As dimensões alternativas dos quadrinhos
Histórias que tiram personagens de seus lugares característicos
e exploram novas possibilidades e conceitos têm dado bons resultados há
décadas
Após
anos de seminário, Bruce Wayne torna-se padre apenas para descobrir que
a Igreja esteve envolvida no assassinato de seus pais. Decide, então,
se tornar um homem-morcego, e buscar por respostas e vingança.
Devido ao sempre escasso dinheiro, Peter Parker resolve vender seus serviços
para o Quarteto Fantástico, entrando na equipe que se transforma no Quinteto
Fantástico.
Um Superman velho pede esmolas em uma cadeira de rodas nas ruas de Metrópolis,
desde que a altíssima tecnologia começou a resolver todos os problemas
antes mesmo do Homem de Aço. Mas qual será o seu destino?
Victor Von Doom, o colega de faculdade de Reed Richards, prefere ouvir
a opinião de seu amigo, e faz os devidos ajustes em seu aparelho para
resgatar sua mãe do inferno. Assim, seus rumos se alteram e, mesmo tornando-se
o Dr. Destino, ele prefere o caminho da justiça!
Loucura! O sujeito está delirando! Não, tudo isto é a mais pura e simples
verdade quadrinhística.
Nas
HQs sempre tivemos o presente, o passado e o futuro, já visitados pela
maior parte dos heróis - mesmo os mais limitados a combater os ladrões
comuns. Mas existem também as dimensões paralelas, lugares onde algum
detalhe foi alterado na história e, de repente, surge uma nova e, quase
sempre, interessante realidade.
Veja dois exemplos:
- Professor Charles Xavier, futuro fundador dos X-Men e amigo de Magnus,
é assassinado por um mutante maligno. Isso faz com que Magnus seja o responsável
pelo surgimento dos X-Men. Essa "mudança de rumo", de certo modo, influencia
a realidade, que não vive um período de convivência relativamente pacífica
com os mutantes. Surge A Era do Apocalipse, grande sucesso da Marvel.
- Martha e Jonathan Kent decidem não ir à cidade logo após um prego furar
o pneu de seu carro. Assim, não encontram nos escombros uma criança vinda
do distante planeta Krypton. Com isso, toda a realidade é alterada na
série LJA - O Prego.
As histórias imaginárias e a DC
Na
DC Comics,
estas aventuras são chamadas, a princípio, de "histórias imaginárias",
como mostra a capa de Superman # 194 (1º volume), na qual temos
The Death of Lois Lane, em que os roteiristas criam um conceito
que deveria sobreviver apenas naquela edição.
Eles criam uma realidade e motivos para tais acontecimentos ocorrerem,
e, no número seguinte, o personagem estava de volta ao seu status quo.
Superman e Batman têm uma longa tradição de dezenas de aventuras neste
estilo. Só para citarmos algumas, há a famosa The Death of Superman,
de Jerry Siegel e Joe Shuster, além de várias histórias dos filhos do
Homem de Aço e do Cavaleiro das Trevas publicadas na série World's
Finest Comics.
Um dos personagens mais marcantes, e que chegou a ter vida "própria" e
várias seqüências, foi Killer Kent, uma versão maligna de Clark Kent que
enfrentava o herói Lex Luthor.
Apesar de não poderem ser classificadas como histórias imaginárias, a
própria estrutura do multiverso da DC dava vazão a estas versões.
Existiam, no mínimo, duas Terras que se aproximavam deste conceito, sem
realmente intergrá-lo: a Terra X, onde o Eixo ganhou a guerra; e a Terra
K, onde vive Kamandi, o último garoto da Terra, num mundo pós-apocalíptico
em que feras ganharam raciocínio e aprontam das suas com o personagem
título.
Como
sabemos, em 1985 a DC reviu seu confuso multiverso e acabou destruindo-o,
ao final da série Crise nas Infinitas Terras. Em janeiro de 1986,
começou tudo novamente, a partir do zero, construindo seus personagens
e suas lendas outra vez, agora presos à existência de somente um universo.
Neste momento, para fixar as novas histórias na memória dos leitores,
a editora aboliu totalmente as histórias imaginárias, que já não eram
publicadas com a mesma regularidade.
Assim, neste novo período - o famoso pós-Crise -, só são consideradas
histórias imaginárias aquelas que, em revisões posteriores, os editores
consideraram como tal. Um bom exemplo é Action Comics # 588, na
qual o Superman encontra-se com o Gavião Negro e a Mulher Gavião. Uma
impossibilidade cronológica, que até hoje gera discussões e versões.
