Dez obras não representam uma década
Antes de terminar a década (a data correta seria 2010) já começaram a sair as listas das melhores HQs dos últimos dez anos. Selecionar dez itens que representam o suprassumo da produção em quadrinhos nesse período não é uma tarefa fácil.
O ser humano adora listas.
Umberto Eco, escritor e semioticista italiano, foi mais fundo e afirmou, numa entrevista recente à revista Der Spiegel (reproduzida em português aqui), que a lista é a origem da cultura.
Não é de se estranhar, portanto, que às portas do ano 2010 começaram a surgir as listas que tentam definir a década - mesmo que muita gente pareça esquecer: a próxima década só começa em 2011. Este escriba mesmo fez uma coluna sobre as adaptações de quadrinhos para o cinema feitas nos anos 2000 (embora não tenha sido exatamente sob a forma de lista).
O site Io9 também entrou no espírito e fez uma lista ponderada, limitada à ficção científica, não das dez melhores, mas dez entre as melhores HQs. Já o blog Techland, que faz parte do grupo Time, foi bem mais ambicioso e publicou a lista, assinada por Mike Williams, Best of the Decade: Comics (O Melhor da Década: Quadrinhos).
Essa lista ganhou destaque no site da revista Time e o assunto foi "lincado" e "retuitado" de maneira até exagerada na internet, repercutiu bastante, e ficou conhecida como a "lista da Time".
Para uma listagem que propõe descrever as melhores histórias em quadrinhos da década, ela revela muitos dos problemas que assolam o mercado de quadrinhos nos Estados Unidos, como repetição temática e a falta de abrangência.
Composta por Y- O Último Homem (Y - The Last Man), Invencível (Invincible), Retalhos (Blankets), Os Pequenos Guardiões (Mouse Guard), The Authority, Os Mortos-Vivos (The Walking Dead), All Star Superman, Planetary, 100 Balas (100 Bullets) e Os Supremos (The Ultimates), a lista de dez itens de Williams não possui nenhum obra ruim.
São todas boas HQs. E, individualmente, cada uma dessas histórias foi marcante dentro de um segmento específico. Juntas, essas obras formam um belo catálogo, mas não fazem justiça ao título de O Melhor da Década. Faltam autores, faltam outros gêneros, falta abrangência.
Dentro desse contexto é uma lista pífia, simplista.
A primeira coisa que fica óbvia - levando-se em conta apenas o que foi publicado nos Estados Unidos (este era o escopo da "lista da Time") - é que foram excluídos todos os trabalhos estrangeiros. Não há um mangá ou uma HQ europeia. Será que não saiu nos EUA nenhum quadrinho europeu ou japonês de destaque nos últimos dez anos? Claro que sim.
Em 2000 (que, só pra lembrar, de novo, faz parte da década passada), a Dark Horse começou a publicar, na íntegra, Lobo Solitário, a obra máxima de Kazuo Koike e Goseki Kojima, um dos mangás mais influentes de todos os tempos, que foi concluída nesta década.
Parte das aventuras do Lobo Solitário já haviam sido lançadas nos Estados Unidos, pela First Comics, na década de 1980, mas fora de ordem e sem que a série fosse concluída.
Mas havia outras escolhas. Grande parte da obra de Osamu Tezuka foi lançada na América do Norte nos últimos dez anos, como Buddha, Dororo, MW e Astro Boy, por exemplo. Para quem não gosta deste tipo de mangá, outra a opção era Jiro Taniguchi, que teve a HQ The Ice Wanderer and Other Stories indicada ao prêmio Eisner.
Em 2003, a Pantheon lançou nos EUA Persépolis, da iraniana radicada na França, Marjane Satrapi, reunindo os dois primeiros volumes num só livro.
Persépolis é uma HQ biográfica, lançada originalmente na França, que teve grande repercussão e até foi transformada num longa-metragem de animação. Também é da cartunista o livro Chicken With Plums (Frango com Ameixas).
Ignorar Persépolis é como ignorar Maus, de Art Spiegelman.
Mas havia outras opções interessantes, de gêneros variados, como Exit Wounds, de Rutu Modan; Aya, de Marguerite Abouet e Clement Obrerie; O Gato do Rabino, de Joann Sfar; Dungeon: The Early Years, de Joann Sfar, Lewis Trondheim, e Christophe Blaine; Ordinary Victories (Le Combat Ordinaire), de Manu Larcenet; Miss Don't Touch Me (Miss Pas Touche), de Hubert e Kerascoët ou até Chaland Anthology: Freddy Lombard, de Yves Chaland. Todas essas obras estrangeiras foram indicadas a prêmios nas terras de Tio Sam.
