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Quadrinhos "Adultos", censura e outros bichos do mercado

1 agosto 2001

Afinal de contas, o que determina que um quadrinho seja rotulado como "adulto"? Como esta questão é encarada na Europa e no Japão? Por que tanto marketing em cima das "linhas para leitores maduros"

 

Comics Code AuthorityAs notícias mais recentes sobre o mercado americano, com freqüência, citam o termo "quadrinhos para adulto" (ou "for mature readers", como eles dizem), seja para divulgar uma nova série de revistas para este "tipo" de leitores, ou para criticar o arcaico Comics Code.

Exemplos recentes disto são as notícias sobre a criação de uma linha adulta de quadrinhos da Wildstorm e da Marvel (como noticiamos em 03/03/01 e em 17/05/01), além de todo aquele falatório sobre a briga da "Casa das Idéias" com o Comic Code.

Esta discussão sobre quadrinhos adultos chegou a ser abordada durante um recente debate promovido pela Fábrica de Quadrinhos, no MIS - Museu da Imagem do Som, em São Paulo. Mas o que realmente significa tudo isso?

Para colocarmos tudo dentro duma perspectiva mais global, vamos, primeiramente, analisar (de maneira rápida e sucinta) outros mercados, como o europeu, o japonês e o brasileiro.

Os europeus sempre tiveram uma produção de quadrinhos de muita qualidade, abordando os mais diversos temas, mas sem rótulos. Nos álbuns originais de Tintin, Asterix, Lucky Luke, Bionda (a heroína de Saudelli especialista em amarrar as suas vítimas, numa espécie de dominação sadomasoquista light), Ranxerox (o futurista e ultra violento andróide de Liberatore, lançado aqui pela VHD Diffusion, na coleção Animal), o Click (a série erótica de Manara, que também saiu no Brasil, pela Martins Fontes, L&PM e Meribérica), Druuna (a ficção pornô de Serpieri, publicada na Heavy Metal brasileira), Corto Maltese (de Hugo Pratt, lançado no Brasil pela Meribérica e L&PM), Valentina (publicada aqui pela L&PM), você não encontra nenhuma classificação etária, com chamadas do tipo "indicado para crianças" ou "para leitores adultos".

Os europeus, além de tratar quadrinhos com o merecido respeito artístico, dando liberdade temática aos seus criadores, oferecem ao leitor a possibilidade de decidir, apenas com o seu bom senso, o que deve ou não ser lido.

O mercado japonês é bem diferente, existem publicações para todos o segmentos, mas sem muita classificação etária. Além disso, a cultura deles possui uma visão sobre a sexualidade muito diferente da ocidental, o que permite a existência de brincadeiras, piadas e outras referências sexuais ou anatômicas em revistas infanto-juvenis.

Lá existem diversas publicações de quadrinhos, abordado temas violentos ou de sexo explícito, mas com qualidade. Muito diferente de roteiros e desenhos de algumas produções "fuleiras" que encontramos nas bancas brasileiras.

No mercado brasileiro, o que ocorre é um tipo de censura em alguns títulos. Temos a adesão das revistas destinadas às bancas de jornal a um sistema de classificação, ainda que informal, similar ao americano. Títulos infanto-juvenis de super-heróis são adaptados e/ou mutilados, para esconder ou minimizar temas como sexo e drogas. Estes problemas ocorreram muitas vezes no passado, vide os famosos episódios da Editora Abril, na revista Superaventuras Marvel, quando, na saga A Queda de Murdock, do Demolidor (escrita por Frank Miller e desenhada por David Mazzuchelli), trocaram o desenho de uma seringa de drogas que seria usada por Karen Page por uma navalha; ou a mini-série Camelot 3000, que teve quadrinhos remontados para ocultar uma cena de nudez de uma das personagens.

DruunaGhost In The Shell

Já no mercado de álbuns, o problema é outro. A maioria das livrarias limita-se a colocar tudo quanto é quadrinho no setor de infantis, ou na prateleira mais alta. É como se todas as HQs tivessem conteúdo para crianças ou, então, erótico e pornográfico. Parece que não há meio termo! Fica aquele clima de material pecaminoso, que deve ficar oculto, escondido, evitando a sedução de menores desavisados. Simplesmente ridículo. Este preconceito e ignorância dos produtos vendidos ocorrem na maioria das grandes livrarias brasileiras (a FNAC, felizmente, é uma boa exceção a esta regra).

