O desafio de Watchmen no cinema
A
cultura pop dos já distantes anos 1980 foi marcada por algumas produções
que ainda repercutem nestes primeiros anos do século 21. Na telona, Blade
Runner (1982), de Ridley Scott, ainda é um marco estético. Amplamente
imitado em filmes, clipes e HQs, é o longa-metragem que combinou traços
do cinema noir e uma visão futurística e decadente dos centros
urbanos, uma distopia.
Em 1989, o filme Batman, de Tim Burton, combinou influências da
ficção-científica de Ridley Scott e de duas obras do vigilante de Gotham
City: A Piada Mortal, escrita por Alan Moore e desenhada por Brian
Bolland, e O Cavaleiro das Trevas, com texto e arte de Frank Miller.
No mundo dos quadrinhos da década de 1980, Frank Miller ainda fez história
com sua versão do Demolidor; e Alan Moore escreveu a minissérie que se
tornou o paradigma das HQs de super-heróis adultas: Watchmen.
E por quadrinho adulto de super-herói entenda-se as obras marcadas pela
preocupação de retratar os combatentes do crime fantasiados pela lente
do realismo. Ou seja, recriar personagens em um universo ficcional mais
próximo da realidade humana de um dado momento histórico.
É verdade que desde os anos 1960, Stan Lee já havia imprimido aos heróis
da Marvel características que combinavam vícios e virtudes bastante
humanos. Alan Moore, porém, inovou por ressaltar aspectos políticos que
envolveriam, necessariamente, a existência e atuação de super-heróis.
Se um vigilante mascarado faz justiça com as próprias mãos, qual deveria
ser o comportamento do Estado?
O debate ético em Watchmen conduz o leitor a respostas que até
então uma publicação de uma grande editora, como a DC Comics, não
havia se permitido ainda.
No mundo criado por Moore, os heróis servem necessariamente (ou mesmo
inconscientemente) a interesses políticos que nem sempre obedecem aos
ideais da justiça e solidariedade.
Se nas décadas de 1930 e 1940, o mundo vivia tempos quase ingênuos, nos
quais os conflitos eram mais simples e se sabia quem era o mal e quem
representava o bem, os anos que se seguiram ao fim da Segunda Guerra Mundial,
formaram uma "área cinzenta" em que lutam heróis que, muitas vezes, não
têm certeza da justiça de seus atos.
Para encenar este conflito, Alan Moore criou dois personagens diametralmente
opostos: Comediante e Dr. Manhattan.
O Comediante representa a consciência de que os anos dourados dos super-heróis
haviam ficado para trás. Com o advento da fusão nuclear, ele, como se
fosse um Hitman empregado na luta contra o comunismo e seus simpatizantes,
é partidário de uma visão mais cínica e pragmática da luta pela preservação
do american way of life.
O confronto aberto entre Estados Unidos e União Soviética levaria à guerra
termonuclear e à conseqüente extinção da espécie humana. O que faz com
que o Comediante esteja em campos de batalha como os do Vietnã e se envolva
com a morte do presidente John Fitzgerald Kennedy.
Já o Dr. Manhattan é o personagem alegórico da série. É o único dotado
de superpoderes e, como um deus, tem a capacidade de manipular a matéria
e alterar as leis da física. Como soldado fiel aos EUA, ele é a arma perfeita
contra as pretensões expansionistas soviéticas.
Por outro lado, como cientista, seus poderes levam-no a descobertas científicas
que colocam o seu país na dianteira da corrida armamentista. Graças ao
Dr. Manhattan, o mundo ocidental tem acesso a avanços tecnológicos que,
pela sua repercussão, ganham contornos simbólicos acerca da transformação
dos valores ocorridos nos anos psicodélicos das décadas de 1960 e 1970.
Além do aspecto político, que por si só já marcaria a minissérie, Alan
Moore, sempre na busca de uma visão mais realista, explora também a repercussão
desses eventos sobre os personagens.
A motivação de cada um deles não se limita à busca de justiça ou vingança.
A série desconstrói a estética dos super-heróis ao imaginar para esses
personagens personalidades mais complexas e, por isso mesmo, mais humanas.
Grande parte do choque e sucesso de Watchmen decorre das taras,
fraquezas, vícios, ilusões e limitações que caracterizam não só os personagens
citados, mas outros como Ozymandias e Rorschach.
Por exemplo: o machismo e a misoginia estão presentes nos dramas da Espectral,
uma mulher condenada pela aparencia fisica que a torna ,muitas vezes,
mero objeto de desejo.
Os desenhos de Dave Gibbons prestam uma irônica homenagem à clássica estética
dos quadrinhos norte-americanos de super-heróis, a forma aparentemente
ingênua é parte de um discurso ácido sobre a natureza humana: poderes,
sejam frutos de determinação ou de dádivas fantásticas, potencializam
características do caráter dos personagens.
O grande desafio, o que explica a ansiedade que acompanha as notícias
sobre as diversas tentativas de adaptar esta obra para o cinema nos últimos
20 anos, é justamente encontrar um ponto de equilíbrio narrativo para
os debates éticos e morais que permeiam a obra de Moore e Gibbons.
E, quanta ironia, justamente por causa da política, os fãs de Watchmen
se livraram de ver Arnold Schwarzenegger na telona como Dr. Manhattan.
Comente este artigo no Blog
do Universo HQ.
Fã confesso de Watchmen, Fernando Viti andou um tempo sumido do Universo HQ. Só esperamos que ele não passe a perambular por São Paulo de sobretudo, chapéu e uma máscara cheia de manchas estranhas...