Confins do Universo 203 - Literatura e(m) Quadrinhos
OUÇA
Matérias

A primeira coluna a gente nunca esquece

1 dezembro 2001

Há uns dois meses encontrei o (Sérgio) Codespoti em uma cabine da Fox/Warner, no Cine Unibanco, e ele comentou que estava voltando a se envolver com um site de informação e entretenimento, basicamente de quadrinhos, na companhia do Sidney (Gusman). Nós já havíamos trabalhado juntos na AREA-51 e eventualmente colaborado em outras editoras, como na Fractal e na TEQ, que são, tecnicamente, a mesma empresa.

Nesse dia, ele me perguntou se poderia contar comigo para alguma coisa, uma entrevista, uma coluna ou alguma matéria para o conteúdo desse site novo. Cordialmente, eu disse "sim". Mal desconfiava quais planos maquiavélicos habitavam sua mente.

E vou lhes dizer uma coisa: nunca tente parecer mais inteligente ou mais esperto do que você realmente é, porque um dia sua máscara vai cair.

No começo de janeiro, quando voltei de minhas curtas férias de final de ano, minha máscara... caiu. Meu grande e vasto sócio, o Maurício Muniz, me deu a boa nova. O tal site do Codespoti e do Sidão era o Universo HQ, do Samir! E ainda tinha o Naranjo no meio da jogada. É legal ver gente do bem trabalhando junto, e dentre esses quatro cavalheiros não há nenhum que eu tenha motivos para desgostar.

Então, o Codes me ligou para cobrar "aquela coluna, lembra?". Tudo bem, Sérgio, eu faço. "Promessa é dívida", disse eu, tentando alcançar minha máscara embaixo da mesa. O problema todo é que ele gostou mesmo de uns textos que eu fiz para a AREA-51, analisando superficialmente um monte de obras, roteiristas e desenhistas de quadrinhos claramente influenciados por outras mídias, por artistas plásticos e escritores modernistas.

Talvez eu tenha deixado transparecer a idéia de saber demais sobre essas coisas. Na verdade, quando faço textos desse tipo, tento alcançar dois públicos: 1) Todo o pessoal que gosta de um bom filme, de uma boa série de TV, de um livro legal, mas que não sabe o que está perdendo enquanto ainda acha que histórias em quadrinhos são só aqueles caras musculosos com superpoderes absurdamente chatos e; 2) Todo a galera que cresceu lendo quadrinhos e que até hoje só lê quadrinhos, mas deveria estar dando uma boa olhada em outras coisas, como uma boa exposição de gravuras em metal ou lendo um livro do John Fante.

Naquele texto da AREA-51, eu queria apenas apontar alguns meios de o leitor sair um pouco do convencional. Poxa, eu me interessei por James Joyce quando li Skreemer (uma minissérie de Peter Milligan, Brett Ewins e Steve Dillon, publicada no Brasil, pela Editora Abril, no começo dos anos 90) e, depois de ler Joyce, fui ver quem mais da época dele era bom, e descobri Marcel Proust, Hemingway, T. S. Elliott, Gertrude Stein, Virginia Woolf... e descobri que a maioria desse pessoal, durante os anos 20, morou em Paris. E vendo isso, soube que também vários outros artistas, e não só escritores, moraram lá na mesma época, como Picasso, Matisse, Strawinski e outros menos famosos como Ford Madox Ford, Ezra Pound ou o "homem mais safado do mundo", o demonologista Aleister Crowley... e descobri o que eram as experiências literárias de Mallarmé, Lewis Carroll (porque Joyce se baseava neles) e da evolução do estilo do "fluxo de consciência", com William Faulkner (que se baseava em Joyce).

A partir disso, é mais fácil trafegar entre o antigo, com Thoman Mann, Ibsen, Kafka e o novo, com Hunter Thompson, Grant Morrison, Alan Moore, David Lynch, Daniel Clowes, Nick Hornby. Também faz muito bem conhecer pessoas de outras áreas, freqüentar outras rodas.

