Salve os quadrinhos nacionais!
Apenas 20% dos livros vendidos no Brasil são de autores do País. É o que
aponta um artigo do escritor Ataíde Lemos, publicado na semana passada
no portal Centro
de Mídia Independente.
O que surpreende nos motivos apontados pelo autor para esse número tão
constrangedor é o fato de eles serem praticamente os mesmos que
fazem da produção de quadrinhos brasileiros uma piada nos sentidos profissional
e mercadológico.
Se na literatura brasileira há os escritores que bancam editorial e financeiramente
suas obras e muitos deles não ganham nada além de ver seus livros citados
em resenhas críticas (quando muito), nos quadrinhos o amadorismo e o diletantismo
são algumas das principais pragas que levam a HQ nacional a um estado
de letargia em que vale muito mais um punhado de fãs (ou bajuladores)
do que a busca pela melhoria da qualidade dos trabalhos.
Então, vamos eleger os "culpados", levando-se em conta que as palavras
a seguir não são bem uma exposição de culpa, apenas uma reflexão sobre
a contribuição de quadrinhistas, leitores, editoras e sites especializados
para esse problema do mercado nacional de HQs.
Começando pelos quadrinhistas: quem não quer produzir com dedicação, estudo
e, principalmente, autocrítica, não tem o direito de reclamar da falta
de espaço e apoio, muito menos pode "chorar" pela dificuldade de ganhar
dinheiro com isso - se é que há muitos autores preocupados em transformar
a coisa em profissão.
O que se vê é muito, muito trabalho ruim, daqueles que nunca encontrarão
uma editora disposta a publicar ao menos um exemplar. Bastava ao autor
um pouco da autocrítica - ou aceitar os erros que outros apontam, sem
responder com o velho chavão "Esse cara é contra os quadrinhos nacionais"
-, para apresentar aos leitores (e a uma eventual publicadora) um material
minimamente aceitável e vendável.
Hoje, há produções de quadrinhos nacionais como nunca houve em outros
tempos. A diferença é que a imensa (e bote imensa nisso) maioria é material
independente que quase não chega às bancas e, via de regra, é mal escrito
- inclusive no sentido gramatical da expressão -, tem desenhos ruins e
é pouco divulgado, com raras exceções.
Mas é no meio disso tudo que aparecem trabalhos excelentes, obras que
merecem aplausos e destaque, pois é inegável que o Brasil foi e continua
sendo um celeiro de grandes artistas do traço.
Também é aí que entra o leitor, em sua maioria tão preconceituoso que
não quer ou não consegue separar o joio do trigo. "É nacional? Então não
presta", dizem muitos.
O complexo de vira-lata do brasileiro, já apagado em tantos segmentos,
parece cada vez mais forte na área dos quadrinhos. "Qualquer porcaria
produzida lá fora ainda é melhor do que as boas produções daqui", escrevem
alguns pela internet afora.
Não é verdade.
Às vezes me pergunto: Mike Deodato seria tão conhecido por aqui e considerado
"o cara" se não estivesse trabalhando para editoras dos Estados Unidos?
O que ele fizesse para o mercado brasileiro seria inferior ao que atualmente
faz para lá?
E se Crise
Final e similares, duramente criticados, fossem produções brasileiras
que mudassem apenas os personagens? Seriam piores do que são, simplesmente
por não serem criadas nos Estados Unidos?
Quanto às editoras de quadrinhos, parafraseando o que Ataíde Lemos disse
sobre as publicadoras de livros, elas buscam lucro e não são entidades
caça-talentos, lançando apenas produtos que tragam a certeza de um bom
retorno financeiro.
É preciso conviver com isso. A despeito de como trabalham muitos quadrinhistas
nacionais, as editoras são empresas que pensam profissionalmente.
