Neil Gaiman: O autor que resgatou o Sonho nos quadrinhos
Neil Gaiman, o roteirista britânico que conduziu o personagem Sandman do limbo ao estrelato, transformando-o completamente, esteve no Brasil em maio, a convite da Conrad Editora. O Universo HQ esteve com ele numa ENTREVISTA EXCLUSIVA, na qual o autor falou sobre suas obras, seus projetos, ídolos, artistas com quem gostaria de trabalhar e muito mais! De quebra, aproveitou para "detonar" Todd McFarlane
22 de maio de 2001. Uma terça-feira cinzenta em São Paulo. Depois de semanas de muita ansiedade, os editores do Universo HQ estão prestes a partir para o hotel onde Neil Gaiman (clique aqui para saber mais sobre o autor) está hospedado, para uma entrevista exclusiva com o autor. No entanto, pouco antes de saírem, recebem a notícia que isso não seria possível, por problemas de agenda com outros órgãos de imprensa!
E agora? O que fazer? Desistir e deixar nossos leitores na mão? Negativo! Chegamos ao hotel pouco antes do almoço que aconteceria e, como não tínhamos outra opção, não tivemos dúvida: entrevistamos Neil Gaiman no seu quarto, graças à compreensão e ao apoio do pessoal da Conrad Editora (valeu, Cassius!). Um esforço que, você vai ver, valeu a pena!
Nesse bate-papo, Neil Richard Gaiman (pouca gente conhece seu nome completo) falou de sua relação com Sandman, seus métodos de trabalho, a pesquisa que fazia para escrever os roteiros etc. Também contou detalhes sobre o filme da Morte e disse que faz questão de manter distância de uma possível versão de Lorde Morpheus para as telonas (você vai entender a razão já, já).
Gaiman revelou ainda o que há de verdade sobre o seu contato com Joe Quesada e, conseqüentemente, com a Marvel. Sobre a confusão que envolve os direitos de Miracleman e Angela (a caçadora de Spawns que ele criou para a revista do Soldado do Inferno), o roteirista "rasgou o verbo" para definir o que pensa sobre Todd McFarlane.
Ele falou ainda sobre seus artistas prediletos, seu próximo livro (American Gods) e até falou de sua expectativa para Dark Knight Strikes Again, a continuação da obra-prima Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller.
Ao fim de nossa conversa com Neil Gaiman, apenas ratificamos algo que já sabíamos: o quanto ele é atencioso com seu público. Bem, mas isso você também vai saber agora, curtindo a entrevista!
Universo HQ: O você lia quando criança?
Neil Gaiman: O primeiro livro que lembro de ter lido, que pode não ter sido o primeiro na verdade, era sobre pequenas e solitárias sereias que nadavam por aí. Lembro também de vários quadrinhos ingleses estranhos com animais engraçados e que, por razões que esqueci, adoravam geléias de frutas. Havia geléia em todos os lugares no final da história. Bem, mas eu tinha 3 ou 4 anos.
O primeiro livro que lembro realmente ter adorado, como um autor, era um que vi quando tinha 6 anos. Descobri a série de livros Narnia, de C. S. Lewis. Sua história The Lion, The Witch and the Wardrobe, foi muito mal adaptada para a televisão em 1955 ou 1956, mas assisti a um episódio, fui para casa e pedi para meu pai comprar The Lion, The Witch and the Wardrobe. Então, no meu sétimo aniversário, em 1967, ganhei toda a coleção, com os sete livros. Eu os li várias vezes. Essa é a primeira coisa que lembro ter lido e ficado viciado quando criança.
UHQ: Seu primeiro trabalho publicado foi Violent Cases?
Gaiman: Em quadrinhos, sim! Foi Violent Cases.
UHQ: Você tem materiais anteriores a Violent Cases como escritor?
Gaiman: Sim, sim. Eu tenho Ghastly Beyond Belief, que é um livro que fiz com um escritor chamado Kim Newman, sobre citações dos piores livros e filmes de ficção científica e terror. Há também uma biografia de um grupo de Rock and Roll sobre o qual eu não falo. Ok, ok... era uma biografia sobre Duran Duran. Me pagaram 2000 libras. Você sabe, eu tinha fome, precisava comer. (risos)
Eles disseram: "Você quer escrever sobre Barry Manilow, Def Lepard ou Duran Duran?". E eu escolhi Duran Duran, porque eles tinham feito menos coisas. Então, deduzi que seria um livro menor para escrever! (risos)
UHQ: Sandman é hoje um "mito" dos quadrinhos. Como você se sente como seu criador?
