Flavio Moraes fala ao Universo HQ sobre O Astronauta
O Astronauta ou Livre Associação de um Homem no Espaço, HQ escrita por Lourenço Mutarelli, com arte de Fernando Saiki e Olavo Costa sobre imagens produzidas pelo fotógrafo profissional Flavio Moraes, acaba de ser lançada pela Zarabatana Books.
A obra fala de uma viagem ao espaço de maneira experimental, para a qual é necessária uma roupa de astronauta e muita imaginação.
Confira abaixo a entrevista que Flavio Moraes concedeu ao Universo HQ e conheça um pouco dos bastidores da criação de O Astronauta.
Universo HQ - O que aconteceu primeiro: você entrou em contato com o texto do Mutarelli ou foi uma consequência do seu trabalho de TCC que resultou em um projeto de HQ?
Flavio Moraes: Eu tinha uma vontade grande de produzir
uma HQ, mas, no entanto, não desenhava nada. Aí veio a vontade de montar uma
HQ apenas com fotos, mas a ideia de fotonovela simplesmente não me agradava.
Nunca gostei de fotonovelas, não sei exatamente o porquê. Então, comecei a
tentar desenvolver ideias e técnicas que afastassem a fotografia do realismo,
primeiro porque eu sempre achei que a coisa verossímil da fotografia não ajudava
nem um pouco no momento de criar um personagem numa HQ, ou criar um momento,
uma intenção, uma sequência; na verdade, ela só atrapalhava.
Sei que parece um pouco confuso, mas é como o movimento pictorialista. Os picturalistas tentavam aproximar a fotografia das outras artes, como a pintura ou a gravura, com a intenção de dar um status de arte à fotografia. Portanto, se cortava negativos, inventava mil técnicas diferentes de ampliação e exposição, você teoricamente criava uma foto "diferenciada", mais próxima da arte da pintura, por exemplo.
Eu só queria transformar minha fotografia em algo mais gráfico, algo que me ajudasse na hora de contar histórias. Eu e o Fernando Saiki fizemos duas HQs enquanto eu estava na faculdade, um primeiro pré-projeto que era apenas utilizando filtros de Photoshop. Algo bem tosco, se comparado com o que conseguimos em O Astronauta. Levamos um amigo até o Centro de São Paulo, caracterizado de mendigo, e em apenas algumas horas fotografamos nossa primeira HQ teste.
Essa história em quadrinhos eu levei para o Lourenço ver; quero dizer,
deixei uma na mão dele depois de alguma palestra que ele deu na Fiesp.
Se ele iria olhar, eu não tinha ideia. Depois de um tempo, liguei para ele
e o ouvi dizer que tinha gostado. Então, eu disse que estava fazendo uma próxima,
que seria meu TCC. Perguntei se ele queria me dar uma ajuda na pesquisa e
tal...
Na segunda HQ, já tínhamos o processo mais bem desenvolvido, eu já tinha bastante trabalho de pesquisa sobre o uso de fotografia em ilustração etc. Ilustramos um conto do jornalista Minas Kuyumjian Neto, chamado Coisas, improvisamos tudo no meu apartamento e no do Fernando Saiki (o ator principal foi ele, nesse caso).
Bom, em resumo, o processo foi longo. Na pesquisa, quem ajudou "horrores" foi o Gualberto Costa. Eu ia à casa dele e a gente ficava fuçando em sua biblioteca. Digo que ele me orientou bem mais do que meu orientador da faculdade, apesar deste ter sido ótimo. E o Lourenço foi vendo os desenhos, palpitando na técnica e, com isso, a gente foi ficando mais próximo, nos tornamos amigos. E a HQ foi apresentada com meu TCC.
