Confins do Universo 203 - Literatura e(m) Quadrinhos
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De Autoria e Hitchcock

22 dezembro 2001

Estive pensando na entrevista que li com David Lapham (Balas Perdidas, editado no Brasil pela Via Lettera.

É uma entrevista antiga, de 1997, que não deveria fazer mais sentido hoje em dia, como todas as outras coisas que já têm 4 anos de idade no mundo da informação excessivamente veloz.

Mas faz.

Little Nemo in SlumberlandVamos tentar reconstituir tudo desde o começo: no início do século passado, havia esse artista, Winsor MacCay, que escrevia, desenhava e finalizava uma tira chamada Little Nemo in Slumberland. Ele provavelmente não sabia, mas o que fazia era quadrinho de autor.

Então, surgiu esse outro cartunista tempos depois, Will Eisner, que fazia e continua a fazer a mesma coisa que MacCay e, de alguma forma, sabia o que fazia, tanto que escreveu livros (Comics and Sequential Art; Graphic Storytelling) sobre as teorias que desenvolveu na prática.

Mas isso não é importante. O que importa é saber que, como alguns cineastas, o autor de quadrinhos é obcecado com a idéia de controle, ou seja, ele deve ser apto a realizar todas as etapas da produção de uma história em quadrinhos para ter o domínio completo sobre o resultado final. Assim, além de Eisner e MacCay, temos Crumb, Miller, Lapham e outros menos conhecidos, mas não menos competentes, como Clowes, Tomine e Wheeler, que fazem desde o roteiro até arte-final e letreiramento.

Segundo o bom e velho Dicionário Escolar da Língua Portuguesa esses caras são autores (causa principal de; inventor etc.), uma vez que fazem de tudo na confecção de suas obras.

Eu citei cineastas? É, citei.

Alfred HitchcockHitchcock era um desses autores que queriam controle total sobre o resultado final. O que ele poderia fazer pra conseguir isso, uma vez que, geralmente, os diretores tinham poucas possibilidades de acompanhar todas as etapas da criação?

O roteiro, para começar, era de outra pessoa. Digamos, de um roteirista competente e da confiança do diretor. Alfred, é provável, não lidava também com câmeras, o que ficava a cargo dos cameramen, óbvio que sob sua direção. Música, fotografia etc. também estavam sob responsabilidade de outras pessoas. Como ele fazia, por Deus, para obter registros cinematográficos tão similares e identificáveis como os pertencentes à sua obra?

Um bocado óbvio, admito: imagino o velho Hitch sugerindo tramas para seus roteiristas, ângulos de câmera para os cameramen e assim por diante. Mas, acima de tudo, Hitchcock desenvolveu um método que quase o tornava dispensável durante as filmagens: o storyboard quadro-a-quadro. Indo um pouco mais longe, ele conseguiu impor, particularmente em Psicose, que o espectador não entrasse depois do início da exibição do filme, para não estragar o suspense com o desenrolar da história. Os resultados? A imortalização do "Mestre do Suspense", e me abstenho de maiores comentários. Certo, só um: quando foi a última vez que você assistiu a um filme no cinema e observou a platéia se apavorando tanto, a ponto de tentar avisar os personagens do perigo que espreitava logo à frente?

Pois é...

Mas este texto deveria ser sobre quadrinho de autor e não sobre cinema; e a idéia inicial era esclarecer e não confundir.

Voltando a David Lapham e sua entrevista... o que ele disse lá que julguei importante transpor pra cá é o seguinte: é possível produzir quadrinho de autor sem que o autor participe de tudo. Ok, Hitchcock não é quadrinhista, mas Alan Moore é; e exerce o mesmo tipo de controle que Hitch exercia em seus filmes.

Do Inferno #3O que me habilita a afirmar isso? Anos atrás, tive a oportunidade de adquirir um volume que trazia os roteiros de alguns dos capítulos de From Hell (Do Inferno, no Brasil, também da Via Lettera), mas isto ainda não era o suficiente, apesar de ler páginas inteiras ocupadas para descrever um único painel, sem contar os diálogos. Não. Só me convenci mesmo quando uma grande amiga minha resgatou de um desses limbos secretos da Internet um documento escrito por Moore. Trata-se de uma proposta para um crossover, um tipo de série de histórias que reunia um número assombroso de super-heróis e que foi moda na década de 1980 (agora é "carne de vaca"), escrita para a apreciação dos editores da DC Comics, pouco antes de acontecer todo o problema com os direitos autorais de Watchmen.

Nesse documento, Moore sugere até estratégias de marketing e possíveis produtos para merchandising. E era só uma proposta com as linhas gerais da história e os personagens envolvidos. O título? Twilight of the superheroes.

Alan MooreAgora, observe a similaridade entre o que Hitchcock fazia e o que Moore faz: Hitch utilizava storyboards quadro-a-quadro, Moore (um desenhista frustrado) também faz algo semelhante, além dos sketches detalhados para histórias mais simples (ver Violador, Editora Abril), costuma, geralmente, utilizar um processo que talvez tenha sido criado por outra pessoa, mas que levou às raias do absurdo detalhístico, o full-script.

Full-script, como o próprio nome sugere, é o roteiro em que se descreve para o desenhista tudo o que ele precisa saber, inclusive ângulos e planos. No caso de Moore, vão estar relacionados na descrição de um painel até os "grãos de poeira bailando num raio de sol" (Garry Leach, falando dos roteiros de Moore em entrevista publicada em Kimota, the Miracleman Companion). Este método dá a possibilidade ao escritor de quadrinhos de controle absoluto sobre os resultados.

Exemplos? Qualquer trabalho sério de Moore, especificamente From Hell, as obras de Warren Ellis, Grant Morrison e seus pares. Vários escritores de quadrinhos adotam o full-script para ajudar a manter a integridade de seus trabalhos, o que garante resultados geralmente superiores aos obtidos por quem opta pelo Marvel Way (não sei se existe um termo específico para isso em português), que consiste de pelo menos duas etapas de escrita. Na primeira, o roteirista descreve para o desenhista quantas páginas cada ação deve ocupar; terminado o trabalho do desenhista, o material retorna para o roteirista que vai, então, escrever os recordatórios e diálogos da história.

Certo, isso também já não é mais quadrinho de autor, é indústria de montagem. Talvez devêssemos atribuir a coisas assim a baixa qualidade das HQs que entopem as bancas e que todo mundo consome.

Abs Moraes, sonha, como Little Nemo, com o dia em que a maioria dos quadrinhos erá autoral.

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