Gaiman: É difícil colocar isso em palavras. Uma vez, perguntaram ao George Harrison sobre os Beatles. Ele disse apenas: "Veja, você tem que lembrar que sou uma das únicas quatro pessoas em todo o mundo que não tem idéia do que os Beatles fizeram ou do que acontecia com eles, porque nunca ligávamos o rádio para ver se tinha um novo disco do grupo, nunca procurávamos saber o que estavam fazendo, qual era a capa do novo álbum. Éramos as únicas quatro pessoas da década de 1960 para quem os Beatles não existiam".
De muitas maneiras, sou a única pessoa de todo o mundo dos quadrinhos para quem Sandman não existia. Todos os outros, queriam saber o que estava acontecendo, o que estava planejando, o que viria a seguir. Enquanto eu me preocupava com coisa do tipo "Ok... meu Deus, eles colocaram o balão no quadrinho errado" ou "Onde está a capa?".
Assim, nunca aconteceu de eu me sentar durante a criação de Sandman e dizer: "Veja, estou criando um mito para o fim do Século Vinte". Ao invés disso, eu falava: "Meu Deus, tenho quatro edições para essa história, e apenas três para chegar em Sandman #49, porque o número 50 é aquele que Craig Russell já está desenhando. Como vou terminar Vidas Breves? O que terei que omitir?".
Era uma preocupação diária com a mecânica da coisa. Acho que American Gods, meu novo romance, possui características mitológicas, assim como Sandman. Se Sandman foi uma mitologia para o fim do século 20, American Gods tenta criar uma para o século 21. Olhando com a perspectiva de já ter terminado o livro, na hora em que o estava fazendo, tudo que queria saber era para onde o personagem ia a seguir, e como terminar uma frase e saber o que aconteceria a partir dali.
UHQ: Em 1988, quando Karen Berger o convidou para assumir um personagem da DC, Sandman não era a primeira opção. Quais eram seus preferidos e o que pretendia fazer com eles? Uma reformulação tão radical como a realizada em Sandman?
Gaiman: Inicialmente, eu estava apenas procurando uma maneira de fazer bem os personagens da DC. Ela me perguntou quem eu gostaria de escrever, e eu disse que minha escolha número um seria o Vingador Fantasma. Eu adoro a idéia do personagem. Alguém que não tem sua própria história, mas que entra nas histórias de outras pessoas. De muitas maneiras, emocionalmente, algumas coisas que eu teria feito no Vingador Fantasma acabaram sendo usadas em Sandman.
UHQ: Você ainda quer fazer algo com ele? Ou perdeu o interesse?
Gaiman: É difícil. Não é que eu perdi o interesse. Há um script que nunca foi usado de Sandman #24. Nas primeiras cinco páginas dessa edição, eu escrevi originalmente uma versão onde Sandman está voando de volta do inferno e acaba encontrando o Vingador Fantasma. Eles ficam lá, parados, e têm uma conversa sobre o que está para acontecer, dizendo coisas misteriosas que só têm algum significado para eles mesmos. Não funcionou muito bem, porque Sandman e o Vingador Fantasma são muito parecidos. Quando tinha uma página e meia disso, eu pensei como aquilo estava bobo, e cortei tudo.
Assim, suponho que, ao longo desses anos, provavelmente já tenha feito em Sandman tudo que queria ter feito com o Vingador Fantasma.
Acho engraçado olhar para trás e ver as razões que a DC me deu para eu não fazer o Vingador Fantasma. A razão dada foi que ele "não era heróico o suficiente". (risos de incredulidade)
Eles disseram que não poderíamos fazer uma revista mensal com o Vingador Fantasma, pois ele não era "herói o suficiente". Aí, me pediram para escolher outro.
UHQ: Isso não era estranho?
Gaiman: Naquela época, em 1987, 1988, fazia bastante sentido. Então, eu sugeri Etrigan, e eles disseram não, pois Matt Wagner estava o fazendo. Deixa eu ver quem mais sugeri... o Arqueiro Verde. Mas eles deram uma resposta negativa novamente, porque Mike Grell estava trabalhando com o personagem.
UHQ: Quando você começou a escrever Sandman, já tinha toda a família dos Perpétuos ou você os criou à medida que ia fazendo o título?
Gaiman: Acho que pelo menos três deles são citados em Sandman #1. Se não me engano são Desejo, Destino e Morte.
UHQ: E os outros são citados no número 9.
Gaiman: Sim, na edição # 9 todos são citados.
UHQ: Com exceção de Destruição.
Gaiman: Isso, exceto Destruição. E eu acho que Delírio não é citada pelo nome, ela não teve seu nome citado até a edição 21. Mas eu não sabia quem eram todos.
UHQ: Você foi desenvolvendo os conceitos enquanto escrevia?
Gaiman: Isso foi interessante, pois fui conhecendo os personagens com o tempo. Pensava que Delírio seria bem agressiva e brava e, ao invés disso, ela mudou para um tipo mais imprevisível quando finalmente apareceu.
