Os fãs dos bons quadrinhos estão em festa na Europa. O motivo: o iugoslavo Enki Bilal, um dos mais cultuados artistas do ramo está de volta, após cinco anos, com o álbum 32 Dicembre (32 de Dezembro), a segunda parte de uma trilogia que começou em 1998, com O Sono do Monstro (lançado no Brasil pela Meribérica), seu último trabalho.

Um dado que atesta o distanciamento cada vez maior desse mestre da arte seqüencial é que, antes de O Sono do Monstro, ele já havia ficado longe dos quadrinhos por seis anos,dedicando-se a outras atividades, como produtor de cinema (Bunker Palace Hotel, Tykho Moon) e idealização de cenografia para óperas (Roméo et Juliett, O.P.A. Mia).

Em 32 Dicembre, já lançado em quase toda a Europa, a história começa em 2027, um ano após os fatos narrados no primeiro álbum. A história gira em torno do personagem Nike Hatzfeld, um especialista em "investigação memorial", que consegue se lembrar das sensações que experimentou desde os seus primeiros dias de vida. Ele é um órfão de guerra que recebeu esse nome das enfermeiras de um hospital porque seu pai, um combatente abatido, calçava um tênis americano dessa marca quando morreu. O sobrenome veio do repórter francês que o encontrou junto ao cadáver.

Devido ao seu dom especial, Nike, que já havia trabalhado para o Banco Central de Memória do Mundo, em Nova York, passa a ser objeto de estudo dos cientistas e um alvo potencial da Obscurantis Order, uma temível seita religiosa cujo objetivo é erradicar a reflexão, a ciência, a cultura e a memória do planeta.

A trama, que se passa em Sarajevo, a capital da Iugoslávia, daria um ótimo filme de ficção científica, pois apresenta um futuro apocalíptico, pessoas em busca de suas identidades e da felicidade, muita violência, conflitos étnicos, clonagem, seitas religiosas, animais vivos sendo miniaturizados e uma arma mortífera: moscas desenvolvidas em laboratório, que são parte eletrônicas, parte orgânicas, e invadem (ou melhor, furam) os corpos dos humanos para plantar larvas na coluna vertebral, a fim de se reproduzirem.

A diferença para o primeiro tomo é que Bilal fala mais de amor e trabalha melhor a relação de amizade entre Nike e os outros dois personagens principais da série, Amyr e Leila, ambos também órfãos da guerra.

Destaque para a arte, feita em "cor direta", que consiste em desenhar as páginas diretamente com tinta acrílica. Em 32 Dicembre, no entanto, a novidade é que Bilal mescla os tons "frios" (cinza, ocre, azul claro) do primeiro álbum com outros mais vivos (verde brilhante, vermelho).

A arte imita a vida? - Se é verdade ou mito a história de grandes artistas anteverem coisas que aconteceriam anos depois, não se sabe. Mas em O Sono do Monstro, de 1998, Bilal descreveu a destruição de dois ícones da cultura ocidental, o Chrysler Building, nos Estados Unidos, e a Torre Eiffel, em Paris, por raios laser enviados da nave espacial Hubble 4, comandada por uma seita ecumênica.

Os leitores mais atentos notarão que Nike é um anagrama de Enki, primeiro nome de Bilal. Será esta a visão do autor sobre as décadas que estão por vir? Do jeito que ele é fascinado por futuros caóticos, não duvide.