Finalmente, chegamos ao mercado americano. Vamos dividi-lo em duas categorias, o material estrangeiro impresso nos Estados Unidos e o produzido pelas editoras de lá.

No primeiro caso, o que se vê com freqüência são práticas nefastas (que também são comuns no Brasil) como a censura, o corte de páginas e o reposicionamento de balões e onomatopéias para ocultar cenas de nudez e sexo.

Um exemplo é a mini-série Ghost in the Shell, de Masamune Shirow, publicada pela Dark Horse onde as páginas com o sonho erótico de conotação homossexual da personagem principal (que, diga-se de passagem, é um andróide) foram cortadas. A Dark Horse, assim como outras editoras de mesmo porte, como a Image, tradicionalmente não exibe em suas revistas o selo do Comic Code Authority.

Outro exemplo é a série Druuna, publicada na Heavy Metal americana, que tem balões de texto reposicionados para tapar as cenas de sexo explícito mais ousadas. O mesmo ocorreu com alguns materiais de Manara, como Gulliveriana e até mesmo na série Waters of Deadmoon, de Cothias e Adamov. Nem mesmo um álbum de pin-ups aerografadas do soberbo artista Hajime Sorayma escapou. Gynoids, publicado por uma editora americana, vem com grafismos e logotipos sobrepondo a genitália das ilustrações.

A situação do mercado americano é tão complicada, que para se comprar algum destes materiais numa comic shop americana, você é obrigado a apresentar um comprovante de idade, como carteira de motorista ou, como ocorreu comigo, o passaporte (na época tinha 28 anos e estava adquirindo alguns números de Ghost in The Shell, numa comic shop na Flórida).

Gullivera Sorayama Gynoi # 8

Já com o material produzido nos EUA, o problema é outro. As grandes editoras, como Marvel, DC e a Archie Comics, há muitos anos se utilizam do antiquado Comics Code, um selo que serve como uma espécie de classificação de conteúdo.

Para explicar rapidamente a questão do selo, temos que voltar à década de 1950, quando o puritanismo e o furor anticomunista foram personificados pelo senador Joseph McCarthy, que realizou uma verdadeira caça às bruxas na indústria de entretenimento americano, destruindo a carreira de diretores de cinema, teatro, atrizes, atores e escritores.

Diversas audiências realizadas no congresso americano questionavam a integridade dos artistas e autores, e suas tendências comunistas e anti-americanas. Isto fez com que o mercado de quadrinhos, que estava para entrar na mira do congresso, se autoregulamentasse, criando um selo de classificação de conteúdo similar ao adotado, na época, pela indústria do cinema.

O primeiro resultado deste selo foi a destruição da E.C Comics, que publicava histórias de terror, pois nenhuma revista que falasse de mortos-vivos, zumbis, ou vampiros podia receber o selo do Comics Code e, sem ele, o título não era distribuído em escala nacional para grandes lojas e livrarias. Ainda não existia o mercado especializado das comic shops. Vale lembrar também que o famigerado livro Sedução dos Inocentes, de Frederic Wertham, é desta época.

Esta herança perdura até hoje. Por isso, as maiores editoras utilizam o Comics Code (que já foi revisado diversas vezes e ainda continua antiquado e sinceramente sem propósito) em suas capas, para garantir que suas revistas sejam compradas pelos grandes magazines americanos como o Walmart, o K-Mart e outras lojas similares de alcance nacional.

A mentalidade destas lojas é simples: ninguém quer ver um pai (ou mãe) de criança enfurecido porque seu filho viu uma mulher pelada na revista "monstros mutantes ninjas assassinos da espada negra".

Ou seja, de certa forma, os pais se eximem da responsabilidade de selecionar o material de leitura de seus filhos, a loja foge desta responsabilidade e cabe às editoras ditar o que deve ou não ser lido para cada faixa etária.

