Milo Manara: O senhor das musas de papel
Conheça nesta entrevista exclusiva ao Universo HQ, um pouco mais de Milo Manara, o "papa" do quadrinho erótico no mundo
Foi no dia 12 de setembro de 1945, em Luson, na província italiana de Bolzano, que veio ao mundo Maurilio Manara, que, anos depois, se tornaria o maior nome dos quadrinhos eróticos do planeta, assinando seus trabalhos como Milo Manara.
Sua paixão pelas artes surgiu ainda na adolescência. Começou pintando quadros e depois passou à escultura, tendo sido, inclusive, assistente do artista espanhol Berrocal, em Málaga. Foi nesse período que amadureceu a ideia de trabalhar com quadrinhos.
E a estreia na arte sequencial foi em 1969, com Genius, uma HQ policial lançada pela editora Furio Viano. Não demorou para que seu talento chamasse a atenção de outras casas publicadoras. Esbanjando uma técnica invejável, com grande domínio de luz e sombra e a perfeita anatomia de seus personagens - especialmente as mulheres -, ele foi se tornando um nome conhecido de público e crítica.
O primeiro sucesso veio em 1975, numa série escrita por Milo Milani e publicada no Corriere dei Ragazzi, que transpunha para os quadrinhos julgamentos famosos. No ano seguinte, lançou o álbum Lo Scimiotto, com roteiro de Silverio Pisu, que ganhou o prêmio Yellow Kid de melhor álbum de quadrinhos do Festival de Lucca.
Extremamente versátil, Manara frequentou praticamente todas as grandes publicações de quadrinhos do mundo, como Linus, Charlie, Totem, Heavy Metal, Corto Maltese, L'Echo des Savanes (na qual fez uma personagem para a capa da 300ª edição) e outras.
E é bom frisar que Milo Manara nem sempre trabalhou com erotismo. Em seu portfólio há, inclusive, trabalhos didáticos. Um bom exemplo são o álbum Christophe Colomb (escrito por Enzo Biagi e publicado pela Himalaya) e os episódios que desenhou para a obras da Larousse, como L'Histoire de France en Bandes Dessinées e La decouverte du monde en Bandes Dessinées e L'Histoire de Chine en Bandes Dessinées. Nesta última, ilustrou o capítulo sobre A grande muralha, de Mao Tse Tung.
Na coleção Un Uomo Un'Avventura (que teve seis números publicados no Brasil, pela Ebal, na série Um homem, uma aventura), fez L'Uomo delle nevi, com roteiro de Alfredo Castelli. E, no gênero western, desenhou L'Uomo di carta (lançado em Portugal, pela Meribérica, com o título Quatro dedos - O homem de papel).
Com o passar dos anos, viriam obras como HP e Giuseppe Bergman, escrito por Milo Milani (HP é a abreviatura do nome de Hugo Pratt, que era muito amigo dos dois), Rever as estrelas, Verão índio e El gaucho (as duas últimas roteirizadas por Pratt), Viagem a Tulum, com Federico Fellini, Péntiti!, a biografia em quadrinhos do piloto de motovelocidade Valentino Rossi, a série Bórgia, com texto de Alejandro Jodorowsky, que já tem três dos quatro álbuns lançados no Brasil, pela Conrad, e muitos outros trabalhos.
Manara participou também de lançamentos importantes que, na década de 1980, mobilizaram vários artistas renomados mundialmente. É o caso das coletâneas E muro, sobre a queda do muro de Berlim, na Alemanha, e I diritti umani (em português, Os direitos humanos), na qual fez uma história e também a capa de uma das edições.
Mas, sem dúvida, a marca registrada do autor italiano são suas mulheres. Elas são inconfundíveis. Praticamente todas têm corpos belíssimos, seios médios, bumbuns arrebitados, lábios carnudos e um voraz apetite sexual. E, pra atiçar ainda mais os leitores, Manara se especializou, ao longo dos anos, em desenhar "caras e bocas" femininas nos momentos de prazer.
E a maior parte da obra do italiano publicada no Brasil é justamente dessa fase erótica. Saíram: os quatro volumes de Clic, compilados em 2010 num único livro; O perfume do invisível, cujo primeiro álbum foi lançado em 1987 pela Martins Fontes e está prometido pela Conrad para breve; Curta-metragem (1989), O perfume do invisível 2 (1996) e Kamasutra (1998), pela L±; A arte da palmada (1991), da Martins Fontes, Revolução (2007), Encontro fatal (2009) e uma reedição de Kamasutra (2010), pela Conrad; e Gullivera e A metamorfose de Lucius, ambos em 2006, pela Pixel.
