A viagem que trouxe os quadrinhos de heróis ao Brasil
Há exatos 80 anos, em 14 de março de 1934, surgia o Suplemento Infantil, depois Suplemento Juvenil, publicação que deu início à indústria dos gibis no Brasil, ao trazer os então modernos personagens de aventura norte-americanos
Sim, existiram outras publicações com quadrinhos no Brasil antes do dia 14 de março de 1934. Angelo Agostini (1843-1910), por exemplo, publicou incontáveis histórias do gênero em suas revistas, como Vida Fluminense. O Tico-Tico, importante título infantil brasileiro, fundado em 1905, também. Assim como O Malho, além de Revista da Semana e Fon-Fon!, que tiveram seus suplementos infantis com histórias francesas infantis ou de humor.
Na década de 1920, surgiram a Revista Infantil e os tabloides de quadrinhos Mundo Infantil e A Gazetinha, ambas de 1929. Em 1932, o Diário Carioca criou seu caderno de quadrinhos de quatro páginas, o Suplemento de Domingo. Mas foi com o Suplemento Juvenil – batizado inicialmente de Suplemento Infantil – que teve início a indústria editorial dos quadrinhos. Isso foi há precisos 80 anos, no dia 14 de março de 1934, quando o imigrante russo naturalizado brasileiro Adolfo Aizen (1907-1991) começou a publicar os primeiros grandes heróis de aventura norte-americanos.
E tudo começou de forma inusitada, sete meses antes de o Suplemento Infantil chegar às bancas. Uma história que merece ser contada, aprendida e recontada.
Era para ser uma viagem com a pretensão de mudar a história das relações entre Estados Unidos e Brasil, naquele distante agosto de 1933. Nada menos que 150 personalidades da economia, da política e da vida cultural brasileira deveriam embarcar no “confortável” vapor American Legion, que os levaria por mar à Exposição Internacional de Chicago, que aconteceria entre os dias 17 de agosto e 13 de outubro. As despesas seriam bancadas aparentemente por clubes de turismo, em parceria com o Touring Club do Brasil, no que ficou conhecido como “Uma viagem cultural à América do Norte”.
Tudo não passava do início da estratégia geopolítica dos Estados Unidos de se aproximar da América Latina, no evento que ficou conhecido como Política de Boa Vizinhança, que seria intensificada durante a Segunda Guerra Mundial.
O evento chegou a ser filmado e exibido nos cinemas brasileiros, mas a cópia do curta-metragem se perderia na história. Nem o Touring, entretanto, preservaria qualquer documento a respeito. Sabe-se que entre os passageiros estava Aizen, jovem jornalista de O Globo e da revista O Tico-Tico, levado pelo coordenador da viagem, o jornalista e escritor Berilo Neves, para ser o assessor de imprensa do passeio.
Nos Estados Unidos, Aizen se encantou pela imprensa norte-americana durante a viagem e trouxe de lá a ideia de reproduzir no Brasil os suplementos diários dos jornais – projeto que lançou em A Nação, a partir de 11 de março de 1934 – e as então modernas histórias em quadrinhos de aventura, que sairiam no Suplemento Juvenil, fundado por ele.
Por causa do sucesso do seu caderno de quadrinhos, Aizen despertou a cobiça de Roberto Marinho (1904-2003), que havia se recusado a lançar a novidade, e os dois se tornaram os maiores editores de gibis entre as décadas de 1930 e 1960, ao lado de Assis Chateaubriand (1892-1968) e Victor Civita (1907-1990).
Um catálogo encontrado recentemente pelo autor deste texto no acervo do artista plástico, fotógrafo e gráfico paranaense Loris Foggiatto – radicado em São Paulo e que trabalhou no jornal Folha de S.Paulo entre 1934 e 1969 e morreu em 2009, aos 96 anos – joga luzes sobre aquele passeio de “descoberta” da América por Aizen e que teria grande impacto na história da imprensa brasileira.
Trata-se de uma revista feita exclusivamente para a promoção do evento, cujo exemplar inclui até a ficha de inscrição e uma carta dirigida aos sócios do Touring. A publicação é um guia turístico com fotos de todas as atrações que os passageiros encontrariam no destino, em forma de cartões postais. Havia também um cronograma dos pontos que seriam visitados na América do Norte.
Naquele ano, Chicago comemorava cem anos do início de sua industrialização. “A América do Norte é vista, hoje, no Mundo, como um país padrão. É a terra onde as conquistas do gênio encontram, talvez, expressões mais vigorosas. Para ela, convergem, de todos os cantos do Globo, Inteligências da elite, ávidas de se aperfeiçoarem nesse laboratório incomparável”, escreveu Octavio Guinle, presidente do Touring. Para ele, a ida dos brasileiros à América seria um evento quase desbravador. “Com o programa que oferecemos, dentro dos Estados Unidos, e com o prestimonioso concurso das principais instituições norte-americanas – os médicos, advogados, engenheiros, arquitetos, professores e industriais em geral que dela participem, trarão para o Brasil, ao seu regresso, um cabedal precioso de ensinamentos de toda a natureza, que muito contribuirá para acelerar a marcha do progresso nacional”.
O Touring Clube funcionava como uma espécie de entidade nacional não oficial de promoção do turismo. Aizen tomou conhecimento da viagem na redação de O Globo. Queria muito ir para conhecer os Estados Unidos e passar uns dias com os dois irmãos, Lídia e David, que moravam no país desde a década anterior. Como era apenas colaborador do jornal, sem carteira assinada, sabia que tinha poucas chances de ser escolhido por Roberto Marinho para representá-lo.