Isto é absolutamente ridículo, principalmente numa América onde crianças de 15 anos fazem chacinas em escolas utilizando metralhadoras e escopetas, o tráfico de drogas tem o maior índice de ocorrência do mundo entre os adolescentes, a incidência de adolescentes grávidas também é muito alta e o cinema americano gera, semana após semana, filmes violentos destinados a este público. É incrível, mas nos EUA, a violência e as drogas são muito menos censuradas do que o sexo.

The Authority

É dentro deste contexto que a Marvel, a DC e a Wildstorm (que é uma propriedade da DC) vem anunciando sua linha de quadrinhos adultos. Na verdade de "adulto" estes materiais não têm é nada. Tudo isto é simplesmente uma desculpa para classifica-los, seja dentro do Comic Code ou no recém criado código de classificação da Marvel (como noticiamos em 25/05/2001 e 30/05/2001) . Afinal de contas, títulos como Authority e Wild C.A.T.s já eram violentos antes desta classificação e também mostravam, em alguns casos, de forma menos sutil, um pouco de erotismo e abordavam o homossexualismo.

Qual a diferença, por exemplo, entre os personagens homossexuais de Authority, e um dos seriados campeões de audiência nos EUA, Will & Grace (exibido aqui pela Net, no canal da Sony)?

A Marvel abandonou o Comics Code, numa atitude que tinha mais relação com marketing (como o próprio Will Eisner sugeriu em entrevista ao Universo HQ), do que com censura, e instalou sua própria classificação para não perder uma enorme fatia do mercado, representada pelas grandes lojas já mencionadas.

No caso da Marvel existe um precedente. Durante a década de setenta, a editora desafiou o Código, com excelentes resultados, publicando três histórias do Homem-Aranha, sobre tráfico de drogas nas escolas.

O selo Max, da Marvel, e outras empreitadas para o mercado "adulto" são simplesmente tentativas de distinguir um material que tem menos cara de super-herói e que é, quem sabe, um pouco mais autoral, ou simplesmente mais violento e chamativo, de outros que não exijam tanta inteligência dos leitores.

A Marvel já teve outras linhas adultas, como a Epic, que, na década de 1980, não recebia esta qualificação de adulta, mas trazia material de propriedade de seus autores. Naquela época, os títulos lançados neste selo eram mais interessantes e podia até ser chamado de "adultos"!

WildCATS - Vicious CircleEpic Illustrated # 12

A DC segue o mesmo caminho, com pequenas diferenças. O selo Vertigo começou da maneira correta, realmente trazendo temas mais inteligentes para dentro de um universo de super-heróis. Personagens místicos e mitológicos, muitas vezes distintos da produção das HQs americanas tradicionais, e que depois acabaram se massificando e perdendo muita qualidade.

Outra investida da DC neste segmento adulto-autoral foi a fracassada Piranha Press, que trazia uma pretensão exacerbada no que eles chamavam de "material autoral adulto".

Vale lembrar que a DC, no passado, também teve problema com reclamações, quando publicou a clássica seqüência do Arqueiro Verde e do Lanterna Verde, desenha por Neal Adams, que lidava com um problema de drogas do personagem Ricardito.

A Wildstorm, que nunca usou o selo do Comic Code, mas agora que é propriedade da DC, parece estar sendo, de uma maneira sutil e muito "marketeira", enquadrada dentro destes padrões. Além disso, o anúncio recente de sua linha adulta é uma ótima maneira de fazer notícia e ganhar espaço na mídia, competindo com os projetos adultos da Marvel.

No fundo, a questão não é se o material é adulto ou não, mas sim se é de qualidade. Boas histórias independem da violência ou do sexo apresentado. Maus, Gen, Safe Area Gorazde, Palestina, Ghost in The Shell, Corto Maltese, Ken Parker, os trabalhos de Will Eisner e muitas outras obras, são excelentes exemplos de quadrinhos que abordam temas fortes - o que a indústria chamaria de "adulto" - e não tem a menor necessidade de serem discriminados.

Sérgio Codespoti adora o tema censura. Deve ser porque, quando era pequeno, sempre tentava comprar revistinhas de sacanagem, sem sucesso. Bem feito, quem manda ter cara de "bebezão"? Toma vergonha na cara, rapaz!

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