Principal atração internacional da Rio Comicon, realizada em 2010, o simpático autor (que assinou o cartaz do evento e teve uma bela exposição no Rio de Janeiro e em São Paulo) atendeu imprensa e fãs com a mesma atenção e disse ter ficado encantado com a receptividade dos brasileiros.
Esta entrevista para o Universo HQ, na qual Milo Manara fala de sua carreira, de suas raras incursões na publicidade, dos seus mestres, de seus poucos trabalhos para o mercado norte-americano etc., foi feita na calçada em frente ao hotel, logo após o café da manhã, enquanto o autor fumava um de seus inseparáveis charutos.
Às vésperas de ter outro de seus trabalhos lançado por aqui - o quarto tomo de Bórgia, pela Conrad -, conheça um pouco mais sobre esse mestre do desenho.
Universo HQ: O senhor vive num país de grandes desenhistas. Quais foram suas influências nos fumetti?
Milo Manara: Eu tive muitos mestres, mas com certeza Moebius, pelo seu estilo de desenho e também Hugo Pratt, Federico Fellini, Sergio Toppi, Dino Battaglia. De modo geral, todos tiveram alguma influência em meu trabalho.
Mas muitos desses meus mestres já morreram e hoje a escola italiana não vive seus melhores dias. Sobraram poucos, como Vittorio Giardino e (Paolo Eleuteri) Serpieri, pois já se foram (Attilio) Micheluzzi, Battaglia, Pratt e outros.
Atualmente, o decano dos mestres é Sergio Toppi.
UHQ: Como era sua relação com Guido Crepax?
Manara: Embora conhecêssemos bem o trabalho um do outro, pois publicávamos nas mesmas revistas, nós nos encontrávamos raramente, mas uma vez eu o vi chorar, por ocasião de uma mostra dedicada a ele, em Milão.
Quando um jornal me entrevistou, contei que Crepax tinha sido muito importante pra mim, pois fora um de meus mestres. Ao ler a entrevista, Guido ficou emocionado, pois disse que nunca soube daquilo.
Ele disse que não acreditava no que ele estava vendo. Achava que eu tinha ciúmes dele, que não gostava de seu trabalho. Mas quando viu na entrevista que eu era admirador dele...
Crepax era considerado um mestre, pois começou muito antes de mim. Pena que morreu logo depois, pois já estava bastante doente.
UHQ: Como analisa o fato de, para muitos, você ser uma espécie de herdeiro de Crepax como mestre dos quadrinhos eróticos?
Manara: Com relação a ser um herdeiro de Crepax, na Itália isso não existe. Mesmo porque nossos estilos de erotismo eram muito diferentes. O dele era mais intelectual, voltado a pessoas de nível mais alto. A Valentina, sua principal personagem, por exemplo, era uma fotógrafa de moda; o parceiro dela era um arquiteto...
Já o meu erotismo é "de rua". Em suma, o único ponto em comum entre nós é que ambos desenhamos mulheres peladas, mas hoje muita gente faz isso.
UHQ: As mulheres são a principal marca do seu trabalho. Qual é a reação das leitoras ao seu trabalho?
Manara: Normalmente, é uma reação positiva. Tenho observado que, quando faço autógrafos e dedicatórias, são mais mulheres do que homens que me pedem um desenho. De modo geral, elas se sentem bem representadas nas minhas histórias, porque não faço mulheres-objeto; elas são sempre as protagonistas, as "atrizes principais".
Eu tive até encontros com feministas, que me trataram muito bem. Então, estou muito tranquilo em relação a esse aspecto.
UHQ: É possível para o senhor escolher uma personagem favorita nos seus trabalhos? Claudia Christiani? Mel?
Manara: Não, pois cada mulher que faço é a personagem daquela aventura, na qual ela vai agir de maneira definida. Por isso, não tenho uma favorita. Cada uma delas tem a sua função dentro de minhas histórias.
UHQ: Vários artistas dizem que desenhar cabelos de mulheres é muito difícil. Para você, parece fácil. Qual é o segredo?
Manara: Eu sempre desenho cabelos bem compridos. Pra começar, porque dá dinamismo à personagem. Afinal, o vento agita os cabelos.
Por exemplo: se quero dinamismo numa história em que aparece o sol, eu sempre coloco nuvens, senão o colorista pode pintar o céu inteiro de azul e errar a tonalidade. E essa variação sempre dá um dinamismo para a imagem.
Recentemente, recebi e-mails de uma leitora me perguntando por que não desenho mulheres de cabelos curtos. A autora da mensagem dizia ainda que tinha cabelos curtos, mas também era bonita.