UHQ: Em Sandman, por várias vezes, você lançou informações aos leitores, que só seriam explicadas dezenas de edições à frente. Você tinha tudo em mente, desde o inicio?
Gaiman: Sim. Existem coisas na edição # 71 que não fazem sentido até o número 75, por exemplo. Essa é a diversão em fazer uma série mensal. Criar coisas que só acontecerão com o passar do tempo.
UHQ: Mas não se vê muitos escritores fazendo isso.
Gaiman: Pois é, mas eu não sei porque não fazem isso, pois é como Joe Straczynski fazia com Babylon 5. Ele diz: "Aqui estou eu escrevendo essa série de TV que terá duração de cinco anos. Vou fazer uma história, e coisas acontecerão aqui, e terão sentido ali". Atualmente, ainda se vê seriados, com uma equipe diferente, um novo grupo de roteiristas a cada temporada. Eles jogam tudo que aconteceu na última temporada no lixo e passam por cima do que aconteceu anteriormente.
Existem tantos seriados por aí onde você gostaria que eles soubessem o que estavam fazendo durante todo o tempo.
UHQ: Você fazia muitas pesquisas para Sandman. Isso era um problema, por se tratar de uma série mensal, por causa dos prazos?
Gaiman: O que acontecia é que eu alternava histórias que precisavam de muitas pesquisas com outras que não exigiam. A maioria das minhas pesquisas era sobre fatos históricos, porque fiquei um pouco obcecado em dar os detalhes corretos. Assim, nas histórias sobre a Revolução Francesa e sobre o Imperador Norton (nota do UHQ: Sandman # 29 e 31, respectivamente) era o tipo de coisa que eu queria ter certeza que meus detalhes estavam corretos. Isso valeu também para Homens de Boa Fortuna (nota do UHQ: Sandman # 14) e, você sabe, as histórias com Shakespeare.
Os estudiosos e professores de Shakespeare estão ensinando essas histórias em universidades agora. E uma das razões para isso, é justamente porque os detalhes estavam corretos.
UHQ: Além das inúmeras referências literárias, Sandman tinha também muitas outras visuais. Elas eram propostas por você ou pelos desenhistas?
Gaiman: A maioria delas estavam no script. Ocasionalmente, Mike Dringenberg adicionava alguma coisa, mas a maioria estava no script.
UHQ: A revista Sandman gerou diversas mini-séries além de outros títulos, com personagens criados na série. Você acompanhou algum desses títulos? Gostou do que leu?
Gaiman: Hoje em dia, eu as leio por prazer. Quando me mandaram Lúcifer, eu li porque era divertido. Eu gosto de algumas coisas que foram feitas. O resto, fico feliz em não ser mais consultado. Especialmente, porque ser consultor é uma tarefa muito ingrata. Eles te consultam e dizem: "O que você acha disso?"; e eu respondo: "Eu não faria isso assim". E a resposta é: "Bem, mas vamos fazer desta maneira mesmo".
UHQ: Certa vez, você disse que gostava muito das edições brasileiras de Sandman (nota do UHQ: publicadas pela Editora Globo) O que achou da edição nacional de Sandman - The Dream Hunters, da Conrad Editora?
Gaiman: Nossa, incrível! Absolutamente incrível! A arte do Amano está linda! Lembro que eu queria um dos desenhos dele feitos para esse álbum para mim, para colocar no meu quarto. Então, ele me deu, e disse que havia um que gostava muito. Foi justamente o que ganhei! (risos)
Ele nos dava várias e várias ilustrações, e dizia para escolhermos quais queríamos para usar em Dream Hunters. Ele chegava com todos aqueles desenhos lindos, mas era difícil escolher um. Daí, eu respondia que queria todos! Ele ficava surpreso, e dizia que a sua editora no Japão nunca tinha feito isso. Eu não dava opinião sobre como deveriam ser os desenhos, ele lia o texto e fazia como achava melhor. Amano fazia tudo muito rápido. Num dia não tinha nada, no outro já tinha terminado um capítulo inteiro.
Definitivamente, gostaria de trabalhar com ele novamente. Ele é brilhante!
UHQ: O que pode ser dito sobre The Endless, a antologia sobre Sandman e seus irmãos?
Gaiman: Eu não sei. Não começarei a escrevê-la até terminar a turnê. Só sei que queremos ter um grupo muito, muito bom de artistas. É um projeto que prometi para a Karen (Berger), a minha editora, que tem sido muito paciente. Ela está esperando por isso há, pelo menos, dois anos. É possível que eu saia da turnê de American Gods e, de repente, as coisas começam a crescer com o script do filme da Morte e ela tenha que esperar mais uns seis meses. Espero que sua paciência continue. Neste meio tempo, conversaremos com vários grandes artistas, pessoas de todo o mundo.
