dos Estados Unidos) possa publicar esses dados no catálogo Previews, que é distribuído para as comic shops e do qual os lojistas escolhem seus pedidos.
Para cumprir a promessa feita acima, os editores precisam receber roteiros e desenhos num certo espaço de tempo. Mas cada desenhista tem seu modo de trabalhar - e sua velocidade. Poucos são capazes, como Mark Bagley, de criar 22 páginas por semana. Outros, bastante talentosos (como Alan Davis), desenham apenas 12 edições por ano (e não 18, como acontece com títulos rentáveis como X-Men ou o antigo Amazing Spider-Man, antes de se tornar semanal). E existem aqueles, que apesar de muito técnicos, como Arthur Adams, Adam Hughes, Mike Mignola, Frank Quitely e Travis Charest, precisam de um tempo bem maior para produzir suas HQs.
E é por isso que as grandes editoras estão sempre desesperadas para encontrar novos artistas, mesmo que algum dos recém-descobertos tenha carência justamente do atributo mais básico: o talento. O resultado pode ser visto mensalmente em títulos mal desenhados.
Tradicionalmente, a etapa seguinte ao desenho seria a arte-final. Esse processo envolve o uso de tinta preta (normalmente nanquim, embora existam outras técnicas) para criar uma arte que possa ser reproduzida com fidelidade usando os processos gráficos em vigor.
Como nem sempre o responsável pelo lápis é o mesmo que aplicará o nanquim (afinal, dividindo as tarefas se acelera a produção e se ajuda a cumprir o prazo), uma das reclamações mais comuns dos desenhistas é que seu traço (e seus detalhes preciosos) foi arruinado pelo sujeito que fez a arte-final.
Existe o caso famoso de Vince Colleta - elogiado por alguns e execrado por muitos -, que apagava o lápis de Jack Kirby, eliminando detalhes do cenário, para que pudesse completar a arte-final dentro do prazo pedido pelo editor - isso é relatado no livro Tales to Astonish.
O outro lado desta moeda é que há arte-finalistas espetaculares, verdadeiros mestres do pincel e da pena, que não apenas interpretam (isso mesmo, interpretam, pois arte-finalizar não significa apenas passar a tinta sobre o lápis) de maneira correta, como melhoram o trabalho. O difícil é fazer isso no prazo da editora, que nem sempre é realista.
Dessas parcerias surgiram duplas famosas como John Byrne e Terry Austin, Alan Davis e Mark Farmer, Paul Gulacy e Dan Adkins e outras.
Embora sempre tenha existido maneiras de reproduzir a arte diretamente do lápis, elas não são comumente empregadas. Mas há anos o processo de arte-final não é mais uma necessidade indispensável para a produção dos quadrinhos. A principal razão disso é o Photoshop, o programa de edição fotográfica que virou sinônimo de manipulação da imagem.
A chamada arte-final digital é mais rápida que o processo tradicional. Por isso, é outro recurso bacana para editores desesperados em cumprir seus prazos, mesmo que a arte sofra com isso.
O problema não é do Photoshop, mas das pessoas que o utilizam, ou aprovam o seu uso. Como qualquer outra ferramenta artística, é necessário conhecer a teoria, entender os recursos, para aplicá-los da maneira mais adequada e satisfatória.
Graças ao Photoshop, é possível que o traço a lápis de um artista seja transformado em arte-final, de uma forma razoável e relativamente rápida. Para tanto, é preciso que a qualidade do desenho seja bem técnica e precisa, com as linhas definindo meticulosamente cenário, objetos e figuras humanas. Usando do bom senso, o artista (ou técnico) responsável pela transformação interpreta a intenção do desenhista e, voilá, a página está pronta para ser impressa.
Mas a palavra-chave aqui é bom senso. A dupla que exemplifica este processo com louvor é Frank Quitely e Jamie Grant, em All-Star Superman.
Devido aos prazos conturbados, e muitas vezes ridículos, está se tornando corriqueiro "pular" a arte-final e resolver a arte no traço. Os resultados, entretanto, não são os melhores. Cada vez mais, os editores estão adotando este procedimento com artistas e páginas que estão longe de estarem prontas para receber o nanquim, e muito menos serem transformadas no Photoshop.
