Não culpe Rob Liefeld
Algumas semanas atrás, durante a WizardWorld Chicago, um leitor
chamado Ryan Coons ganhou destaque ao dirigir a palavra ao polêmico desenhista
Rob Liefeld durante uma sessão de autógrafos. Na ocasião, Coons proclamou:
"Sou um grande fã do Capitão América e exijo desculpas por Heróis Renascem".
Em seguida, Ryan comprou um exemplar do famoso livro How to Draw Comics
in the Marvel Way, de Stan Lee e John Buscema, fez uma dedicatória
e deixou sobre a mesa em que estava Liefeld antes de se retirar.
A partir daí, com um vídeo no YouTube e a repercussão em diversos
blogs sobre quadrinhos, Coon foi aplaudido e reverenciado por muitos
outros leitores que compartilhavam do desprezo por Liefeld ou simplesmente
gostaram de ver a rotina da convenção abalada pelo ocorrido.
Coons se colocou como porta-voz de uma campanha anti-Liefeld que não é
recente. Trata-se de algo que existe desde meados da década de 1990, quando
o autor passou rapidamente de jovem e promissor expoente de uma nova safra
de desenhistas a representante máximo da decadência dos super-heróis.
É quase um clichê, uma piada interna que circulou incessantemente em revistas
especializadas, sites, blogs e agora aparece de novo na voz de
Ryan Coons.
A atitude do fã não deixa de ser compreensível, já que é normal eleger
um "culpado" para algo que geralmente envolve a responsabilidade de muitos
outros. No caso do projeto Heróis Renascem, da Marvel, na
época Liefeld já era alvo de inúmeras críticas, que iam além do aspecto
artístico e envolviam sua conduta como sócio fundador da Image Comics,
com direito a ataques pessoais de seus ex-colegas na sua saída da editora.
Enquanto isso, Jim Lee, o outro sócio da Image contratado pela
Marvel para desenvolver Heróis Renascem, era o astro do
momento. E esse é o lado curioso da história.
Embora haja uma clara diferença na qualidade dos desenhos de Lee e Liefeld
- ninguém questiona isso -, ambos são representantes da mesma tendência
no modo de fazer super-heróis e, junto com outros tantos outros artistas,
consolidaram as práticas que muitos fãs criticam tão ferrenhamente atualmente.
Lembre-se de tudo que foi moda nos anos 90 e hoje é apontado como o caminho
para a decadência das editoras na época. A exploração especulativa das
revistas, as capas duplas e variantes para uma mesma edição, a avalanche
de produtos derivados (cards colecionáveis, pôsteres, brinquedos),
tudo sempre deixando as histórias em segundo plano.
Curiosamente, o pronunciamento de Ryan Coons foi feito em uma das principais
convenções de quadrinhos dos Estados Unidos; e esses eventos se tornaram
o expoente máximo dessa expansão da indústria de HQs por lá.
As convenções norte-americanas há muito tempo são eventos comerciais,
para licenciantes de produtos preocupados em fechar negócios e apresentar
em grande estilo suas adaptações de personagens para cinema, animação,
videogames etc.
O pouco espaço dedicado a se falar de quadrinhos é ocupado pelos painéis
de lançamentos, cada vez mais compostos por megaeventos entre os títulos
mensais.
Olhando hoje, fica fácil entender como tudo isso fazia parte de um momento
terrível para a Marvel. Foi nesse mesmo período que a empresa entrou
em processo de falência, para ser totalmente reformulada alguns anos depois.
E da mesma forma que Heróis Renascem (e também A Saga do Clone,
do Homem-Aranha) é considerado um símbolo dessa queda, as histórias do
selo Marvel Knights (como a fase de Kevin Smith no Demolidor) e
o começo da linha Ultimate representam esse ressurgimento da "Casa
das Ideias" com um novo padrão estético.
Dessa forma, a falência da Marvel seria, para muitos, a prova de
que a "Era Image" foi o inferno astral dos quadrinhos.
Mas, vale lembrar, foi na Marvel que os fundadores da Image
plantaram a semente da estética que foi levada ao extremo pela editora,
e que tornou a concorrência difícil para a "Casa das Ideias".
Portanto, o ditado espanhol "Cria cuervos y te sacarán los ojos" seria
mais do que apropriado à Marvel.