Lembrou-se, então, que conhecia o jornalista Berilo Neves, coordenador de imprensa da entidade. Boêmio e intelectual, Neves alcançara grande popularidade nas décadas de 1920 e 1930 como autor de uma série de livros com frases de efeito. Ele recebeu Aizen com entusiasmo: “Adolfo, esse será um evento histórico. Vamos ajudar o Brasil a descobrir um novo mundo!”.
Neves explicou que toda a viagem seria bancada pelos clubes de turismo norte-americanos envolvidos no programa para recuperação econômica do país. O intercâmbio era estimulado pelo governo como parte da política de aproximação com as nações vizinhas do continente. Isso seria feito principalmente a partir de esforços junto àqueles que formavam a opinião pública dos países latino-americanos – jornalistas, intelectuais, empresários e políticos –, no sentido de impressioná-los com sua política de expansão comercial, de modo que a divulgassem ao retornarem a seus países.
Não havia qualquer exagero nas observações do presidente do Touring. O Brasil praticamente engatinhava em suas relações de aproximação política e econômica com os Estados Unidos. O capital norte-americano só começou a penetrar timidamente por aqui em 1921, quando seu governo fez um empréstimo de 50 milhões de dólares. São Paulo, então em ritmo acelerado de industrialização, já havia atraído as primeiras empresas norte-americanas, como Firestone, Burroughs, Pan-American e American Foreign Power – esta, juntamente com a canadense Light & Power, passaria a deter o monopólio da eletricidade nas duas maiores cidades do País, São Paulo e Rio.
Notícias sobre o progresso dos Estados Unidos chegavam aos brasileiros de modo fragmentado, por meio do cinema e das modernas revistas de variedades que surgiram e copiavam os formatos norte-americano e francês desse tipo de publicação. Dentre essas, destacavam-se O Cruzeiro, Paratodos, Revista da Semana, Pelo Mundo, Eu Sei Tudo e A Scena Muda. A maioria apresentava o glamour de galãs e divas de Hollywood e as oportunidades de consumo do modelo de vida da América do Norte. Esse interesse crescente a partir da segunda metade dos anos de 1920 sinalizava uma clara transição cultural. Dizia-se que, naquele momento, o Brasil se vestia ainda à francesa, mas passava a agir como norte-americano.
Diante da crescente ameaça comunista irradiada da União Soviética, começou a ser difundida a ideia de que os Estados Unidos eram a terra da liberdade de pensamento, das grandes oportunidades individuais e do desenvolvimento econômico, do progresso tecnológico que nem a recessão que ora vivia conseguiria abalar. Mesmo assim, os norte-americanos estavam longe de despertar o interesse da elite brasileira ou daqueles que viajavam para o exterior. Tradicionalmente, os caminhos dos turistas eram Paris e Londres, nessa ordem. Não por acaso, a primeira marcou fortemente o surgimento do movimento modernista iniciado em 1922.
E veio a viagem. Pela revista do Touring, é possível reconstituir tudo com detalhes. O embargue de quem partiria de São Paulo foi realizado em Santos, de onde saiu o American Legion, para uma travessia de “apenas” 14 dias. No dia seguinte, quinta-feira, apanharia no Rio os cariocas e mineiros. Seriam feitas escalas em Trinidad e Tobago e Bermudas. Em Nova York, a comitiva ficaria hospedada no “moderníssimo” Hotel Taft. Permaneceria na cidade por três dias e seguiria par a Filadélfia de trem. Após dois dias, Washington. Por fim, em 8 de setembro, os brasileiros cruzariam parte dos Estados Unidos de trem, rumo a Chicago, para estada de duas semanas de intensas atividades.
Suplemento A Grande Aventura (16 páginas, não comercializado), de 1944, marcou os 10 anos do Suplemento Juvenil. Clique para ampliar.
De volta a Nova York, a comitiva teve seis dias livres, entre 23 e 29 de setembro. Foi nessa semana que Aizen aproveitou para visitar as redações dos jornais e se encantar com os heróis dos quadrinhos, então inéditos no Brasil, além dos suplementos diários – feminino, policial, literário, infantil e esportivo – que ele achava que poderia lançar no Brasil, como acabaria fazendo.
Os gibis de Aizen e Marinho seriam importantes para a aproximação cultural entre Estados Unidos e Brasil, ao lado do cinema e da música. Como eram uma novidade – que virou mania entre crianças e adolescentes – desconhecidas pelos adultos, acabaram como alvos de intensa perseguição por parte de padres, educadores, pais, políticos e psiquiatras. Dizia-se que as revistinhas induziam os leitores ao crime, à prostituição e à homossexualidade, além de desnacionalizarem e causarem preguiça mental e falta de interesse nos estudos.
Entre 1944 e 1964, como mostra o livro A Guerra dos Gibis (Companhia das Letras), mais de duas dezenas de iniciativas foram tentadas no sentido de censurar os quadrinhos no Brasil, num conflito que tinha Marinho como alvo principal, numa época em que os donos de jornais se digladiavam pelas páginas impressas.
E tudo isso começou com a viagem de Chicago, em 1933. A certeza desse documento é a de que não é possível estudar a história das relações entre Estados Unidos e Brasil durante a Guerra Fria – denominação que só seria adotada em 1947 – sem considerar essa curiosa viagem cultural que, até então, tinha rendido observações apenas sobre as maravilhosas histórias em quadrinhos norte-americanas de Flash Gordon, Fantasma e companhia.
Gonçalo Junior é jornalista e autor de importantes livros contado a trajetória das histórias em quadrinhos no Brasil, como A Guerra dos Gibis, O Homem-Abril, Benício, A Biblioteca dos Quadrinhos, Maria Erótica e o Clamor do Sexo, A Morte do Grilo, entre outros.