Mas, em 1987, surgiria uma graphic novel de qualidade que obrigaria
a DC a rever seu próprio conceito de histórias imaginárias: O
Filho do Demônio.
Graphic novel é um termo que quer dizer "romance gráfico"; e romance
no sentido de livro curto, conto. Então, seria é um conto gráfico, um
livro em quadrinhos. E os livros seriados não apresentam uma cronologia
rigorosa - 007 é um bom exemplo. Ou seja, elas não têm obrigação de seguir
ou de fazer parte de uma cronologia.
É
este o caso de O Filho do Demônio, quando, depois de um envolvimento
longo com Tália Head, filha de Ra's Al Ghul, Batman se vê diante da possibilidade
de ter que abandonar sua carreira de combate ao crime, para que seu próprio
filho não cresça sem pai. Diante do quadro, a jovem mente para o Homem-Morcego,
dizendo que perdeu a criança, enquanto dava o menino para a adoção.
Vendo que logo o menino cresceria e retornaria ao título mensal de alguma
maneira, a editora decretou que aquela era uma história imaginária, agora
chamada de Elsewhere Worlds (algo como "mundos de outro lugar"),
que se tornaria um selo chamado Elseworlds (no Brasil, batizado
de Túnel do Tempo, na Editora
Abril Jovem e Mythos
Editora; Realidade Alternativa, na Brainstore;
e Multiverso na Pandora
Books).
A partir daí, surgiram obras interessantes, com artistas que têm boas
visões, e outras nem tanto. Duas são surpreendentes e, no mínimo, mudaram
a maneira de se ver os quadrinhos e o Universo ficcional da DC:
Cavaleiro das Trevas, publicado antes da existência do selo, e
O Reino do Amanhã.
Falar
sobre Cavaleiro das Trevas é "chover no molhado". A história conta
a visão definitiva de um artista em ascensão sobre um personagem que não
poderia ser menos do que um fascista! Bruce Wayne, aos 50 anos (época
retratada na história), é um homem solitário que não conseguiu construir
uma família, não tem amigos, e cujos desafios são simplesmente ridículos,
comparados àqueles que enfrentou quando herói.
Bruce só tem prazer quando está espancando criminosos, defendendo a "sua
justiça". Estas visões não correspondiam ao personagem mensalmente editado
pela DC, e diversas informações entrariam em contradição com a
cronologia da época, como a não existência de um terceiro Robin ou a continuidade
do rompimento entre Wayne e seu primeiro pupilo, Dick Grayson. Assim,
mesmo tendo sido publicada antes da existência do selo, Cavaleiro das
Trevas é uma obra legítima da marca Elseworlds.
Apesar
de muitas artistas terem trabalhado com o Superman, poucos tem a visão
de grandeza que o personagem representa como Mark Waid. Já Alex Ross,
mesmo sendo alvo de críticas de alguns por seu estilo fotográfico, redefiniu
o conceito de obra pintada e se tornou um popular artista e capista, mesmo
para a nova geração.
Agora imagine o requinte do texto de Waid, que busca referências bíblicas
e mercadológicas, com a arte de Alex Ross, para ter uma idéia de longe
do impacto que foi O Reino do Amanhã.
A trama se passa em um futuro próximo, talvez 20 ou 25 anos à frente.
Os novos heróis não se importam com os seres humanos que salvam, numa
claríssima referência à Image Comics e aos títulos de heróis "adultos".
O principal destes novos heróis é uma cópia de Cable, personagem da Marvel,
criado por Rob Liefeld, e de certo modo precursor de uma onda de personagens
altamente violentos.
A humanidade vive como refém tanto dos vilões quanto dos "heróis". Mas
uma série de eventos traz de volta o maior deles, Superman, retratado
em toda sua grandiosidade e majestade, assim como praticamente todos os
personagens clássicos da DC.
Na trama, Bruce Wayne - que, mesmo tendo tido sua identidade revelada
e andando sem máscara, é sempre chamado de Batman -, Mulher-Maravilha,
Billy Batson e Lex Luthor têm papéis fundamentais e bem definidos.
Infelizmente, a grande falha fica para a participação do Caçador de Marte
(Waid disse não ter condições de desenvolver uma trama com três "Super-Homens",
já que tinha o Superman e Capitão Marvel para trabalhar) e a fraca continuação.
