Confins do Universo 203 - Literatura e(m) Quadrinhos
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Batman, Pule!

Por Delfin
1 dezembro 2001

Arte de Daniel BrandãoA noite é calma. Num edifício afastado, um homem encapuzado está olhando para a lua minguante. A noite está quente e o homem pensa nas tragédias de seu passado. Nos pais mortos. Na dura vida que enfrenta hoje, que é toda conseqüência de suas escolhas de outrora. A noite está quieta. É rara a oportunidade de ouvir apenas os poucos carros nas ruas de Gotham. E ele aproveita. É preciso. É inevitável.

— É assim que termina, doutora?

— Não diga tolices, Bruce. Nos conhecemos há anos. Você sabe que pode decidir o rumo a tomar, a qualquer momento.

— E toda a descrença que eu deixo? Olhe a cidade, Leslie. Hoje tudo está bem. E depois?

Leslie Thompkins observa o amigo desesperado. Ela aprendeu a respeitar aquele seu antigo paciente como quem respeita um irmão. Na penumbra se nota a barba por fazer: já esquecera do barbeador há pelo menos sete dias.

Arte de Daniel Brandão- Aqueles loucos lá fora, Leslie. Coringa, Charada, Duas-Caras... Até mesmo os comparsas de gente como o Pingüim. Todos são minha responsabilidade.

Aquilo na mão dele é um cigarro. Sim, com marca barata e que deixa um cheiro que não conforta a doutora. Ele tosse muito. Não sabe tragar. Tampouco bebe. Mas o cheiro de bebida barata também é fácil de se perceber. O mascarado caminha próximo ao parapeito.

Arte de Daniel Brandão— Afaste-se daí!

— Não se preocupe. Eu sempre saio vivo. Faço algumas acrobacias e ainda entro são e salvo no Batmóvel.

— Você não é o herói que pensa, Bruce. Não nesse estado deplorável! Pense! Pra que acabar com tudo o que você construiu desse jeito? Jogando seu corpo fora por causa de...

— Por causa de minha história! Você não imagina quantas brigas me deixaram marcas... e ainda assim, as venci. Mas o que uma velha como você pode saber dessas coisas?

— Escute aqui, meu rapaz, eu...

— Ainda não terminei! Espere eu acabar de falar! Você sempre me deixa terminar meu raciocínio. Eu preciso falar, me explicar...

A doutora não sabe o que fazer. Nunca havia visto Bruce transtornado daquela forma. Pensou em usar seu celular e pedir ajuda, mas ele poderia achar isso uma afronta. Como prever as ações de um homem repentinamente insano?

— Eu não sou diferente deles. De nenhum deles. Todos fazem parte de mim e eu faço parte deles. É uma simbiose, um complemento. Não. Não é verdade. Somos como vírus que se autocontaminam. A doença que é aumentada pela doença. E não há chance para nós. Tudo o que fiz durante esses anos foi prolongar a agonia.

Toma mais um gole.

— Alimentar a agonia.

Um pequeno silêncio se faz presente. Leslie já cogitou fugir, é verdade. Mas os seus pensamentos de medo duraram poucos minutos. Além disso, a porta que dá acesso ao terraço está fechada. A chave não existe mais. Bruce cuidou disso.

A noite vai passando na cidade. Já passa das duas da madrugada. Um pouco de frio. Ou seriam calafrios? Bruce tenta concentrar seus pensamentos enquanto tenta se manter em pé. Há cinco minutos vomitou o pouco que colocou no estômago durante o dia. Frio? Seu uniforme estava impecável, mas a capa fez as vezes de lenço para sua boca. Três cuspes. Um drops para tentar aliviar o gosto horrível.

— Preciso inventar um batdrops... Tenho que lembrar Robin para que ele não me esqueça disso...

Um tropeço. Até quando isso duraria?

— Por que estou me enganando...?

