Confins do Universo 203 - Literatura e(m) Quadrinhos
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História censurada pela DC está disponível na Internet

1 dezembro 2001

Helblazer  - ShootChega a ser revoltante o fato de que os atentados às torres gêmeas do WTC, em Nova York, e à sede do Pentágono, em Washington, ocorridos em 11 de setembro, tenham abalado tanto a indústria cultural norte-americana, a ponto de filmes serem cancelados e CDs serem recolhidos das lojas (por, coincidentemente, mostrarem imagens de catástrofes na capa). Esse impacto também pode ser sentido em uma das artes que mais sofre com censura, os quadrinhos.

Diversos títulos vêm sendo cancelados, como, por exemplo, The Brotherhood, protagonizado por um grupo de terroristas mutantes. Para isso, a Marvel utilizou o pretexto de baixas vendas, mas o fato era que a revista ocupa o 38º lugar no ranking das mais vendidas em setembro.

Mas essa não é a primeira vez - e nem a mais grave - que esse tipo de coisa acontece. Algumas vezes, histórias espetaculares deixam de ser publicadas por pura hipocrisia. Um caso clássico é o de Shoot, nº141 da revista Hellblazer, escrita por Warren Ellis (de Authority, Transmetropolitan), com desenhos de Phil Jimenez (de Os Invisíveis) e arte-final de Andy Lanning.

A edição estava sob processo de aprovação pela diretoria da DC e da Vertigo, quando aconteceu o massacre no colégio Columbine, em Littleton, nos Estados Unidos. Para não "mexer na ferida", pediram ao escritor que mudasse os rumos da história. Indignado, Ellis ofereceu à editora duas opções: que eles mesmos fizessem as alterações e retirassem seu nome do trabalho, ou que simplesmente não o publicassem. "Melhor o material ficar inédito do que ser lançado de maneira comprometida", declarou o autor, na época. A DC não publicou a revista, e o escritor decidiu abandonar o título. Hellblazer nº141 foi publicada alguns meses depois, com outra história.

Página de ShootFelizmente, um certo dia, um abençoado jornalista se viu com a revista original em mãos, e decidiu colocar todas as 22 páginas, até então inéditas, na Internet. O site chegou a sair do ar, sob pressão da própria DC, mas não a tempo de evitar que muita gente fizesse o download. Em uma semana, dezenas de sites estavam disponibilizando a revista. Hoje, ela pode ser encontrada em uma infinidade de páginas. Um deles é o Hellblazer Brasil, que possui a versão integral - e traduzida - da história.

Claustrofóbica, densa e desconcertante, Shoot aborda justamente os tiroteios em escolas norte-americanas, e os porquês de eles acontecerem. Conta a empreitada de uma psicóloga, a quem é outorgada a função de descobrir as causas dos crescentes massacres juvenis nos colégios americanos, a pedido do Senado.

Sem conseguir dormir e cada vez mais aterrorizada com as fitas de vídeo gravadas nos locais dos massacres, ela descobre um elo de ligação entre todos eles: um inglês mal encarado com um sobretudo e um cigarro sempre aceso está presente em todas as cenas do crime. Adivinhe quem é!

Apesar de todos os seus esforços para encontrar Constantine - aliás, vale ressaltar, trata-se aqui do "bom e velho" Constantine, bem mais assustador do que vinha sendo retratado ultimamente -, é ele quem a surpreende em seu escritório. Daí pra frente é pura adrenalina e as últimas seis páginas da revista são capazes de deixar qualquer um com o coração na mão.

A narrativa de Warren Ellis, mais lenta no começo, ganha um ritmo alucinante, e o desenho de Jimenez segue impecavelmente esse ritmo (seus traços são favorecidos pelo fato de arte estar em preto-e-branco).

Quando perguntado sobre a decisão da DC de não publicar a história, Ellis foi bem cético: "É uma mensagem que, certamente, ninguém na mídia de massa quer ouvir: não existem culpados. São apenas duas crianças que estavam no porão de sua casa fazendo bombas. E a verdadeira raiz do problema é que ninguém vai entender porque coisas como Columbine acontecem - e continuarão a acontecer -, até que as pessoas comecem a conversar com as crianças. E ninguém... ninguém fez isso, você sabia?"

E o escritor vai mais longe. "Apenas apelar para religião não é a solução. Sabe, eu respeito que você chore pelo menino morto, mas martirizar e santificá-lo não é a resposta. Agora, conversar com os amigos dele e descobrir que porra está acontecendo naquela cultura, e porque pessoas estão sendo baleadas... Shoot era sobre isso, que é justamente o que ninguém queria ouvir", enfatizou.

O desfecho da história de Ellis é perturbador e desconcertante, como um balde de água fria bem jogado. Não existe nenhum bicho-papão em casos como o de Columbine. Quando acontecem atrocidades como esta, a primeira reação é tentar identificar os culpados. Mas a quem devemos culpar? Os videogames, o cinema, as músicas, a televisão, os quadrinhos? Não há nenhum monstro, nem ninguém pra quem apontar o dedo, a não ser aquele que encaramos no espelho. E é aqui que a arte apenas cumpre o seu papel, o de mostrar, de trazer à tona. Cabe às pessoas reconhecê-la.

Quadrinhos como este são a razão pela qual deve-se respeitar - e celebrar - a nona arte. Shoot prova a capacidade que as HQs ainda possuem de nos forçar a olhar o mundo em nossa volta, de perceber coisas que normalmente ignoramos e, finalmente, questioná-las. Resta lamentar o fato de que a cúpula da DC/Vertigo tenha lido a história e, ao que parece, não tenha entendido. Ou fez que não entendeu.

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