Um dos créditos de O Reino do Amanhã é apresentar ao leitor uma
nova geração de personagens. Os filhos da Turma Titã original têm destaque
na trama, em especial uma "anomalia de outro mundo": o filho de Batman,
que só existe no selo Elseworld, e que aqui recebe nome e, inclusive,
paquera a filha de Asa Noturna e Estelar.
Seria bom se a Panini avaliasse a republicação do material e acrescentasse
as inéditas (por aqui) páginas extras, que levam a aventura a outros patamares.
Mas,
no início, a série de especiais Elseworlds ficou limitada ao Homem-Morcego,
com tímidos lançamentos para o Superman (Balas de Aço), e só veio
a se estender depois de 1994, quando a editora permitiu que seus criadores
tivessem visões alternativas dos personagens nas edições anuais de suas
séries.
Com resultados bastante distintos, temos - entre muito material ruim -
uma nova história de John Byrne para o Superman (Action Comics Annual
# 6), uma versão Livro da Selva para o Homem de Aço (Superman
Annual # 6), uma visão de como seria a Terra se os kryptonianos tivessem
vindo quando da destruição de seu mundo (Man of Steel Annual # 3),
um Robin ninja (Robin Annual # 3) e um Batman fascista controlado
pelo Espantalho (Shadow of the Bat Annual # 2).
Todos estes anuais e outros mais foram publicados pela Editora Abril
em Super-Homem, Superboy e na mini-série Batman no Túnel
do Tempo, em quatro edições.
Desde 2000 a Mythos Editora tem lançado várias especiais do selo
Elseworlds, e a Pandora Books lançou o especial Superman/Tarzan
- Filhos da Selva, um crossover da DC Comics com a Dark
Horse, que atualmente publica as aventuras de Tarzan.
Na Marvel, a Contra-Terra e suas histórias O que aconteceria se...?
A
Marvel sempre
apresentou várias histórias com o tema viagem no tempo, porém raramente
era citado que, ao alterar o fato no passado, o personagem estava criando
uma outra realidade.
Uma dessas menções está em Marvel Two-In-One # 50, quando o Coisa
viajava ao passado para encontrar consigo mesmo e, assim, induzir-se a
beber uma fórmula que poderia revertê-lo à forma humana, mas que só poderia
funcionar no início de sua carreira.
Outra citação está em uma série de aventuras dos Vingadores, nas quais
Kang, o Conquistador, descobre que suas viagens no tempo e alterações
dos fatos geram realidades paralelas - ou multiversos...
Na década de 1970, Roy Thomas, famoso roteirista e editor da Marvel
que escrevia pela mesma cartilha de Stan Lee, criou um outro planeta,
a Contra-Terra, que surgiu na ficção pelo Alto Evolucionário, para ser
livre da maldade. Mas um acidente fez com que ele dormisse, e o Homem-Fera
altera a programação, fazendo com que tudo fosse como em nosso mundo,
mas com sutis diferenças no fator do surgimento dos heróis.
Victor Von Doom não é vilão e Reed Richards tem um destino menos nobre.
Nesta Terra, surge o Esquadrão Sinistro, depois Esquadrão Supremo, que
se torna adversário dos Vingadores de nossa dimensão.
Detalhe:
a Contra-Terra não existia em outra dimensão, mas nesta mesma, apenas
do outro lado do Sol em relação ao nosso planeta e invisível aos nossos
sensores.
Existem outros universos paralelos na Marvel que tiveram relativa
importância no passado.
O Microverso tinha como defensores os Micronautas (na verdade, um produto
licenciado). Havia o mundo subatômico de Kai, onde o Hulk encontrou Jarella
e, recentemente, o Capitão Marvel viveu algumas aventuras. E, é claro,
existe a Zona Negativa que, apesar de ser tema de dezenas de aventuras
do Quarteto Fantástico, nunca teve um personagem próprio para justificar
uma série que explorasse melhor este universo.
Atualmente, há, no mínimo, um grupo de aventureiros na Marvel que
explora o Multiverso: a equipe mutante Exilados, publicada no Brasil
em X-Men Extra, da Panini
Comics.
Em 1977, com a expansão da Marvel, Roy Thomas desenvolveu um projeto
interessante. Ele aproveitou a figura do Vigia, um ser onisciente que
era constante coadjuvante de aventuras do Quarteto Fantástico, e o usou
como apresentador e narrador de eventos que aconteceram em uma outra dimensão.