Leslie não conseguia gritar. Olhava pelas lentes de seus óculos a fina chuva que começava a cair, de modo suave. As luzes de néon do backlight da WayneTech, no prédio vizinho, alternavam os tons do drama; ora vermelhos, ora amarelados. Arte de Daniel Brandão Bruce, então, resolve se aproximar da doutora. Tira a máscara. Ela quase não consegue ver o rosto dele.

— Olhe para mim, minha amiga. Sem amor, sem uma família de verdade, sem perspectivas. De que me vale tudo o que construí, se não tenho a paz de uma esposa em meus braços, ao fim de um dia cansativo, nem um filho para levar ao jogo de beisebol? Tenho apenas uma construção, uma casca que chamo de lar. E solidão, Leslie. Solidão!

— Mas foi você quem dispensou sua sorte, Bruce. Você só falou disso comigo por um tempo. Lembra? Vitóri...

— Leslie, eu vou pular.

O silêncio repentino tomou conta do terraço. Um ser humano estava prestes a tirar sua própria vida. E apenas uma pessoa, escolhida dentre as mais queridas, estaria presente em seus últimos momentos, anotando seu testamento oral, sua tristeza ainda viva.

— Me diga com clareza o que você pode ganhar com isso, Bruce. Atenção? Paz? Reconhecimento? Um monumento, talvez...

— Eu não tenho nada a ganhar, Leslie. Mas, quando eu pular, não terei mais nada a perder.

Ele caminha até o parapeito. Sem medo. Olha para baixo. Arte de Daniel Brandão Verifica se o seu automóvel ainda o aguarda lá embaixo. Pensa se devia ter chamado a imprensa para este momento. Mas depois tem certeza de que é bem melhor assim. Vão estranhar o estado das roupas, a bebida, a nicotina na autópsia. Mas a vida não é interessante assim, cheia de surpresas?

Enquanto ele está perdido em seus pensamentos, Leslie se levanta de seu canto. Também pensa em como tudo chegou a esse ponto. Se tivesse cuidado dele melhor, agido ao invés de ter dado conselhos. Pensa que Bruce não é o único que conhece que padece da mesma solidão. Imagina que talvez Gotham leve as pessoas a isso. Imagina quantos outros desesperados existem, em quantos outros prédios, e lembra que é apenas uma doutora, com uma voz sábia, mas na verdade tão solitária como todos eles. Então, finalmente, se pergunta se não está no lugar certo, na hora certa.

Uma risada estranha faz Leslie acordar de seus devaneios. Ela corre até o parapeito.

— Eu nunca tinha reparado como uma garrafa é ridícula se espatifando no chão.

Seu sorriso é doentio.

— Imagine a Jeannie se espatifando lá embaixo. Não seria um suicídio genial?

O que leva as pessoas a terem esses pensamentos insólitos e estranhamente brilhantes nos momentos de pouca lucidez? Há décadas a doutora tenta responder a esta pergunta e só chegou à conclusão de nunca seremos normais.

Bruce a olha nos olhos sorrindo como um adolescente.

— Há quanto tempo nos conhecemos, doutora?

— Nem me lembro mais... Éramos tão mais jovens...

— Mas você estudou com meu pai, Leslie. Eu lembro de você em casa, de vez em quando.

— É. Era uma época um pouco mais inocente...

— Mamãe tinha ciúmes de você?

— Engraçado você falar dela assim... mamãe.

— Tenho pouca chance de me revelar. Tenho uma aparência a manter, lembra?

— Sim.

— Mas... tinha ou não tinha?

— Éramos relativamente amigas, Bruce. Ela nunca demonstrou ciúmes. E nem havia porquê. Seus pais tinham um casamento muito estável. Mas admito que preferia seu pai de barba.

— Ele já usou barba?

— Mas há muito tempo, bem antes de...

O rosto de Bruce, que havia se tornado sereno, de repente se fechou novamente.

— Não conseguimos sair desse círculo, não? Sempre voltamos ao mesmo ponto.

