Otto Guerra: levando Laerte ao cinema
Com uma carreira no cinema de animação que já soma mais de 40 anos, o gaúcho Otto Guerra lançou no dia 31 de outubro, o longa-metragem A Cidade dos Piratas, uma transposição do universo da quadrinhista Laerte.
O que inicialmente seria uma adaptação especificamente de Os Piratas do Tietê, chega às telas como um filme de narrativa livre, até um pouco caótica, no qual o diretor mostra as mudanças pelas quais Laerte passou em sua vida e sua obra.
A película reflete, também, sua própria mudança de abordagem, os problemas de saúde de Guerra (que enfrentou um câncer durante a produção) e até os conflitos com a equipe. O cineasta aparece em cena, dialogando com o capitão dos Piratas, que surge como uma espécie de alter ego.
Não é a primeira vez que Otto Guerra vai buscar inspiração nos quadrinhos. Seu segundo curta, de 1985, é As Cobras — O Filme, baseado nas tiras de Luís Fernando Verissimo. Dez anos depois, lançou o primeiro longa: Rocky & Hudson, os Caubóis Gays, dos quadrinhos de Adão Iturrusgarai.
Em 2006, foi a vez de Wood & Stock — Sexo, Orégano e Rock'n'Roll, agora com os personagens de Angeli. Agora, é a vez de Laerte. Otto Guerra falou com exclusividade ao Universo HQ sobre o novo filme e também sobre sua relação com os quadrinhos.
Universo HQ: Você acalentava esse projeto desde os anos 1990. E a Laerte tinha vários personagens interessantes – Fagundes, o puxa-saco; o Gato e a Gata... Por que, então, escolheu os Piratas do Tietê?
Otto Guerra: Sabe que não me lembro (risos)? Intuitivamente, acho que é essa metáfora do pirata. Eu me identificava muito com esse universo, o tipo de humor, a ultraviolência irônica, destruir tudo... Eu era rebelde, digamos. Na época, me pareceu que esses personagens tinham um universo grandão. E a Laerte começou a desenhar os piratas nos anos 1980, mas continuava fazendo em 1993, acho que estava fazendo histórias maiores.
UHQ: Tinha o gibi no começo dos anos 1990.
Guerra: Tinha histórias mais longas. Tinha aquela do pirata e o poeta, que tá no filme. Aquela me arrebatou. Mas tinha outras histórias que eu também gostava, como a dos palhaços mudos. Mas optei pelos piratas... talvez porque eu já tinha o alter ego do capitão (risos).
UHQ: No começo, a ideia era um filme mais convencional, não é?
Guerra: O roteiro em si não seria convencional, porque o humor da Laerte e a violência toda não era nada convencional. Mas em termos de uma história com “começo, meio e fim”, sim. Era uma ideia muito engraçada...
Os piratas chegavam às margens do Tietê antes dos bandeirantes. Os piratas estavam mancomunados com os índios. Aí eles fazem um acordo. Pelo contrato, a terra toda às margens do Rio Tietê eram cedidas aos bandeirantes por 500 anos e aí voltavam para os piratas. As benfeitorias todas seriam dos piratas. Do dia pra noite, a cidade vira propriedade dos piratas.
Era uma ideia boa, tinha a história do prefeito junto com uma mulher poderosa que criavam várias formas de tentar recuperar a cidade de São Paulo, tirar das mãos dos piratas. Mas, sim, era uma história convencional. A gente conseguiu nessa época alguns editais de desenvolvimento de roteiro, e trabalhou muito em cima do roteiro. É uma coisa que confirmou que não entendo nada de roteiro (risos)!
UHQ: Aí a coisa mudou. Você diz que estava insatisfeito. E isso casou com o fato de que a obra da Laerte mudou e que ela própria assumiu uma identidade feminina.
Guerra: Na real, o processo não foi do dia pra noite. Foi um troço longo. Eu já estava vendo que ela tinha dado um pulo muito grande no universo dela. Virou nonsense, transcendente. Virou um cara... pleno. Teve um contato com Deus e demônios, nas profundezas da alma.
Eu estava com medo de ampliar tanto, sair daquele mundinho ali dos piratas em São Paulo e mergulhar em coisas como essas histórias que acabaram ficando no filme. Na realidade, o trabalho da Laerte, do Angeli, do Glauco – los três amigos – e do Adão – que virou o quarto amigo – é uma espécie de metralhadora giratória que atira pra tudo que é lado, em todo mundo e, sobretudo, neles mesmos. Eles não se respeitam.
Com esse universo dos quatro amigos — um trabalho iconoclasta, que não tem nenhum herói — eu me identifico muito. Eu seria o “quinto amigo”.
UHQ: O direcionamento do filme passou a ser essa coisa autorreferente, autoinvestigativa. Como foi sair de um roteiro que era iconoclasta, mas convencional, para uma coisa que tem a aparência de ser solta, embora a animação exija que se trabalhe bastante essa parte do roteiro?
Guerra: Esse filme foi a volta às minhas origens, em relação à história. Quando eu fazia os próprios roteiros nos quadrinhos e os primeiros curtas. O Natal do Burrinho, meu primeiro curta (de 1984), não teve storyboard. Eu tinha uma sequência de cenas e ia fazendo sem roteiro. Era um processo que eu achava que era uma porra-louquice e há pouco tempo descobri que o Chaplin, por exemplo, não tinha roteiro.
UHQ: É, ele ia testando, na base da tentativa e erro.