Depois, veio O Astronauta. Eu já tinha alguma liberdade com o Lourenço, mas, mesmo assim, em quase todas as entrevistas ou palestras que ele dava, dizia que nunca iria escrever algo em quadrinhos para outra pessoa ilustrar. Mas o máximo que ele poderia dizer era não. Então, cheguei num dia e perguntei se ele faria esse texto para gente ilustrar. Ele não apenas disse sim, mas também que se precisasse ser o ator, faria isso numa boa.
UHQ - Conte um pouco sobre a trama da HQ.
Moraes: A história é um enigma, um cara comum chega em seu apartamento, coloca um uniforme de astronauta e, literalmente, entra em órbita entre a sala e a cozinha.
UHQ - O fato de fotografar o Mutarelli em seu próprio apartamento, "vestido" de astronauta, facilitou o desenvolvimento da história ou vocês tinham em mente alguma outra forma de contá-la?
Moraes: O storyboard já estava totalmente pronto, quando
o Lourenço nos deu o texto, que não era um roteiro, era apenas um texto.
Eu e o Saiki roteirizamos e montamos o storyboard. A gente se reunia, ia discutindo
os enquadramentos, os acontecimentos, enfim, o andar de tudo. O Saiki ia desenhando
e eu palpitando.
Quando chegamos para fotografar, era apenas adequar o storyboard ao que
era possível de se clicar na hora quando tinha fumaça. A gente colocava uma
maquina de fumaça dentro no apartamento, para ficar literal nas fotos, até
que (tivemos que) avisar ao porteiro: "Não tem incêndio, não, OK? É apenas
uma HQ sendo produzida". São pouquíssimas coisas introduzidas digitalmente
na HQ, 99% foi ensaiado, interpretado e fotografado. Pode parecer arrogante
ou exagerado, mas na criação de O Astronauta, entrou um pouco de tudo: desenho,
fotografia, teatro, cinema; é um mix de tudo isso que resulta numa HQ.
UHQ - O que você achou mais difícil no processo todo:
as sessões de fotografia ou o trabalho de transpô-las em desenhos?
Moraes: Foram cinco anos de nanquim e três dias de fotografia. Tudo foi difícil, montar o storyboard foi um carma, fotografar; teve a produção, também, coisas que inserimos e retiramos do apartamento do Lourenço. Mas nada se compara ao nanquim. O bico de pena é complicado, simplesmente não andava. Imagine um quadro que tem 4 x 7 cm na HQ; o original é quase um A4 impresso, sem preto algum.
A entrada do Olavo Costa foi fundamental para a gente conseguir dar continuidade
ao projeto. O Saiki, além de esgotado, não dava conta. Era muito trabalho.
Com a entrada do Olavo, foi uma injeção de sangue novo. Mais um desenhista
para ajudar e principalmente um cara chegando novo, animado e dando gás ao
projeto. O Olavo entrou nessa há mais de dois anos. O Saiki sonhava com hachuras,
a gente comentava que era trabalho daqueles chineses confinados em fábricas
de exploração.
UHQ - O que você achou do resultado?
Moraes: Quando peguei na mão um exemplar de M, ilustrado pelo John J. Muth e baseado no filme do Fritz Lang, aquilo me deu um "start". Eu sempre quis, a partir daquele momento, fazer quadrinhos de alguma maneira. Acho que nós quatro gostamos muito de O Astronauta. Foi extremamente trabalhoso, muitas vezes considerado até um processo praticamente utópico por nós mesmos, mas estamos muito felizes com o resultado.
UHQ - Tem em mente algum próximo projeto envolvendo histórias em quadrinhos?
Moraes: Temos, sim. Eu, Saiki e o Olavo temos vontade de continuar esse projeto como uma série, requisitando outros autores para escrever. Até andei convidando alguns e tive boas recepções, mas agora, com O Astronauta impresso, acho que fica um pouco mais fácil. Temos um projeto de uma exposição com os originais de O Astronauta, que com certeza vai acontecer logo. Temos também outro projeto de HQ, mas esse ainda está em fogo baixo.