— Mas você viveu até agora, conviveu com isso. Por que justamente agora você...

— Batman.

— Como?

— Batman é o culpado, Leslie. É insuportável saber que, se ele não existisse, eu seria um homem dos mais felizes. Arte de Daniel Brandão

Sirenes são ouvidas ao longe. Nenhum dos dois percebe.

— Sem ele, eu não teria que estar lidando com aqueles loucos do Arkhan. Sabe como é difícil? É o pior desafio que um homem são pode enfrentar.

As lágrimas escorrem pelo rosto, que decide ser novamente coberto pela máscara.

— Hera Venenosa... Sabia que nós quase transamos uma vez? E tudo porque ela queria escapar, uma vingança contra alguém que a tinha traído... Mas ela é como os outros. Solitária por suas tragédias pessoais. Como eu. Quem pode culpar a eles? A polícia? Gotham? Você? Eu?

Um breve silêncio novamente. Leslie ampara Bruce em seus ombros. Ele, sempre tão forte, agora acabava assim. Ele chora e isso parece fazer bem. Talvez, Leslie pensa, talvez eu consiga tirá-lo daqui.

Luzes fortes estragam tudo.

— Polícia! Parados!

Ele me olha sem ver meu rosto. Está descrente.

— Saiam agora do parapeito. Com calma.

Os dois imóveis.

Os carros lá embaixo são cinco. Mais uma noite de paz interrompida.

— Bullock, aquele lá em cima não é ele?

— Se for, Montoya, algo muito errado está acontecendo por aqui. Avise o Gordon e os bombeiros.

Lá embaixo, a foice da lua parece prestes a atingir o alto do prédio. Lá em cima...

— Parecem formigas que descobriram a luz elétrica.

— Eles vão subir, Bruce. Desista.

— Batman não desistiria, doutora. Por que eu o faria?

Ele sobe no parapeito.

— Uma vez eu conversei com o Charada. Sujeitinho interessante. Uma vez ele me perguntou: "Sabe qual a diferença entre uma grande aventura e uma morte horrível?". É claro que eu não sabia. Ele me respondeu: "Ora, meu caro, é a queda!" e riu como um louco. Bem, todos lá riam como loucos...

Leslie se vira. A porta estava sendo arrombada. Bruce não percebia. Estava de costas.

— Eu nunca havia entendido até agora, Leslie... Quando ele viu que eu não havia rido, então ele me disse: "Para entender, Bruce, basta se lançar, como todos nós. Isso é a grande aventura. Pule!"

A porta é arrombada.

— É o segredo, doutora. E esse é o único jeito de descobrir... Pule!

E, sorrindo, pula, antes que os policiais consigam impedi-lo. A queda é rápida. Poucos segundos separam a vida do impacto. No entanto, é mais emoção do que ele supunha existir. Mas uma sombra negra passa por ele, balançando ao vento, segurando seu corpo pesado e salvando-o da morte certa.

Arte de Daniel BrandãoMinutos depois, no terraço...

— Quem era, Dra. Thompkins?

— Bruce Epcott. Filho de um de meus melhores amigos. Tentou ser médico como o pai, mas acabou sendo apenas enfermeiro do Arkhan. O único funcionário que está lá há mais de 20 anos.

— É de se imaginar o porquê dessa loucura.

Os policiais se retiram com Epcott. E Batman fica sozinho com Leslie, uma vez mais.

— Mas por que as roupas?

— Ele o culpa há anos, Bruce. Desde que você surgiu, o Arkhan não é mais o mesmo. E ele cruzou o limite, o mesmo que você mantém próximo demais de si.

— Preciso ir, Leslie. Posso vê-la na sexta?

— Claro, Bruce. Sei que não vai aparecer mesmo.

— O que seria de mim sem você, doutora?

E assim Bruce se vai, deixando Leslie imaginando se ele não está novamente se dirigindo a caminho de sua grande aventura.

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