Neil Gaiman, um contador de histórias
Como esse ex-jornalista se tornou um dos mais bem-sucedidos escritores de ficção das últimas décadas, em diversas mídias
Histórias têm poder. Histórias podem transformar o mundo, fazer rir e chorar, inspirando também mudanças interiores em cada pessoa.
Desde os primórdios da civilização, as histórias vêm funcionando como forma de explicar os fenômenos da realidade que nos cerca e força-motriz para suscitar revoluções particulares e universais.
Não há limites para o valor e a abrangência de uma boa história, que pode surgir nas mais variadas formas e gêneros – além do talento de seus narradores.
O homem cresceu com suas histórias de amor e matrimônio, com os relatos heroicos que o ligaram ao poder divino e até mesmo contos de horror e mistério, que lidam com essa emoção humana tão básica.
Mais uma vez: histórias têm poder. E também são dotados de habilidades superiores aqueles que as criam e as fazem circular pelo mundo, semeando ideais vigorosas e transformadoras.
Nas últimas décadas, poucos profissionais da arte de contar histórias, em diversas mídias, se destacaram tanto quanto o inglês Neil Gaiman. Jornalista por formação e astro consagrado na indústria dos quadrinhos, da literatura e agora também do cinema, ele já contou todo tipo de história e prossegue neste caminho inspirado por musas superiores, atraindo um verdadeiro culto e colecionando prêmios.
Curiosamente, Gaiman disse ter abandonado a profissão de jornalista para se dedicar à ficção, numa escolha entre poder fazer as pessoas tristes ou felizes. E, para alegria do mundo, parece que ele escolheu com sabedoria.
Sem dúvida, o trabalho mais contundente de Gaiman, aquele que conquistou legiões de fãs e melhor sintetiza sua obra como um todo, é a série em quadrinhos Sandman, estrelada pelo Rei dos Sonhos e que lidou de forma inaudita com devaneios, aspirações e fraquezas do homem. Uma verdadeira obra de arte, que merece ser lida e relida sem parcimônia.
O Rei dos Sonhos e o Mestre dos Mitos
Sandman começou a ser publicado pela DC Comics em 1989, contando com o texto de um ainda pouco conhecido Neil Gaiman e ilustrações de Sam Kieth, capas pintadas por Dave McKean e um redirecionamento ousado para o antigo nome da editora.
O autor aproveitou o título de um super-herói clássico da Era de Ouro, mas criou todo um novo universo do nada. Sandman narra a história de Lorde Morpheus e de sua família única, os Perpétuos. Eles são seres mais antigos que os próprios deuses, representações antropomórficas de aspectos da humanidade: Sonho (o próprio Sandman), Morte (sua simpática irmã mais velha), Desejo, Delírio, Destruição, Destino e Desespero.
De início, Sandman se apresentou como uma saga de horror e fantasia, bem inserida no universo ficcional da DC, mas logo enveredou por recônditos pouco explorados da imaginação.
Na posição de Rei dos Sonhos, de guardião de todo conto ou narrativa já pensada ao longo de toda a eternidade, Morpheus permitiu uma verdadeira jornada ao reino da ficção. Sandman, assim, pode ser entendida como uma grandiosa aventura sobre o poder das histórias, com uma família disfuncional cujos integrantes definem o universo e tudo aquilo que nos torna essencialmente humanos.
Ao longo de 75 edições da série mensal, mais o especial A Canção de Orpheus e alguns projetos distintos, Gaiman elevou o padrão dos quadrinhos a níveis poucas vezes dimensionados, numa narrativa que transcende gêneros e definições.
As páginas de Sandman podiam ilustrar personagens de qualquer época, tramas de romance ou mesmo uma insuspeita convenção de assassinos seriais.
A viagem começou mostrando Lorde Morpheus capturado por um grupo de ocultistas, e todos os problemas resultantes de seu cativeiro ao redor do globo. Gaiman pesquisou vastamente sobre distúrbios e significados dos sonhos, imprimindo assim verossimilhança e apuro técnico ao trabalho.
Por outro lado, nada podia superar seu papel de imaginauta, homem das ideias e narrador soberano. Após conquistar a liberdade e impor seu castigo aos mortais que ousaram fazê-lo prisioneiro, Morpheus cruzou o caminho do bruxo John Constantine, dos heróis da Liga da Justiça, do vilão Dr. Destino e se viu obrigado a visitar até as profundezas do inferno, que Gaiman entende tanto como um estado de consciência quanto como uma existência física assustadora.
Mas foi depois do arco inicial de histórias, na oitava edição de Sandman, que Gaiman afirma ter encontrado o tom da série, e presenteou o mundo com a mais adorável das personagens coadjuvantes.
O som de suas asas, história publicada originalmente em agosto de 1989, significou uma guinada criativa para o universo de Sandman, constituiu um dos pontos altos da carreira de Gaiman e, na opinião do roteirista e editor Paul Levitz, marcou também o momento de transição de história ficcional para mitologia.
O que torna esta edição tão especial é a introdução da irmã mais velha de Morpheus, a adorável Morte. E o trunfo do escritor foi imaginar o grande medo da humanidade como a figura que ele adoraria encontrar no fim da vida: uma linda jovem, de pele branca e visual gótico, mas sempre alegre e disposta.