Mas, dentre algumas soluções - nas quais pode ser incluída a simples procura
por um bom material; afinal, há apostas em HQs estrangeiras desconhecidas
por aqui que acabam se tornando bem-sucedidas comercialmente -, as editoras
poderiam manter ou se associar a um estúdio para produzir seu próprio
material, como o saudoso Estúdio Disney da Editora Abril.
Nesse aspecto, em vez de receber e na mesma hora refutar um trabalho já
pronto, que por algum motivo não agradou, a editora poderia fazer o seu
papel de editar, acompanhando todo o processo criativo. No fim, poderia
até mesmo pensar em exportar suas produções.
A meu ver, qualquer fracassada tentativa anterior de fazer algo do tipo
(como a Abril Comics, no final da década passada) não serve agora
como motivo para engavetar novos projetos. É impressionante o que um pouco
de coragem pode trazer de positivo a qualquer empreendimento.
Na seara da internet, acho válidos os sites e blogs especializados
em quadrinhos brasileiros, em sua maioria dedicados apenas aos lançamentos
independentes - a maioria do coletivo 4º Mundo, que vem ganhando
espaço e destaque justamente por ser organizado, mesmo que nem todas as
publicações com seu selo sejam um primor de qualidade.
Esses sites e blogs são algumas das ferramentas pelas quais
muitas HQs ganham uma divulgação mais ampla, algo que sem a grande rede
seria praticamente impossível.
Só que, infelizmente, percebo um radicalismo que não leva a nada.
Primeiro, há uma tendência, em alguns desses sites, a levantar incômodas
bandeiras xenófobas (contradizentes com a própria insistência de várias
HQs, divulgadas ali, em emular super-heróis gringos). Depois, o exagero
em enaltecer qualidades muitas vezes inexistentes, apenas por serem quadrinhos
nacionais - tapinha nas costas e palavras bonitas são bons; mas, de vez
em quando, apontar equívocos é o melhor incentivo para ajudar alguém a
crescer em qualquer área da vida.
Considero um tiro no pé essa segmentação. Ora, se já é difícil divulgar
essas HQs e diminuir o preconceito contra elas, qual o sentido de afastar
os visitantes com assuntos restritos e ataques (explícitos ou não) endereçados
a leitores que só curtem quadrinhos norte-americanos?
Garanto que eu mesmo visitaria com mais frequência esses sites se encontrasse
neles informações não apenas de materiais brasileiros, mas também sobre
lançamentos de HQs europeias, japonesas, norte-americanas... enfim, de
quadrinhos, sejam eles de que nacionalidade forem. Bastava que fossem
bons.
Alguém pode argumentar que tem o direito de montar uma página na internet
sobre o estilo de quadrinhos que preferir. Isso é óbvio e, repito, é uma
bem-vinda forma de divulgação. Mas, dada a situação atípica da produção
nacional, caberia um pouquinho de flexibilidade para atrair mais visitantes
que, por exemplo, em busca de informações sobre um mangá recém-lançado,
conheceria - e se interessaria - por uma determinada revista em quadrinhos
nacional da qual nunca tomara conhecimento.
É claro que omiti ou me esqueci de expor e analisar muitos aspectos sobre
o mercado de quadrinhos brasileiros e os elementos que o compõem, mesmo
porque nunca foi minha intenção redigir uma tese acerca de um tema que
envolve tantos "se", "talvez", "não é bem assim", "você está errado" e
"eu estou certo".
Afinal, vale lembrar, faz quase 30 anos que as HQs mais vendidas no Brasil
são brasileiras - as revistas da Turma da Mônica. Mas tem espaço
para muito mais autores e suas criações no mercado.
Espero apenas que tomem forma debates nos quais pipoquem soluções e iniciativas
que tragam ao título deste meu artigo um significado muito além do trocadilho
suscitado por ele.
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do Universo HQ.
Marcus Ramone defende qualquer HQ nacional de boa qualidade, assim como faz cara feia para qualquer revista em quadrinhos estrangeira ruim.