A saga de um sobrevivente, um vencedor
A série Gen Pés Descalços, de Keiji Nakazawa, lançada no Brasil pela Conrad Editora, é uma obra-prima dos quadrinhos, que mostra, com muita dor e sofrimento, as terríveis conseqüências trazidas pela guerra
Nos últimos tempos, os mangás (quadrinhos japoneses) vêm ganhando força no mercado editorial brasileiro. Se na década passada pudemos contar nos dedos os lançamentos dessa poderosa indústria por aqui (Lobo Solitário; Akira; Mai, a Garota Psíquica; Crying Freeman; Ranma ½), o século 21 começa a “todo vapor”, com a publicação das revistas Cavaleiros do Zodíaco (mensal) e Dragon Ball Z (quinzenal) e, futuramente, o fenômeno de merchandising Pokémon, todos pela Conrad Editora, que teve a perspicácia de aproveitar o sucesso das três séries nos desenhos animados, para atrair um número enorme de leitores potenciais.
No entanto, não são apenas os mangás “comerciais” que a Conrad está trazendo ao Brasil. Em 1999, a editora lançou o primeiro livro de Gen Pés Descalços, escrito e desenhado por Keiji Nakazawa, uma verdadeira obra-prima da arte seqüencial. Até o momento, já foram lançados três álbuns e o quarto, que conclui a série, deve ser publicado ainda no primeiro semestre de 2001.
Trata-se de um trabalho autobiográfico, que mostra a dura história de vida do garoto Gen (lê-se Güen), o alterego do autor, desde os dias que precederam a destruição de sua cidade natal, Hiroshima, pela bomba atômica, durante a segunda guerra mundial.
O pai do personagem principal, não concordava com o conflito e, por isso, sua família sofreu retaliações de todos os tipos. Seus filhos foram surrados, molestados e tachados como covardes, os alimentos que plantavam foram destruídos e ele próprio foi preso, por “traição ao imperador”.
O traço simples e, na maioria das vezes, engraçado de Nakazawa contrasta com a seriedade dos temas abordados. Logo no primeiro livro, Uma história de Hiroshima, desde as crises familiares, que, invariavelmente, terminavam em surras de seu pai, até a catástrofe que se abate sobre eles quando a bomba é lançada; tudo comove o leitor, de tal forma, que é impossível não pensar como agiríamos se acontecesse algo semelhante conosco, principalmente, por sabermos que tudo ocorreu de verdade! Não é ficção!
O autor não mascara ou “sugere” os fatos ocorridos. Não! Ele escancara a realidade que viveu, de forma nua e crua. Assim, expõe assuntos como fome, dor, suicídio, humilhação, violência, racismo e morte, da maneira como ele viu acontecer.
A saga continua em O dia seguinte, segundo álbum da série, um relato dramático do cenário pós-bomba atômica. Corpos espalhados por todos os lados; pessoas literalmente “derretendo” ou se despedaçando, por causa da radiação; cadáveres sendo incinerados em pilhas, para evitar a proliferação de doenças; gente gravemente ferida sendo sacrificada ou devorada viva por larvas e moscas; entre outras agruras. Como se tudo isso não bastasse, há a derrota “moral” dos sobreviventes.
No terceiro livro da série, chamado A vida após a bomba, as coisas continuam piorando para o garoto Gen. É num cenário apocalíptico que ele tenta reconstruir a vida do que restou de sua família (a mãe e uma irmã recém-nascida), saindo do zero e dependendo de favores. Com a roupa do corpo, recorrem a amigos num vilarejo vizinho, para terem um teto e algo para comer, mas, acontecia com os outros sobreviventes, também são hostilizados e vítimas de preconceitos.
Gen Pés Descalços é considerado um clássico dos quadrinhos japoneses. Ganhou versões para cinema, desenho animado e até mesmo uma ópera. Em 1976, um grupo de jovens (japoneses e estrangeiros) que moravam em Tóquio, criou um projeto para traduzir a obra de Kenji Nakazawa para outros idiomas, para que pessoas de vários países pudessem conhecer esse trabalho. O resultado: a história já foi publicada em mais de 10 países, vendendo cinco milhões de exemplares em todo o mundo e sendo, inclusive, indicada para ser lida nas escolas norte-americanas.
Entre a legião de fãs de Gen, está Robert Crumb. “É uma das melhores histórias em quadrinhos já realizadas. Nakazawa, com certeza, será considerado um dos maiores quadrinhistas deste século”, disse o “papa” das HQs underground americanas.
Quem compactua dessa opinião é o não menos fantástico Art Spiegelman, autor de Maus. Para ele, “Gen é uma dessas raras histórias em quadrinhos que realmente conseguem realizar a mágica: traços em papel que adquirem vida”.
As edições nacionais da Conrad estão muito bem produzidas. Papel de qualidade, acabamento de primeira e boa impressão. O único escorregão – e grave, por sinal – ocorre no primeiro livro, onde todas as vezes que apareceu a palavra “tigela”, ela estava grafada com “j”! Um erro crasso de português, corrigido nas edições seguintes! Também ficou estranha a mudança da fonte utilizada nos balões, no terceiro álbum, mas esse detalhe é basicamente estético.
Nakazawa transferiu toda a sua vivência para os quadrinhos. O incrível é que, apesar de seu sofrimento, ele transmite uma mensagem sem rancores. A sua intenção é apenas alertar a humanidade sobre os horrores que uma guerra pode trazer. Por isso, para definir Gen, com absoluta precisão, basta acrescentar o sufixo “ial” ao seu título! Assim: GENIAL!
Sidney Gusman é editor-chefe do Universo HQ e jornalista especializado em quadrinhos. No dia em que leu o primeiro livro de Gen, havia sido assaltado, pela primeira vez na vida, aos 34 anos (um recorde, numa cidade violenta como São Paulo). Ao chegar à última página, constatou que o seu drama, acontecido algumas horas antes, era absolutamente insignificante…