É a Morte que ajuda Morpheus a superar o estado de depressão e apatia que assolava sua existência após a vitória sobre seus oponentes e a reconquista do Reino do Sonhar, quando ele se enxergava sem um propósito maior. A partir de então, as histórias de Sandman tornaram-se cada vez mais ricas e complexas, carregadas de lirismo e poesia, medo e glória, triunfo e tragédia.
Investindo nos temas do poder da imaginação e da inspiração divina dos grandes mestres da humanidade, Gaiman tratou da relação entre Lorde Morpheus e o poeta William Shakespeare, que figurou em duas das mais aclamadas edições de Sandman.
O título revisitou Sonho de uma noite de Verão e A Tempestade, duas grandes obras de Shakespeare, e o reconhecimento não tardou. A edição de número 19, ilustrada com propriedade por Charles Vess, foi a primeira revista em quadrinhos a levar o mais importante prêmio de literatura dedicado a obras fantásticas, o World Fantasy Award.
E não parou por aí.
Sandman lidava com noções de psicologia, mitos das mais diversas civilizações e, como não poderia deixar de ser, sua mitologia própria de crescimento inegável.
Mas toda história precisa ter um fim, e a obra máxima de Neil Gaiman foi encerrada no número 75, após uma viagem alucinada pelo reinado da fantasia e da imaginação, com personagens memoráveis e situações imprevisíveis.
Hoje, a saga completa está disponível em luxuosas edições de capa dura, que são reimpressas constantemente (no Brasil, inclusive) e conquistam cada vez mais admiradores. Sonhar nunca foi tão bom.
Senhor de todas as mídias
Neil Gaiman já escreveu livros de referência sobre cinema e literatura de ficção científica, músicas, peças de teatro, romances fantásticos e literatura infanto-juvenil, além de um seriado televisivo de grande repercussão e roteiros para cinema.
As histórias curtas em prosa literária do autor podem ser encontradas em coletâneas diversas, em vários gêneros e dialogando com os mestres que o inspiraram, universos mágicos e propostas inusitadas.
O criador do Rei dos Sonhos se revelou um mestre da arte de imaginar e narrar histórias, campeão de todas as mídias e fonte inesgotável de ideias. O romance Belas Maldições, sua parceria com Terry Pratchett, lançado em 1990, brinca com os temores do Apocalipse bíblico com muito bom humor e surpresas diversas, tais como uma dupla de amigos anjo e demônio e um Anticristo garoto esperto e simpático.
Numa linha mais densa e provocativa, o romance Deuses Americanos lidou com divindades ancestrais e suas herdeiras modernas na América contemporânea, e figurou por meses na lista de mais vendidos do The New York Times.
Na mesma pegada, veio Os Filhos de Anansi; e direcionando seus esforços para crianças pequenas Gaiman escreveu Os lobos dentro das paredes, O Alfabeto perigoso e Cabelo doido.
A colaboração com o ilustrador Dave McKean, responsável pelas belas capas de Sandman, alcançou um nível diferente em 2005, com o filme Máscara da Ilusão. Roteiro de Gaiman com direção de McKean e visual alucinadamente surreal. Um prato cheio para todos os entusiastas da magia.
Aliás, desde a publicação da graphic novel Violent Cases, a parceria só rende bons frutos. Gaiman também assinou enredos para os seriados televisivos Babylon 5 e Doctor Who, com a destreza habitual.
Duas obras de Gaiman adaptadas para o cinema foram o romance ilustrado Stardust – O mistério da Estrela, que contou com os talentos de Claire Dane e Robert De Niro, e Coraline, animação moderna e inteligente inspirada num livro para o público jovem.
Em ambos os casos, produções competentes sobre temas fantásticos e boa dinâmica de personagens, que abriram as portas de um público mais amplo e diverso para o universo do autor.
Além disso, foi da autoria de Gaiman o roteiro de A Lenda de Bewoulf, adaptação com captura de movimentos na qual estrelou Angelina Jolie, na reinvenção de um das mais célebres narrativas heroicas já imaginadas.
Mas Gaiman nunca abandonou totalmente o mundo dos quadrinhos, tendo escrito, na última década, uma aventura final de Batman e reinvenções dos Eternos e de todo o Universo Marvel num passado distante, em 1602. Independentemente do gênero e da mídia em que trabalhe, ele é um contador de histórias como poucos.
E o futuro ainda reserva boas surpresas para seus seguidores. Destaque para o regresso ao mundo do Senhor dos Sonhos, a partir da minissérie Sandman – Overture, desenhada por J.H. William III. Para Gaiman, o potencial das histórias em quadrinhos em dimensionar novos universos não conhece limites.
E ele também torna a enveredar pela literatura adulta e infanto-juvenil, coescrevendo, com Michael Reavers e Mallory Reavers, The Silver Dream. Com influências literárias que vão de C.S Lewis e Lewis Carrol a Alan Moore e Harlan Ellison, o inglês já mesclou Sherlock Holmes com Lovecraft, interagiu com a Matrix e presenteou o mundo com novos universos fantásticos, tanto quanto se diverte em ambientes já conhecidos.
Por isso, que este gênio moderno continue a inspirar seu público por muito tempo com suas histórias criativas e pujantes, no eterno ciclo de sono e despertar em que tudo é possível e no qual vale a pena viver e sonhar.
Marcus Vinicius de Medeiros tem o sonho de, um dia, visitar a Biblioteca do Sonhar.