UHQ: Existem muitos rumores dizendo que você teria oferecido a edição # 25 de Miracleman para Joe Quesada publicar pela Marvel. Poderia esclarecer algo sobre isso?
Gaiman: Eu e Joe finalmente conseguimos conversar. O esquisito é que nós soubemos mais sobre o que estava acontecendo através do que estava sendo publicado pela imprensa mantida por fãs. O boato surgiu antes mesmo de conversarmos. O curioso nesse tipo de imprensa, é que sempre estão à frente do que está realmente acontecendo no mundo real.
Essa idéia sobre Miracleman já havia me ocorrido, mas não tenho certeza se Joe havia pensado nisso até de começar a rolar na imprensa. Então, conversamos uns dois minutos antes de ele ir para a Inglaterra e eu vir ao Brasil. E dissemos: "Vamos ver o que podemos fazer".
Quando eu voltar do Brasil e ele voltar da Inglaterra...
UHQ: Existem alguns rumores dizendo que ele foi visto na Inglaterra com você! (risos)
Gaiman: Legal! Adoraria estar lá. É isso que quero dizer sobre Internet. Existe um certo nível de verdade, porque está lá, escrito. São coisas que, se fossem ditas por um bêbado num bar, ou por um garoto gordo que vive em frente a uma comic shop, as pessoas não acreditariam. Mas na internet...
Não sei se é assim no Brasil, mas nos Estados Unidos toda comic shop tem um garoto gordo. Eles não trabalham lá, mas sempre ficam andando em frente à loja e dizem (Neil Gaiman começa a fazer a imitação do garoto):
— "Jo Duffy? Claro! Ele é um grande sujeito. Eu conheço o Jo".
— "Mas Jo é uma mulher!"
— "Ei, o que você está dizendo? Eu conheço Jo Duffy. Ele é um bom sujeito!"
Esses caras sentam por lá e dizem (a imitação recomeça):
— "Sabe a verdadeira razão de Alan Moore não trabalhar mais para a Marvel? Não tem nada a ver com aquilo que dizem. O motivo é que, você sabe, o presidente da Marvel naquela época estava dormindo com a irmã do Alan Moore".
— "Mas o Alan Moore não tem uma irmã..."
— "Olha, é verdade, cara! Eu ouvi do Jo Duffy, cara! Ele é um bom sujeito!"
Você sempre encontra um idiota que fala alto na frente de uma loja de quadrinhos. Nem sempre são gordos. Mas muitos deles são. Eles ficam por lá e falam alto, como se soubessem tudo, todos os segredos.
Hoje em dia, esses sujeitos estão na Internet também. Você vê apenas as letras, e não sabe quem são. Mas são apenas esses balofos que ficam na frente de comic shops, achando que sabem tudo.
UHQ: Falando em Miracleman, como anda realmente a situação sobre seus direitos autorais? Podemos ter a esperança de ter Miracleman reeditado?
Gaiman: Está tudo muito confuso. É muito estranho. Todd McFarlane obviamente não é alguém em quem se possa confiar. Todd McFarlane é uma pessoa que promete uma coisa e, assim que se torna conveniente para ele, faz outra. Acho que, olhando para trás, se pudesse viver tudo de novo, faria praticamente tudo igual ao que fiz, mas quando Todd me telefonasse e dissesse: "Ei, vamos movimentar as coisas pelos direitos autorais. Será tudo seu. Vai ser muito legal. Escreva uma edição do Spawn para mim, você pode fazer o que quiser".
Eu responderia: "VAI SE FODER, Todd!", e desligaria o telefone.
Isso tudo é muito triste! Agora, temos esse mundo, onde... McFarlane... as pessoas pensam nele como "o Todd, dos direitos dos criadores". A empresa de Todd McFarlane é a única que não paga royalties aos seus criadores. Os escritores e artistas de Spawn e outras publicações não recebem royalties. Eles dizem o seguinte: "Nós não pagamos royalties. É assim que os outros fazem. Mas você é nosso amigo, gostamos de você e tudo mais. Todd te mandará um cheque. Será um bom dinheiro, melhor do que royalties. Ok?" O que é legal, desde que Todd decida realmente te mandar o cheque. Então, um dia, ele resolve não mandar mais o cheque.
Eu prefiro ter os royalties. Acho que é por isso que os artistas têm lutado, pelos direitos autorais. É disso que se trata. E, nesses dias, existem pessoas como Todd McFarlane, que ganhou poder falando sobre os direitos direitos autorais, e arrasta tudo para trás, como era na década de 1930. E pessoas como Larry Marder (nota do UHQ: diretor executivo da Image), que estavam lá, no encontro dos criadores, em Northampton, assinando a carta que estabelecia os direitos dos criadores, agora está lá com o McFarlane.
