Confins do Universo 234 - Histórias de Editor(a) # 8: Maria José Pereira, a senhora banda desenhada
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As Cobras, de Luis Fernando Veríssimo
Matérias

O encantador de serpentes

Luís Fernando Verissimo, mestre da crônica, marcou também escrevendo e desenhando quadrinhos, como As Cobras e Ed Mort

2 setembro 2025

“Minha relação com a morte é esquecer que ela existe. E espero que ela faça o mesmo comigo”, escreveu Luís Fernando Verissimo, escritor gaúcho e um mestre da crônica brasileira, que morreu no último dia 30 de agosto. Os obituários na imprensa e os posts nas redes sociais lembraram sua perícia na escrita e como a leveza dos seus textos abordaram tanto os problemas públicos do país quanto as nossas comédias da vida privada. E não esqueceram um aspecto da sua arte que fez parte importante de sua história: os quadrinhos.

Verissimo assinou duas tiras diárias em jornais: As Cobras, escrita e desenhada por ele, e Ed Mort, com texto dele e desenhos de Miguel Paiva. Também escreveu a página de quadrinhos de O Analista de Bagé, que saía mensalmente na revista Playboy, com ilustração de Edgar Vasques, e os cartuns da Família Brasil, também com traços dele.

Com As Cobras, ele acompanhou de perto os principais acontecimentos da vida nacional entre o fim dos anos 1970 e a década de 1990. Os personagens comentaram a abertura política, inflação, a volta à democracia, eleições, corrupção. Mas também o comportamento do brasileiro: futebol, televisão, verão. Refletiam sobre a vida e sua finitude, Deus e outras questões existenciais.

Ele disse várias vezes que a escolha de cobras como estrelas de uma tira eram fruto de suas limitações como desenhista. “Cobra é fácil de desenhar. Só tem pescoço”, explicava. Mas seu traço simples trazia junto uma mise-en-scène excelente, uma percepção aguçada do que mostrar, do que não mostrar, de como seria o quadro que terminaria a piada.

“As cobras e seu meio existiam só em função da piada, o desenho em si nunca foi importante. Quanto mais simples melhor”, contou Veríssimo, em entrevista a este jornalista, em 2010. “Se você gostava da construção das narrativas só posso agradecer, mas não era intencional”.

Os ofídios também recebiam convidados ocasionais que representavam um aspecto do Brasil. Nos anos 1970, havia o Mac, um bicho enorme de carapaça que esmagava as cobras. Vieram também Queromeu, o corrupião corrupto; Dudu, o alarmista; o candidato Alves Cruz; Durex, o adesista; Sulamita, a pulga lasciva; Zé do Cinto, que precisava viver sempre apertado; e por aí vai.

“Eu gostava das cobras recém-nascidas, que saíam da casca para descobrir o Brasil e o mundo”, apontou Verissimo, na entrevista. “Muitas nasciam precavidas, como a que já saiu do ovo com um habeas-corpus preventivo”.

A ditadura levou Verissimo a recorrer ao desenho como uma alternativa. “Quando se podia dizer mais com desenho do que com textos”, comentou. “Sempre gostei muito de quadrinhos e quando passei a ter um espaço no jornal para fazer, teoricamente, o que quisesse nele, aproveitei. E muitas vezes, quando faltava tempo ou saco para o texto, ou havia o risco da censura implicar com o texto, eu me socorria no desenho”.

Dentre muitas sequências antológicas, como a dos Clássicos combinados, em que duas obras da literatura ganhavam misturas insólitas, Verissimo dizia que não tinha preferências: “Alguns dos clássicos combinados, como Casablanca e senzala, funcionam, outros não. Gosto das cobras diante do infinito. Uma dizendo ‘Como nós somos insignificantes diante do Universo’ e a outra perguntando ‘Vocês quem?’, por exemplo”.

As Cobras durou até os anos 1990. “Parei, como eu disse na época, porque estava fazendo coisas demais. E também porque não ficava bem um homem de 60 anos ficar desenhando cobrinhas”, explicou.

Não foi por falta de assunto: os personagens da tira teriam muita coisa para contar. “O corrupião corrupto, claro, está atualíssimo”, afirmou Veríssimo, uma verdade em 2010 e também em 2025. “Dudu, o alarmista, também. E Durex, o adesista, é um personagem eterno, que atravessa a história, desde os tempos bíblicos”. Pode reparar: todos eles estão por aí, o que garante plenamente a atualidade e o ótimo humor de As Cobras.

A relação de Luís Fernando Verissimo com os quadrinhos, como leitor, começou desde cedo. “Lia o Gibi e o Globo Juvenil, como todo o mundo e gostava muito dos super-heróis e de alguns norte-americanos como o Krazy Kat”, lembrou.

E apontou também o que lia naquele momento. “Gosto muito dos brasileiros: Laerte, o Angeli, os irmãos Caruso, o Edgar Vasques, o Santiago, o Moa, o Adão. É muita gente boa. E também há gênios como o Moebius, de quem vi uma exposição fantástica há pouco tempo, em Paris”.

As Cobras ganhou uma edição generosa em 2010, pela Objetiva, As Cobras - Antologia Definitiva e já havia tido coletâneas pela Milha (formato horizontal, 1975), Codecri (horizontal, 1979), L&PM (As Cobras & Outros Bichos Inclusive o Homem, 1977, e As Cobras em Se Deus Existe, que Eu Seja Atingido por um Raio, 1997) e Salamandra (três volumes horizontais em 1987).

Ed Mort, que trazia histórias seriadas, foi compilada pela L&PM nos álbuns Procurando o Silva (1985), Disneyworld Blues (1987), Com a Mão no Milhão (1988), Conexão Nazista (1989) e O Sequestro do Zagueiro Central (1990).

De seu trabalho com Edgar Vasques, há O Analista de Bagé em Quadrinhos (L&PM, 1983) e As Melhores do Analista de Bagé (Objetiva, 2007).

E Aventuras da Família Brasil teve compilações pela L&PM (1985 e 1993) e pela Objetiva (2005).

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