Eu respondi que acreditava nela, mas uso cabelos compridos por uma questão de técnica e estética da história. Mas isso não significava que só mulheres de cabelos longos são belas.
A escolha é mesmo para movimentar o desenho. Mas eu já desenhei mulheres de cabelos curtos, como na última história de Giuseppe Bergman (nota do UHQ: Giuseppe Bergman # 5 - Aventures vénitiennes, lançado em janeiro de 2011). Mas fiz isso porque, ali era melhor assim.
UHQ: Você faz muita pesquisa visual para seus livros? É verdade que desenhou Verão Índio sem nunca ter ido aos Estados Unidos?
Manara: Não é verdade. Algumas das páginas de Verão Índio eu desenhei nos Estados Unidos. Só que estava na Louisiana, não no Maine, onde é ambientada a história. Como a trama se passa nos anos 1600, fiz bastante pesquisa em livros para compor o visual de roupas e cenários, pois era difícil encontrar material no mundo real.
Já em relação à natureza, não foi preciso, porque uma mata é uma mata em qualquer lugar. Seja no Maine ou em qualquer outro lugar. O que pesquisei mesmo foram vestimentas, trajes. Afinal, se cada vez que tiver que desenhar um desfiladeiro no Colorado eu tiver que pegar um avião para o local, vou à falência.
Por isso, uso muita documentação, fotos, livros etc.
UHQ: Você trabalha com assistentes? Já teve algum?
Manara: Não tenho assistentes. Só no início dos anos 70 trabalhei com um grupo. Naquela época, eu fazia umas revistas meio ruins, que davam muito trabalho, mas eram de baixa qualidade. Por isso, não conseguia desenhar e repassava essa tarefa.
Mas, depois disso, já são 30 anos que trabalho sempre sozinho.
UHQ: Como é o seu método de trabalho? Qual o seu ritmo de produção?
Manara: Varia bastante, se a página é em cores em preto e branco, se é uma história minha, se é escrita por outra pessoa... Também depende se a história exige pesquisa, como, por exemplo, Bórgia, que me faz procurar informações visuais sobre os trajes, arquitetura etc.
Então, varia muito. Mas costumo fazer uma página a cada dois ou três dias, dependendo de todas essas variáveis.
UHQ: Como era a sua relação com Hugo Pratt? E o trabalho com ele?
Manara: Hugo e eu não estávamos sempre na mesma cidade, mas nos víamos constantemente e nos falávamos muito por telefone.
Ele me deixava com a máxima liberdade para fazer as mudanças que quisesse em seus roteiros, mas eu nunca alterava nada. Como naquela época não existia e-mail, Hugo me pedia para mandar os desenhos por fax, para examiná-los. Mas nunca pediu para mudar qualquer coisa.
Realmente, ele era uma pessoa divertida e simpática. Em suma, era uma verdadeira festa trabalhar com Hugo.
UHQ: Recentemente, você concluiu a série Bórgia, que é escrita por Jodorowsky. Como foi o método de trabalho com ele?
Manara: Jodorowsky às vezes reclama que eu nunca pergunto nada a ele. Mas não há o que perguntar, porque seus roteiros são muito bem detalhados. Nós nos vemos muito raramente, cerca de duas vezes por ano.
Ele é uma pessoa interessante, inteligente, joga tarô, é meio vidente e até meio "curandeiro". (risos)
UHQ: Por falar em Bórgia, no segundo volume, há uma cena de uma orgia em praça pública, na qual o desenho traz diversas cenas de outros trabalhos seus. Foi uma auto-homenagem?
Manara: Somente alguns leitores aficionados, que gostam
muito do meu trabalho, como você, imagino, perceberam essa auto-homenagem.
Esses mais atentos notaram, mas eu fiz aquilo por pura diversão pessoal (nota
do UHQ: para ver a cena em detalhes, no Blog do Universo
HQ clique na imagem ao lado).
Mesmo porque, se não tivesse aquilo ali, não mudaria nada na história. Mas só quem prestou bastante atenção mesmo que notou.
UHQ: Você já fez trabalhos para a Sergio Bonelli Editore no passado. Não houve novos convites? Como, por exemplo, um Texone (Tex Gigante, no Brasil)?
Manara: Por enquanto, fiz apenas uma capa de Dylan Dog (na edição Dylan Dog Color Fest # 5).
Em relação ao Texone, Sergio e eu somos muito amigos. No passado, já fiz, na série Un Uomo Un'Avventura, o álbum L'Uomo delle nevi (O homem das neves). Por isso, ele não desiste. De vez em quando, me pergunta quando farei um Texone.