Acho tudo isso triste. Verdadeiramente triste.
UHQ: O que você achou do uso do nome do alter-ego de Miracleman em um personagem de uma história do título Hellspawn?
Gaiman: Eu apenas ouvi falar sobre isso. Acho fascinante...
UHQ: No bom ou no mau sentido?
Gaiman: Não tenho certeza se isso pode ser fascinante no bom sentido (risos).
É apenas mais um exemplo de como Todd quebra uma promessa. Eu ainda tenho as declarações dele por escrito. Ele me deu Miracleman! Ele me mandou todos os filmes de Miracleman e disse: "Bom, pode usar isso". Agora, de repente, ele decidiu: "Você sabe que há dinheiro nisso... Foda-se minha promessa. Se Gaiman quer problemas, ele pode me processar. Olha, eu valho uns 100 milhões de dólares. Eu comprei uma bola de baseball de 3 milhões de dólares".
Isso é esquisito. Andei falando com advogados sobre isso, e me disseram: "Você está certo. Você possui todo o material e pode vencer o caso. Ele apelará. Mas, se você ganhar, pode até falir, pois pode gastar facilmente um milhão de dólares nesse caso. McFarlane também pode gastar o mesmo valor. No entanto, no final, Todd não dará a mínima. Ele tem muitos milhões de dólares, enquanto você pode ter que trabalhar pelo resto de sua vida para pagar o caso que venceu."
UHQ: American Gods está sendo aguardado com grande ansiedade pelos fãs. Qual a sua expectativa sobre essa obra?
Gaiman: American Gods foi o primeiro romance em que eu senti que fiz algo tão bom quanto Sandman. Esse foi o primeiro livro que realmente me sentei para escrever sozinho, e fiz isso desde o começo.
UHQ: Como anda o projeto do filme da Morte? Você vai realmente dirigir o filme?
Gaiman: Sim, é verdade. Se acontecer, é verdade.
UHQ: O projeto já recebeu "luz verde"?
Gaiman: No momento, a "luz" está amarela, mas nós estamos seguindo em frente. Eu entreguei um primeiro script para a Warner e para uma companhia produtora. A Warner leu e adorou; a produtora, leu e odiou. Então, eles demitiram a produtora e estão contratando uma outra companhia, que é bem legal.
Muitas, muitas coisas podem dar errado entre o estágio em que estamos e as filmagens. Por exemplo, eu poderia escrever um script muito bom ou um apenas bom o suficiente. Se o roteiro começar a rodar por Hollywood e alguém como Robert Zemeckis ler, ele pode ligar para a Warner e dizer: "Sabe que eu gostaria muito de dirigir esse filme sobre a Morte?".
De repente, posso me encontrar em um escritório de Hollywood com alguém dizendo "O seu contrato diz que se você não dirigir o filme, teremos que te pagar toda essa grana só pelo script" (nota do UHQ: o contrato com Gaiman é para escrever e dirigir o filme). Isso porque eu estou fazendo pelo preço básico da associação dos escritores, que é muito mais baixo do que cobraria para escrever um filme. Hoje, eu cobraria uns 750 mil dólares por um script, mas estou fazendo por algo entre 25 e 50 mil.
Eles ainda poderiam dizer: "Ei, nós temos boas notícias para você. Aqui está o seu cheque, mas outra pessoa dirigirá o filme". Essas coisas podem acontecer. Isso é Hollywood, o que significa que pode acabar não acontecendo nada. No momento, acho que as estatísticas são de algo em torno de 18 a 30 scripts para cada filme em desenvolvimento. Assim, as chances desses filmes serem produzidos são de 20 para 1.
UHQ: É sabido que o projeto do filme do Sandman anda tão mal que você não quer se envolver com isso. O que exatamente está acontecendo?
Gaiman: Eu nunca quis fazer parte disso. Eu acho que é muito bom não fazer parte disso. Eles começaram com um script de Elliot Rossio, que eu achei bom. Então, eles foram para o script do Roger Avary (nota do UHQ: antigo parceiro de Quentin Tarantino), que eu também gostei.
UHQ: Não era Peter Guber que estava envolvido, quando acabou ficando ruim?
Gaiman: Não. Era Jon Peters (nota do UHQ: um dos produtores, junto com Peter Guber, do filme Batman, de 1989). Ele decidiu fazer o script parecer mais com as coisas que gosta de produzir. Você sabe, lutas e essas coisas. Há pouco tempo me enviaram alguns rascunhos, muito parecidos com aquele ruim. É sempre a mesma coisa. Agora, eles querem um interesse romântico para o Sandman.
Eles querem que o Coríntio seja o vilão. Ele seria como o Sandman, só que mais poderoso. Querem que eles lutem e que o Coríntio ameace seqüestrar a namorada do Sandman. Isso é muito estúpido!