Não seja um nerd enjoado, que fica a maior parte de suas horas na frente de um computador. Tomar cerveja com os amigos é um exercício cultural muito respeitável. Não seja escravo da sua namorada, do seu celular ou do ICQ. Acredite: é possível viver sem esses elementos (mas um de cada vez; nenhum ser humano consegue viver sem os três ao mesmo tempo).

Vá ao teatro, veja filmes iranianos (nem que seja pra meter o pau depois), dê uma olhada na agenda cultural do jornal da sua cidade. Você não imagina o que se pode aprender em uma tarde dentro de um museu de arte contemporânea. Ah! E por falar em arte contemporânea, não tenha preconceitos de nenhuma espécie quanto ao trabalho dos outros. Procure, antes de tudo, entender como aquele borrão de tinta na tela apareceu. E se for, realmente, apenas um borrão te tinta, aí sim, pode falar que é uma porcaria.

Há muito mais por trás de um trabalho além do que se vê à primeira vista. Imagine os últimos trabalhos de Mondrian, que são apenas retas e quadrados com cores primárias ("Ei! Isso eu também posso fazer!"). Você não imagina o grau de abstração e (pasme!) matemática usado na evolução daquelas telas durante décadas. Por isso, saiba que, na maioria das vezes, o artista não é um ser de uma obra só. Seu trabalho evolui a cada pincelada, a cada palavra escrita.

Os trabalhos de Wassily Kandinsky são explicados com total propriedade em seu livro Ponto e linha sobre plano. Ou seja, há uma teoria por trás do que parecem ser apenas traços e pontos. E quem foi Kandinsky? Foi um grande artista plástico e designer. E foi professor da Bauhaus. E o que foi a Bauhaus? Era uma banda gótica, não? Bauhaus era uma escola alemã ultravanguadista, nos anos 20... e assim vai.

Nem de longe quero que vocês pensem que sou um intelectual bunda-mole que tem como fetiche extremo achar que seu dever social é mostrar aos "menos afortunados culturalmente" um mundo maravilhoso de conhecimento e frivolidade. Nem de longe, mesmo! Principalmente a parte do "bunda-mole"!

A maioria das coisas que eu descobri e li (ou vi) foram meramente pela força da curiosidade, e não têm nada a ver com academicismo (que sou radicalmente contra). Por isso, sempre corro o risco de cometer deslizes imperdoáveis. Sou apenas alguém que foi procurar o que me dava prazer de ler, ver, conhecer... e encontrei.

Então, o que vou tentar fazer aqui não é nada mais do que dizer que, muito provavelmente, há algo muuuuito legal que você ainda não conhece. E se, por acaso, eu conhecer, vou te avisar que isso existe e dar minha opinião. E vamos ver no que dá. Vou tentar falar aqui de coisas que não são muito conhecidas, quadrinhos mais alternativos e menos chatos, obras que se inter-relacionam com outras mídias, internet, literatura, artes plásticas, música.

Ao mesmo tempo, estarei aberto para receber sugestões, críticas, perguntas e notícias dos leitores. E, se você souber de alguma coisa que eu não saiba, me avise também.

Até brinquei com o Codespoti de que esta seria a coluna menos lida do site. Bem, espero que sim, porque aí saberei que só quem realmente se interessa por curtir coisas diferentes é que está aqui.

E espero que estejam sempre!

Até a próxima coluna!

EraserheadP.S.: Pra terminar, já que estamos em fase de apresentações, cabem aqui uma pequena explicação. A idéia do nome da minha coluna foi do Codespoti, em 1999. Ele propôs esse nome para uma coluna semanal, que nunca foi ao ar na AREA-51. Eraserhead é um filme obscuro de David Lynch (tão obscuro que o Codespoti é o único cara que eu conheço que assistiu), que ele acha que tem tudo a ver comigo.

Ricardo Giassetti é diretor/editor da Pandora Books, mas garante que não vai transformar este espaço em um outdoor dos títulos que eles publicam ("apesar de serem os melhores", garante). Ele foi crítico de quadrinhos de vários jornais e revistas durante algum tempo, e, apesar da pouca idade, com certeza, tem muita experiência no assunto, como comprova sua "calvície galopante".

 

Já são mais de 570 leitores e ouvintes que apoiam o Universo HQ! Entre neste time!
APOIAR AGORA