Mas é muito trabalhoso (nota do UHQ: são mais de 200 páginas) e, no momento, tenho diversas outras coisas em que estou envolvido. Só que não excluo essa possibilidade, porém deixo bem claro que Tex não é um quadrinho que permita um certo erotismo na trama.
UHQ: Você vive no país que é a casa do catolicismo. Como foi a reação das pessoas quando lançou Cartas de uma Freira Portuguesa, com imagens de uma religiosa com, digamos, uma libido bastante aflorada?
Manara: Pra começar, devo dizer que esse projeto foi uma ideia do Hugo Pratt. Uma galeria de Milão pediu para que vários autores ilustrassem alguns textos. Então, ele sugeriu fazer este.
Como na Itália, se alguma coisa não sai na televisão, ninguém vê ou se importa, não houve nenhuma reação a esse material que ilustrei. Ou seja, se eu fizesse a história sobre o suicídio de uma freira portuguesa ou de uma prostituta, nada mudaria. Ninguém ia comentar nada.
Aliás, às vezes, algumas freiras me pedem para fazer desenhos sobre determinada congregação, sobre o monumento ao fundador da ordem e coisas do gênero. De modo geral, a Igreja sabe o que faço, pois converso com padres que conhecem o que - e como - eu desenho.
Ou seja, o que faço não incomoda e nunca causou qualquer escândalo na Itália. Mesmo no caso desse trabalho.
UHQ: Você desenhou alguns cartazes de cinema, mas não apenas para Fellini, certo?
Manara: Sim, não fiz cartazes de cinema apenas para Fellini. Recentemente, fiz o do filme A fortuna de Cookie, de Robert Altman, que, segundo me contaram, gostou muito. Pelo que eu soube, tinha sido feito um cartaz na França, mas não gostaram. Então, a distribuidora italiana - a Lucky Red - me encomendou um novo.
Aí, fiz duas versões, uma horizontal e outra vertical. E, quando ficaram prontas, o representante da Lucky Red mostrou ao Altman, que gostou muito do cartaz e fez o elogio.
UHQ: Você já disse, inclusive num livro, que não tem uma boa relação com o mercado de publicidade. Ainda assim, em 2007, desenhou o kit de imprensa da Chanel, promovendo uma linha de cosméticos. E já havia trabalhado para a marca em 1998 (numa série de aquarelas que serviram de storyboard para o comercial televisivo Le Chaperon Rouge, dirigido por Luc Besson, para promover o perfume Chanel N° 5). Quais suas exigências para trabalhar para propaganda?
Manara: Sim, me encomendam muitos trabalhos publicitários, mas, nesse caso específico da Chanel, o mais recente, era um folder de divulgação interna, não uma campanha publicitária.
Nas raras vezes em que concordo em fazer material para publicidade, faço uma exigência: que não seja com imagens repetitivas.
Há alguns anos, eu até ganhei prêmios por uma campanha publicitária de roupas íntimas que fiz e saiu em jornais. E fiz essa mesma exigência. Para mim, o grande defeito da publicidade é a repetição; a coisa chega a ser tediosa.
Mesmo quando a propaganda é bem feita, depois da terceira vez que você a assiste, não chama mais a atenção. Ao menos no meu caso, quando escuto um certo jingle na televisão, mudo de canal porque já começa a me aborrecer.
Eu já fiz publicidade para algumas empresas e acho que dei sorte porque, depois disso, elas se tornaram grandes corporações, como, por exemplo, a italiana Fastweb, de telefonia e TV a cabo (em 2001), ou a Yamamay, de lingeries (em 2007).
Mas, mesmo nesses casos, houve alguns problemas, pois o pessoal responsável pela área de criação das empresas quer que eu faça um desenho não do meu estilo, mas do jeito que eles querem. E ainda me pedem que assine!
Aí, eu digo: se é importante a minha assinatura, então faço do meu jeito. Se for como estão me pedindo, não faço.
UHQ: Em 2009, foi lançado o álbum X-Men - Garotas em fuga e, na edição italiana, você foi absolutamente honesto ao dizer que não conhecia os personagens, porque não se interessa por super-heróis. Esse convite, então, foi aceito porque o pagamento valia a pena?
Manara: Primeiramente, vale dizer que recebi nada de extraordinário para fazer a graphic novel. Eu realmente não fiz por interesse econômico, porque a distribuição de direitos autorais da Marvel é um pouco pro autor, um pouco pro coautor, um pouco pra editora. Então, não foi pelo dinheiro.
Eu estava com o roteiro nas mãos havia dois ou três anos. Nesse período, ficavam me perguntando: "Então, quando vai desenhar?". Até que, um dia, decidi ir em frente no projeto.