UHQ: O que aconteceu com Neverwhere (nota do UHQ: uma série que o autor escreveu para a TV inglesa)? Por que não deu certo?
Gaiman: Não deu certo em que sentido? O filme ou...?
UHQ: A série de TV. Não passou aqui no Brasil.
Gaiman: Ah, não passou em vários lugares. A razão é que a BBC filmou em vídeo. Eu ainda não entendi porque eles fizeram isso, mas quando começamos eles nos disseram: "A única regra é que deverá ser filmado em vídeo". Isso deixou o resultado final ruim. Nós filmamos tudo em locações, mas ficou parecendo que estávamos nos cenários do Dr. Who (nota do UHQ: Dr. Who é um famoso personagem de ficção científica inglês, bastante antigo, que teve várias séries na TV, por muitos anos).
Com isso, acho que apenas umas três estações de TV no mundo poderiam comprar a série. A maioria das estações de TV olhava e não queria, justamente porque era em vídeo. Parecia com Dr. Who.
Eu não sei por que a BBC fez isso, numa época em que seriados como Arquivo X são feitos em filme. Teria somado mais uns 50 mil dólares ao custo de cada episódio, eu acho. Mas também significaria que teriam uma venda maior pelo mundo, e obteriam muito mais retorno. A HBO disse: "Nós adoraríamos exibir isso, mas como é em vídeo, não vamos passar".
UHQ: Vamos voltar aos quadrinhos... Certa vez, você já disse que adoraria escrever Batman. Por quê?
Gaiman: Eu adoraria fazer uma história com o Batman, porque ele é tão complexo, um personagem tão flexível. O mais legal sobre Batman é que ele está aí há 60 anos. Nesse tempo, existem cem mil, duzentas mil, trezentas mil histórias ruins com ele, e apenas cem, duzentas ou trezentas boas.
Eu adoro o personagem. Ficaria muito, muito feliz em fazer um projeto com ele. Quase fiz um com Simon Bisley. Assinei contrato com a DC Comics anos atrás, mas nunca chegou a acontecer.
UHQ: Qual sua expectativa para Batman: The Dark Knight Strikes Again?
Gaiman: Eu espero que seja tão boa quanto Frank (Miller) me disse, numa noite em um navio, há um ano. Ele começou a me contar. Ficamos acordados até umas quatro da manhã com ele dizendo o que fará. Eu lhe dei uma idéia, vamos ver se ele vai usá-la.
UHQ: Em uma edição especial de Cassidy, o vampiro amigo de Jesse Custer, em Preacher, um personagem foi desenhado à sua imagem...
Gaiman: Fiquei puto com isso. Liguei para o Steve Dillon e disse "Steve, amigo, isso era para ser eu? Está tirando um sarro de mim?". E ele disse: "Não, não se parece com você. Eu te conheço há bastante tempo e, se quisesse te desenhar, se pareceria com você". Então, eu pensei... "Hummmm... até que não se parece comigo".
Quero dizer, Steve me conhece há muitos anos e, se quisesse, não faria apenas alguém com óculos escuros e cabelos negros. Ele desenharia alguém que se parecesse mesmo comigo.
UHQ: E como é o seu relacionamento do Garth Ennis?
Gaiman: É bom.
UHQ: Duas perguntas em uma. Qual revista você tem lido recentemente? Quais escritores e desenhistas você admira?
Gaiman: O que estou lendo? A última coisa que li e adorei, pouco antes de sair de casa, foi o livro How to be an Artist, de Eddie Campbell. Todos deveriam ler isso. Não é apenas uma revista muito boa, mas também uma maneira de se entender os quadrinhos. Ver como é a coisa de verdade. Acho Eddie Campbell um gênio.
Sobre quem eu admiro, se Jack Kirby era o Rei dos quadrinhos; e ele era "os músculos", então Will Eisner ainda é o "coração".
Dave Sim, apesar de às vezes eu não ter idéia do porquê de ele estar fazendo o que faz, ainda é um cartunista incrível. Se você vir a última edição com todas aquelas ovelhas... Você viu o último número de Cerebus?
UHQ: Vimos muitas edições, mas essa última ainda não!
Gaiman: O mais recente tem o Cerebus trabalhando em uma fazenda de ovelhas. Ele carrega a ovelha pelos lugares, e as expressões no rosto da ovelha são pura mágica.
Também acho Jeff Smith um gênio. Adoro o trabalho de Charles Vess, e ainda gosto dos Hernandez.
UHQ: O que acha do Mike Mignola?
Gaiman: Ele é um artista muito bom, mas eu nunca o vi da mesma maneira como escritor.
UHQ: Não gosta de Hellboy?