O problema dos quadrinhos de super-heróis daquela época foi a saturação
e o desgaste de ideias. Todas as revistas pareciam iguais, com o mesmo
estilo de desenho, e nos roteiros era impossível que, com tantos títulos
dos mesmos personagens exigidos pelo mercado, todos fossem bons.
Não há nada no estilo de desenho de Lee ou Liefeld (na prática, são a
mesma escola) que fosse ruim por si só, o problema é que tudo na época
se parecia com aquilo, fosse uma história do Quarteto Fantástico ou do
Motoqueiro-Fantasma.
Muitas vezes, o estilo de desenho não era adequado à imagem do personagem
ou ao conteúdo do enredo.
Isso, claro, quando as falhas não eram próprias de um desenhista específico.
Como era o caso de Rob Liefeld.
Mas Liefeld não foi o primeiro nem será o último desenhista ruim da história,
talvez nem mesmo o pior deles. Eles estão aí até hoje, em um número que
parece crescer por um motivo diferente daquela época.
Antes, era o excesso de títulos, agora é a dificuldade dos artistas de
"primeira linha" cumprirem os prazos de trabalho que abre espaço para
esses desenhistas sem qualificação.
Tanto que o retorno de Liefeld às revistas da DC e da Marvel
recentemente não representou absolutamente nada, a não ser para alguém
como Ryan Coons.
Isso porque as revistas desenhadas por Liefeld atualmente não se parecem
com tudo que é feito com super-heróis. Dentre os títulos preferidos dos
leitores, nem existe mais aquela semelhança de estilo. Pelo contrário,
hoje, aparentemente, se aprecia mais a diversidade do que naquela época.
Sem dúvida, é injusto culpar Liefeld por Heróis Renascem. Afinal,
quadrinhos são uma indústria apoiada em uma arte coletiva, que envolve
diversas pessoas, de artistas a editores, alguns com talento e outros
sem - nas duas áreas.
Mas e quanto ao que a obra de Liefeld realmente representa?
Talvez nisso a DC leve uma vantagem em relação à Marvel.
Com quase o dobro de tempo de atividade que a "Casa das Ideias", a editora
de Batman e Superman já aprendeu a conviver com altos e baixos e mudanças
de paradigma no estilo de se fazer quadrinhos.
Com todo esse tempo de publicação, é impossível que os personagens da
DC não passem por transformações (vindas do próprio contexto cultural)
e que os leitores de hoje se interessem pelas mesmas histórias que os
dos anos 50 a ponto de sustentar as vendas.
A memória dos quadrinhos de super-heróis é seletiva.
Apenas o que agrada aos leitores de hoje é resgatado das histórias do
passado. Vez ou outra aparece algum Geoff Johns ou Grant Morrison que
remexe o baú do porão e traz uns itens diferentes para a decoração da
sala de visitas.
Mesmo assim, nunca haverá espaço para tudo que foi produzido nessa indústria
cultural, cujo inventário cresce a cada mês.
A Marvel por outro, lado, se orgulhava de nunca de ter descartado
nada da sua cronologia ("Nunca precisamos de uma Crise", diziam),
que era toda formada de marcos da história dos quadrinhos. Cada criação
da editora, dos anos 60 a 80, foi uma pequena revolução, uma renovação
positiva dos super-heróis, digna de ser lembrada.
Isso mudou nos anos 90, marcados pelo excesso de títulos dos X-Men e o
estilo de desenho que (para pequeno alívio da Marvel) ficou conhecido
como "Era Image".
O melhor, para a Marvel, os leitores e o pobre Rob Liefeld seria
seguir o exemplo da DC e deixar que as revistas daquela época sejam
assimiladas por essa memória seletiva.
Não faz sentido se lamentar hoje pela qualidade de revistas de 15 anos
atrás ou pelos seus responsáveis, sendo que elas exercem pouco ou nenhum
impacto no mercado atualmente.
Afinal, não é novidade que a indústria de quadrinhos vive do seu próprio
passado, mas somente da parte que lhe interessa. O que não nos serve deve
ser descartado sem remorso, sabendo que, se as gerações futuras de leitores
optarem pelo contrário, tudo estará no porão da nossa memória.
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do Universo HQ.
Diego Figueira e Zé Oliboni, antes de escreverem este artigo, tentaram contar quantos dentes havia na boca dos personagens desenhados por Rob Liefeld. Desistiram....