Guerra: Até funcionar. É um método, também. Nesse filme, pude dar vazão a isso. Mas evidente que tu não podes ter uma hora e meia disso. A não ser que fosse cinema marginal – mesmo. Não tive coragem pra tanto.
Mas a história do que aconteceu na vida real como sempre sobrepujou a ficção, né?
Eu morrendo, a Laerte virando mulher. Sobretudo o trabalho dela ganhando esse fôlego absurdo, uma dimensão... A Laerte transcendeu, foi pra um nível que é ao mesmo tempo interessante e assustador. E isso me cativou, também. Não tinha mais por que fazer aquela história legal, engraçada, uma boa piada.
Seria como Wood & Stock: um filme engraçado, funcional, mas não gostaria de repetir. Aproveitei todos esses fatos, todos os acontecimentos ali, inclusive o fato de ter começado o filme anterior – o que gerou uma baita briga com o roteirista.
UHQ: Já tinha começado a animar o filme anterior?
Guerra: Sim, aquele começo todo.
UHQ: Como é a sua história com os quadrinhos?
Guerra: Toda criança desenha, né, cara? Eu segui desenhando, não parei. Fiz quadrinhos já a partir dos 10 anos. Conheci o Hergé, o Tintim, quando eu tinha 13. Foi uma guinada na minha vida.
UHQ: Chegou a publicar em jornal?
Guerra: Que nada. Eu tive um desenho publicado na Ebal, na revista Zorro. Na seção de cartas. Fiquei encantado: publicaram um quadrinho e um texto meus! Aquilo me animou a ir a São Paulo quando fiz 18. Fui à Abril, e falei com o Primaggio (Mantovi). Ele gostou do meu desenho, mas disse "Olha, ainda está imaturo para se publicar". Fiquei magoadíssimo (risos). Eu tinha feito no ano anterior uma oficina de animação e aquilo me atraiu bastante.
UHQ: Como foi fazer As Cobras, do Luis Fernando Verissimo, seu segundo curta e no qual você se voltou aos quadrinhos?
Guerra: Antes de As Cobras, a gente tentou fazer A Família Brasil, que eram personagens muito bons. Mas As Cobras surgiu pelo mesmo motivo que o Verissimo fazia: ele fala que não desenha.
UHQ: É, ele diz que cobra só tem pescoço, então é mais fácil.
Guerra: Então, a gente fez muito em cima disso (risos). A gente falou com ele, e o Verissimo liberou os direitos, adorou a ideia.
UHQ: O filme é uma série de esquetes, de tiras.
Guerra: É, piadinhas. A ideia era vender para a TV Manchete, no Rio.
UHQ: Vamos pular para o Rock & Hudson. Você já tinha uma amizade com o Adão.
Guerra: O Adão tem a ver com a época em que comecei a beber. Não bebia até os 30. Talvez por isso tenha conseguido montar o estúdio (risos). O álcool foi uma grande mudança na minha vida. Era superconservador e, de repente, dei uma guinada de 180 graus.
O Adão tem a ver com isso, com essa primeira fase etílica. A gente fez o filme bêbados: ele e eu também.
UHQ: Vocês eram amigos muito tempo antes?
Guerra: O Adão foi meu aluno. Ele tinha 16, acho, e fez uma oficina comigo. E passou a fazer fanzines, eu achava muito bom o trabalho dele. A gente fez uma revista juntos em 1990, chamada Dum Dum. Deu um escândalo em Porto Alegre, quase fomos presos. Disseram que era uma revista pornográfica feita com o dinheiro da prefeitura. Foi um negócio que nos juntou muito. Foi meio natural fazer o filme do Rocky & Hudson. Era para ter sido três episódios, mas acabou o dinheiro.
UHQ: Tem uns 60 e poucos minutos, né?
Guerra: Tem 63. Na época, isso já era um longa-metragem; hoje tem que ter 70. Agora eu fiz uma série de Rocky & Hudson, que é maior que o filme. São 13 episódios de sete minutos. Muito melhor, também. O Matheus Nachtergaele faz o Rocky e o Paulo Tiefenthaler faz o Hudson. Estamos terminando para o Canal Brasil.
UHQ: Depois você fez o Wood & Stock — Sexo, Orégano e Rock'n'Roll. O Angeli tem uma infinidade de personagens, alguns muito famosos como a Rê Bordosa, o Bob Cuspe. Por que você escolheu Wood & Stock?
Guerra: Na real, eu estava enfrentando problemas de ter que vender os filmes. Queria usar um personagem infantil do Angeli, um gurizinho do mal (Ozzy). Estava na casa dele e ele: "Pô, faz com Wood & Stock, cara". Ele que sugeriu. Angeli não queria que tivesse a Rê Bordosa, ela tava morta. Mas eu disse: "Pô, fazer um filme teu sem a Rê Bordosa é como fazer um filme do King Kong sem o macaco" (risos). Foi contra à vontade dele, mesmo.
UHQ: E você tem vontade de adaptar algum outro quadrinho? Tirando o Glauco, que morreu, com os outros três amigos — Laerte, Angeli e Adão — você fechou um ciclo, né?
Guerra: Não, não tenho, cara. Não tenho mais ídolos, em relação a novos autores. Perdi a ingenuidade nisso, também. Estou fazendo um livro, uma autoficção chamada Nem Doeu, que vou adaptar. Já está em projeto para adaptação para um roteiro. E demora tanto tempo pra fazer cada filme que acho que esse é o último, né (risos)?