Gaiman: Eu gosto de Hellboy, mas não me chama tanta atenção... Sabe, eu acabo olhando os desenhos, ao invés de "Meu Deus, que belo argumento". Quer dizer, o argumento é sólido, mas ele não é um Alan Moore, não é um Warren Ellis.
UHQ: Na sua opinião, qual a solução para a atual crise no mercado de quadrinhos?
Gaiman: Opa, essa é fácil! (risos)
Minha única solução para a crise nos quadrinhos é: vou escrever uma boa história, que seres humanos - e não colecionadores - irão ler e gostar. É como eu faço. Isso funcionou para mim por sete anos. Quando eu fiz Sandman #75, as edições estavam esgotando nas lojas, mais que Batman e Super-Homem. Tínhamos 100 mil leitores. Nós conseguimos isso, numa época em que as revistas mais vendidas atingiam a marca de um milhão, porque eram vendidas de "baciada" para crianças ingênuas.
Quando o mercado quebrou, continuamos com 100 mil leitores. Você realmente podia ver, mês após mês, a revista subindo na lista de mais vendidas, com as mesmas vendas. Nunca vendemos com capa diferentes, nunca vendemos com a promessa de seios a mostra. Nós vendemos porque era bom, porque as pessoas queriam ler. A última edição de Sandman foi vendida há cinco anos. Hoje em dia, vendemos tantas graphic novels dele quanto há cinco anos. As edições vendem tanto em livrarias quanto em comic shops. Todo ano, mais de 100 mil graphic novels são vendidas. A revista não é mais publicada e as pessoas ainda a compram, porque é uma boa leitura.
Como eu solucionaria isso? Eu tentaria ter uma diversidade de boas revistas para todas as pessoas. Acho que é muito bom a DC estar fazendo essas revistas com os desenhos animados do Cartoon Network para as crianças. Você tem que ensinar às crianças como ler quadrinhos. De outra maneira, os leitores não surgirão de lugar algum.
Mas acho que devemos dar às pessoas razões para elas continuarem a ler. Não importa quantas vezes o Dr. Octopus morrerá, ele sempre estará de volta. Nada mudará nos quadrinhos de super-heróis. Isso é legal quando se tem 13 anos, e não é preciso que as coisas mudem. Tudo o que você quer é aquele poder da fantasia. Se você estivesse preso no trânsito de São Paulo, diria: "Se eu fosse o Flash, eu já teria chegado!". Isso é tudo o que se quer quando se tem 13 anos. Mas, a partir do momento que se tem 17,18 anos, você passa a querer algo mais. O ponto principal nos quadrinhos é a diversidade.
UHQ: Se você estivesse assistindo a entrega do Harvey Awards na primeira fila e Frank Miller, durante o seu discurso, o chamasse para ajudar a rasgar a Wizard, o que faria?
Gaiman: Nossa! Bem, eu acho que a revista Wizard fez um mal terrível aos quadrinhos. Principalmente porque trabalhamos em algo que é, ou poderia ser, uma forma de arte. Aí, você tem um veículo como a Wizard, que está tentando vender quadrinhos como um item de colecionador com mulheres peitudas na capa para pessoas estúpidas. E você tem vontade de dizer: se ao menos vocês calassem a boca...
UHQ: Por que a Inglaterra não tem um mercado de quadrinhos forte, uma vez que possui grandes talentos que são exportados e desenvolvem produtos para editoras americanas?
Gaiman: Eu não sei. Mas talvez seja até bom, porque se isso tivesse acontecido, não estaríamos trabalhando nos Estados Unidos. Quando eu analiso, vejo que as melhores coisas produzidas nos últimos 30 anos saíram pela 2000 AD. E as piores também! A 2000 AD fez coisas como A Balada de Halo Jones, livro três, foi o pináculo. Nunca mais fizeram nada tão bom quanto isso. Mas as razões para o mercado não ser forte... Honestamente, não sei lhe dizer. Gostaria de poder te dar uma resposta. Acho que parte disso é porque os ingleses não gostam, não confiam e realmente não acreditam em super-heróis. Assim, sempre que escrevemos esses personagens, fazemos de uma perspectiva de uma pessoa que não acredita naquilo.
UHQ: Parece que vocês têm um problema semelhante ao que estamos enfrentando no Brasil.
Gaiman: Acho que é verdade. A tradição inglesa nos quadrinhos é de revistas baratas semanais. Essa é a tradição. É por isso que a 2000 AD ainda funciona. Fazer com que os ingleses comprem coisas diferentes disso é difícil. Sei que a Titan Books vende 250 mil cópias de uma graphic novel de Sandman (nota do UHQ: as encadernações) na Inglaterra. Isso é muita coisa, e não inclui nada daquilo que vem da DC. Então, obviamente os ingleses estão comprando graphic novels.