A
grande diferença em relação às "histórias imaginárias" e Elseworlds
da DC era que, na Marvel, haveria normalmente a mudança
de apenas um fator, e não nova realidade por completo. Surgiu, então,
a série What if...?, traduzida pela RGE, no Almanaque
Premiere Marvel, como E se...?; e pela Editora Abril
como O que aconteceria se...?.
O primeiro What if...? foi E se o Aranha se unisse ao Quarteto
Fantástico? (publicado em Almanaque Premiere Marvel # 1, RGE,
fevereiro-março de 1982), começando uma longa, porém inconstante série
de aventuras de razoável qualidade.
A RGE publicou essas aventuras nas seis edições de Almanaque
Premiere Marvel, e a Abril utilizou histórias que se referiam
aos personagens da Marvel que ela tinha na época, como O que
aconteceria se o Motoqueiro Fantasma fosse um servo de Satã?, O
que aconteceria se o Capitão América não tivesse sido congelado? e
O que aconteceria se o Mestre do Kung-Fu fosse um aliado de Fu Manchu?.
Depois que adquiriu os direitos completos da Marvel, em 1983, a
Abril ainda publicou dezenas de What if...?, alguns bem
ruins, como O Demolidor no ano de 2010, O que aconteceria se
o Fera continuasse a mudar e O que aconteceria se o Surfista Prateado
perdesse seu poderes?.
Em retrospectiva, é cômico ver as aventuras como E se o clone do Homem-Aranha
tivesse sobrevivido? (publicado em Almanaque Premiere Marvel #
6, RGE, dezembro-1982/janeiro-1983), E se a Fênix não tivesse
morrido?, E se Elektra não tivesse morrido? e E se Sharon
Carter não tivesse morrido?, mas devemos compreender que era uma sede
dos leitores por uma versão alternativa para a morte de seus personagens
preferidos.
O primeiro volume de What If...? foi cancelado durante a década
de 1980, para ressurgir em 1989, agora catapultado pelo sucesso das diversas
séries da Marvel naquele período.
Assim
logo surgiram E se os Vingadores tivessem perdido a Guerra Evolucionária?
(o primeiro número deste segundo volume), E se os X-Men tivessem perdido
o Inferno?, E se o Demolidor tivesse matado o Rei? (uma versão
alternativa para Born Again), E se o Capitão Marvel não tivesse
morrido de câncer? (uma versão alternativa para a graphic novel
A Morte do Capitão Marvel), entre outros trabalhos.
Esta fase apresenta aventuras de melhor qualidade, tanto na arte quanto
nos roteiros, muito mais livre da visão romântica dos anos 1970, e mais
limitada à função de aproveitar e explorar séries que tinham vendido bem
durante o ano, sugerindo finais alternativos.
No número 76, o Vigia deixa de ser o apresentador da série, que agora
apresenta o selo Marvel Alternativerse (Ruínas, versão alternativa
de Marvels, é deste selo). O título durou mais de 100 números,
mas foi cancelada devido às baixas vendas.
A Pandora em seu Almanaque Marvel chegou a anunciar que
publicaria aventuras da série What If...?, mas, devido à vida curta
do título, não chegou a lançar nada.
Veja abaixo seis Elseworlds que valem cada centavo:
1) Batman 1889 (Gotham by gaslight), de Brian Augustyn e
Mike Mignola.
2) Chuva Rubra (Red Rain), de Doug Moench, Kelley Jones
e John Beatty (que teve duas seqüências frustrantes).
3) Batman/Houdini - A Oficina do Diabo (The workdevil's shop),
de Howard Chaykin, John Francis Moore e Mark Chiarello.
4) Batman - O Livro dos Mortos (The book of dead), de Doug
Moench, Barry Kitson e Ray McCarthy;
5) Legião do Superboy (Superboy Legion's), de Mark Farmer
e Alan Davis.
6) O Reino do Amanhã (The Kingdom Come), de Mark Waid e
Alex Ross.
Certo mesmo é que muitas dessas histórias alternativas são de ótimo nível,
e outras poderiam ser incluídas na lista acima. Sejam com que nome for,
elas têm sido boas opções para leitores que não acompanham os títulos
regulares dos super-heróis. Afinal, em "outros universos", os roteiristas
ganham das editoras uma liberdade para mexer com os personagens que só
conseguiriam se vivessem numa Terra paralela!
Jamerson Albuquerque escreveu
esta matéria com a ajuda de suas versões de outras Terras