E gostei de fazer, pois um desenhista de quadrinhos não pode se considerar completo se não tiver no currículo uma história de super-heróis. Pois os super-heróis são um tema clássico, que faz parte da história dos quadrinhos.
Aliás, eles são a história dos quadrinhos.
Moebius também fez super-heróis, uma história do Surfista Prateado. Aliás, acho que foi depois que vi o trabalho dele que pensei que também deveria fazer uma.
Comparando com um diretor de cinema, seria como filmar um faroeste, o que, na minha opinião, deveria ser uma passagem obrigatória para esse tipo de profissional.
UHQ: E no caso de Desejo, de Neil Gaiman? Você já havia lido alguma coisa de Sandman anteriormente?
Manara: Eu nunca me encontrei com Neil Gaiman. Falamos apenas por telefone, ainda assim com intérprete. Mas ele era fã do meu trabalho muito antes de eu fazer essa história de Desejo (para o álbum Noites sem fim). Tanto que quando Stardust foi publicado, ele me pediu que escrevesse uma frase para a quarta capa, com algum comentário sobre a obra.
Em resumo, Gaiman aprecia o meu trabalho; e eu aprecio o trabalho dele, mas nunca nos encontramos.
Antes de fazer esse trabalho, eu nunca havia visto Sandman, pois moro numa cidadezinha da Valpolicella (Nota do tradutor: Manara já desenhou até rótulos para os famosos vinhos da localidade - veja na galeria de imagens), na região de Verona, no interior da Itália, e nas suas bancas de revistas há pouquíssima coisa.
Então, se não me mandam quadrinhos, eu não leio. Apenas em ocasiões de mostras e eventos, em que vou sempre embora com a mala cheia de materiais.
Eu geralmente leio livros, mas também me interesso por quadrinhos. O último que li, escrito por Walter Chendi, conta a história dos hebreus na região italiana de Trieste (nota do tradutor: La porta de Sion, ou O Portal de Sião, em português). Aliás, esse é um romance gráfico, pois Chendi é um desenhista.
Quando pego uma história em quadrinhos escrita numa língua que não compreendo, eu levo, mas apenas vejo os desenhos.
UHQ: O que acha de Giovanna Casotto? Ela pode ser considerada sua "herdeira" nos quadrinhos eróticos?
Manara: Eu conheci Giovanna num programa de televisão de que participamos juntos. Se ela seria uma herdeira? Creio que o que nasce com o homem, morre com o homem; o que nasce com a mulher, morre com a mulher.
Giovanna tem a sorte de ser a modelo dela mesma. Tira fotografias de si própria e depois desenha. Já eu, infelizmente, não tenho essa possibilidade.
Ou seja, todos somos herdeiros de alguém e vamos deixar herdeiros. O trabalho que faço é um exemplo, pois não tenho exclusividade sobre o erotismo. Basta ver os desenhos de Giulio Romano, no Século 16, ou os afrescos de Pompeia, que eram muito eróticos.
O erotismo sempre existiu. Então, posso dizer que sou um herdeiro de quem fez os afrescos de Pompeia. O erotismo é um tema muito amplo e ainda bem que ele muda no tempo e no espaço. Por isso, pode ser atualizado, o que dá oportunidade de sempre se fazer um erotismo novo, diferente.
Se não fosse assim, iam ficar sempre repetindo as mesmas imagens.
UHQ: Você tem ideia de quantos países já publicaram trabalhos seus? Qual o mais inusitado? Conhece as edições brasileiras?
Manara: Tenho consciência de que quase tudo que fiz já saiu no Brasil. Inclusive, alguns anos atrás, eu tinha um editor português, da Meribérica, que também mandava meus materiais para cá.
Hoje, quem publica meus livros aqui é a Conrad e ontem mesmo fiz várias dedicatórias para o pessoal da editora.
Não sei dizer em quantos países já fui publicado, mas sei que minhas obras foram lançadas nos principais idiomas do planeta.
Uma curiosidade sobre material estrangeiro? Há pouco tempo recebi pelo correio uma caixa enviada pelo embaixador italiano de Seul, na Coreia do Sul. Para minha surpresa, era um prêmio que eu havia ganhado naquele país.
Eu coloquei o prêmio em cima do armário, junto com outros que ganhei ao longo de minha carreira, e, depois de um tempo, ele acabou caindo na minha cabeça. Ainda assim, foi, sem dúvida, uma belíssima surpresa.
UHQ: Milo, muito obrigado pela entrevista.
Manara: Foi um prazer. Um abraço a todos os meus leitores do Brasil.