Quero dizer, enquanto eu estava escrevendo Sandman, nunca me preocupei quando as pessoas diziam: "Por que não está escrevendo uma revista inglesa?". Dizia que estava, sim! Eu estava escrevendo uma revista na Inglaterra, para uma editora multinacional, a Time-Warner, que existe em todos os lugares. O título era impresso no Canadá e voltava para a Inglaterra. Por que isso é mais importante ou menos válido do que fazê-lo em Northampton, ou no escritório de alguém no East End londrino e ver isso ser impresso na Escócia? Os leitores ainda existem, e ainda estão lendo. Éisso que importa para mim.
UHQ: Qual o seu artista europeu favorito?
Gaiman: O meu favorito, entre todos os artistas europeus, é Moebius. Ele pode fazer mais coisas com menos recursos do que qualquer outro artista que eu conheça.
UHQ: Tem planos de trabalhar com ele?
Gaiman: Eu adoraria. Trabalharia com ele amanhã, se eu pudesse.
UHQ: E sobre sua intenção de trabalhar com o italiano Milo Manara?
Gaiman: Isso foi apenas um exemplo que eu dei durante a coletiva de imprensa, no Rio de Janeiro. Estávamos falando sobre artistas europeus e de outros lugares do mundo que poderiam fazer histórias para The Endless. Quando me perguntaram que tipo de histórias vou escrever, disse que não sabia; e que, no momento, estamos tentando encontrar um artista perfeito para as histórias.
Para mim, o artista perfeito para Desejo seria Milo Manara. Quem mais poderia ser? A melhor coisa sobre ele, é que todos podem ficar vestidos por 20 páginas e ainda assim será a coisa mais sexy que já se leu.
Assim, Manara seria minha primeira escolha para Desejo. Mas acho que as chances não são muito boas, porque toda vez que eu falo com o seu agente, Rafa, na Espanha, ele diz que Manara faz o que quer. Então, não tenho a menor idéia. Mas seria a minha primeira escolha.
UHQ: Você tem laços fortes com o oriente, como mostram Sandman: Caçadores de Sonhos e a adaptação do desenho animado Princess Mononoke, para citar dois. O que acha do mangá?
Gaiman: Gosto de alguns deles, não como um todo. Mas acho que eles fazem o oposto do que eu quero fazer. A maioria deles tenta reproduzir uma experiência quase cinemática, com a velocidade da leitura. Quando você vê alguém lendo mangá, vapt, vapt, vapt, há uma velocidade na leitura que se opõe ao que eu faço. Eu crio algo que te faz ficar lendo cada página por dez minutos, e então virar para a próxima.
UHQ: Mas você se diverte com eles?
Gaiman: Depende do artista. Há artistas de mangás tão preguiçosos quanto alguns de super-heróis. O traço estilizado de mangá é como traço estilizado de super-heróis. Seus olhos grandes e a ausência de narizes são tão estúpidos quanto os imensos músculos e as bocas que Rob Liefeld desenha, com 40 dentes. Yoshitaka Amano, Katsuhiro Otomo e Hayao Miyazaki, sim, são grandes artistas.
UHQ: Qual sua opinião sobre os quadrinhos na Internet?
Gaiman: Eu acho que quadrinhos na Internet começarão a funcionar bem quando as pessoas não tiverem que ler uma mensagem na tela dizendo "página um carregando, isso levará algum tempo, é melhor você preparar um café". No dia que não tivermos mais essas mensagens, daí sim teremos quadrinhos na Internet.
Quadrinhos são feitos para você sentar e ler. Não algo que se faz quando tem duas horas sobrando e não se tem nada mais pra fazer, e a pessoa vai para um computador e começar a fazer um download.
UHQ: É a sua segunda visita ao Brasil. Quais são suas impressões sobre os fãs locais?
Gaiman: Eu adoro o Brasil! Vocês são mais animados em tudo (risos). Futebol, quadrinhos... Recebi um telefonema, e me disseram "Sr. Gaiman, é do Brasil, e nós te amamos. Queremos fazer o Dia Neil Gaiman, e trazê-lo para o Rio de Janeiro, São Paulo e outros lugares. Teremos uma cerimônia e muito mais". Eu escutei aquilo e achei ótimo! Perguntei quando seria, e me responderam: "Terça- feira"!
Eu disse que não poderia. Aqui, todos dizem:
—"Ei, vamos fazer isso?"
— "Claro! Quando?"
— "Amanhã!"
Acho isso ótimo!
UHQ: Neil Gaiman, em nome dos leitores do Universo HQ, muito obrigado.
Gaiman: Muito obrigado a vocês! Foi bom revê-los!
* Na revista Herói.com.br # 23, que sairá em junho, você poderá conferir uma reportagem especial de Cassius Medauar, contando a "chata" experiência de ter acompanhado Neil Gaiman durante os cinco dias que ele esteve no Brasil. Vale a pena conferir!