E esta é uma das razões pelas quais muitas revistas têm um desenho com uma aparência meio "suja", com cara de esboço disfarçado.
A revista Marvel Illustrated - The Odyssey # 6, desenhada pelo brasileiro Greg Tocchini, é uma amostra dos dois tipos de arte-final (ou da ausência dela).
Nela, o bom trabalho dos artistas foi comprometido pelo prazo apertado. O arte-finalista Roland Paris não conseguiu entintar todas as páginas e algumas delas foram "elevadas" do lápis à arte-final, no Photoshop.
A diferença de qualidade é visível, principalmente porque esta não era a proposta original da série. Para uma revista em preto e branco, faltam apenas dois procedimentos: as letras, que podem ser feitas à mão ou no computador (há vários programas que podem ser utilizados, como Photoshop, Illustrator e até mesmo InDesign ou QuarkXpress), e a criação da capa (um processo que exige muito mais do que a maioria dos leitores pode imaginar).
Mas se a HQ for colorida, como a maioria produzida pela Marvel e a DC Comics, a coisa não termina aqui. É necessário aplicar a cor.
E volta-se ao problema anterior.
Atualmente, o Photoshop permite que qualquer um aplique cor sobre uma página de quadrinhos. A diferença é que se você é um colorista como Matthew Hollingsworth, Dave Stewart, Laura DePuy Martin, para citar alguns nomes premiados, o programa é a ferramenta ideal.
Por outro lado, se o "colorista" desconhece a teoria e o bom senso, o resultado pode ser catastrófico, como é possível verificar em algumas revistas publicadas nos últimos anos.
E faço aqui um aparte para esclarecer, antes que me xinguem: não é preciso ser artista premiado para colorir no Photoshop. Mas bom senso é indispensável.
Outro pecadilho cometido por coloristas, com a melhor das intenções, é a tentativa de acobertar erros cometidos na arte (aliás, esta tarefa ingrata também é muito conhecida dos arte-finalistas tradicionais), seja no desenho ou arte-final, inclusive digital.
O disfarce dos problemas pode até funcionar para alguns leitores, mas uma vez descoberto pelos mais atentos, ganha as dimensões de uma pústula, atraindo o nosso olhar.
Não estaríamos discutindo esses problemas aqui se a situação não fosse epidêmica e se os editores estivessem fazendo a sua parte. Sim, afinal esta é uma das funções do editor.
Para quem acha que estou exagerando com a "epidemia", vale lembrar o caso de Brian Hibbs e outros lojistas, que processaram a Marvel por problemas relacionados ao atraso das revistas, equipes artísticas e até conteúdo diferente do anunciado. O processo mencionava 110 títulos com problemas num período entre 1997 e 2003.
Um exemplo mais recente ocorreu em 2007, quando a DC Comics publicou a série Amazons Attack. Um leitor gravou um vídeo postado no YouTube (infelizmente já removido), criticando a série; em seguida, devolveu todas as revistas que comprou (cinco edições) num envelope endereçado ao editor Matt Idelson.
O editor está lá para avisar o roteirista que Sebastian Shaw, vilão dos X-Men, não possui poderes mentais (como saiu na revista escrita por Grant Morrison e o escocês foi forçado a se desculpar); cobrar a arte no prazo; criticar quando o desenho está com problemas (e elogiar quando merece); e, acima de tudo, para garantir que a revista chegue ao leitor com a qualidade merecida.
Essas críticas são consequência de problemas graves que se enraizaram nos quadrinhos americanos ao longo das duas últimas décadas. Para cumprir prazos e publicar uma enorme quantidade de revistas mensais - a Marvel publicou mais de 80 títulos em junho de 2009 -, as grandes editoras baixaram consideravelmente o padrão de qualidade aceitável das suas revistas.
E, vale lembrar: quando o editor (e por extensão a editora) faz seu trabalho direito, dificilmente precisa defender o material que publica.
Sérgio Codespoti gosta de todo tipo de quadrinhos, inclusive de super-heróis, e prefere suas HQs com bons roteiros e belas artes, mesmo que isso signifique esperar alguns meses por sua revista preferida..