A segunda coisa óbvia é que a lista possui um alto grau de redundância, de HQs muito similares no tom, na temática e até em sua autoria.
Robert Kirkman, Warren Ellis, Bryan Hitch e Mark Millar se destacam com dois títulos cada um.
Kirkman com Os Mortos-Vivos e Invencível; Ellis com The Authority e Planetary; Millar com The Authority e Os Supremos; Hitch com The Authority e Os Supremos.
E aqui vale uma explicação. Como a lista não define qual volume de The Authority foi incluso, e como tecnicamente a fase Ellis/Hitch terminou em maio de 2000, presume-se que o autor da seleção tinha a intenção - equivocada, já que p material é da década passada - de incluir os 29 volumes originais da primeira série.
Quanto às similaridades temáticas, Os Supremos é uma história claramente derivada do conceito e até da interpretação moderna que Warren Ellis desenvolveu em Storm Watch e que chegou ao ápice em The Authority.
Aliás, The Authority, Os Supremos, Invencível, Planetary e All Star Superman são todos interpretações modernas de super-heróis e da cultura pop.
The Authority surgiu em maio de 1999, publicado pela Wildstorm, quando a editora de Jim Lee já havia sido comprada pela DC Comics, embora mantivesse sua independência editorial.
Warren Ellis e Bryan Hitch transformaram Storm Watch, uma revista de supergrupo de categoria "C", num dos mais interessantes títulos do final da década de 1990. A série acabou se transformando em The Authority e as 12 edições de Ellis e Hitch influenciaram vários títulos durante toda a década seguinte.
Com a saída de Ellis e Hitch, entraram Mark Millar e Frank Quitely, em junho de 2000, e o título passou a sofrer vários problemas, incluindo a censura que culminou na saída do desenhista da revista.
Diversos artistas (e um escritor) se revezaram para completar o arco. Arthur Adams, que deveria ter fechado a história iniciada por Quitely, também se afastou depois de duas edições por causa de alterações feitas pelos editores em sua arte.
Millar e Hitch se reuniram para redefinir parte do Universo Marvel nesta década com Os Supremos, lançado em março de 2002. The Ultimates (o nome original da série) é um título campeão de vendas, que, apesar dos atrasos, influenciou não apenas outras revistas da "Casa das Ideias", mas até algumas produções de cinema que adaptavam heróis da editora.
Uma lista séria com "o melhor da década" poderia incluir Os Supremos ou The Authority. Existe mérito para isso, mas não as duas. É redundante. Principalmente quando o rol só possui dez itens.
Voltando a Warren Ellis, o escritor, juntamente com John Cassaday, criou uma das mais divertidas releituras da cultura pop sob a ótica dos super-heróis em Planetary, que surgiu na Wildstorm em 1999 e, assim como The Authority e Os Supremos, sofreu diversos atrasos nos Estados Unidos.
A série foi interrompida entre 2001 e 2003, voltou a ser publicada e só terminou em 2009. Foi preciso uma década para que tivesse suas 27 edições lançadas.
Aqui também é possível apontar uma ausência enorme de temática similar a Planetary: A Liga Extraordinária (The League of Extraordinary Gentlemen), de Alan Moore e Kevin O'Neill. São 14 edições (contando as individuais das minisséries) que revisitam a literatura vitoriana e transforma seus personagens (e os dos pulps do início do século seguinte) em action heroes na virada do século 19 para o 20.
Escolher entre as duas é uma tarefa difícil e certamente mais orientadapelo gosto do que pelo senso critico.
Invencível, de Robert Kirkman e Cory Walker foi publicado pela Image Comics em janeiro de 2003 (embora o personagem Mark Grayson tenha surgido em Tech Jacket # 1, em novembro de 2002). É outra releitura - mas do gênero super-herói - e um dos títulos mais interessantes dos últimos anos nesse nicho.
Individualmente, essas quatros séries são muito expressivas e de bastante sucesso, mas juntas representam 40% de uma lista que pretende indicar as dez melhores HQs da década. E esse não é o caso.
Outra coisa que fica clara é que quase todas as histórias da lista foram publicadas em selos especiais ou editoras independentes: Vertigo (Y - O Último Homem e 100 Balas), Top Shelf (Retalhos), Archaia Studios Press (Os Pequenos Guardiões), Wildstorm (Planetary, The Authority), Image Comics (Invencível e Os Mortos-Vivos). Os Supremos embora seja da Marvel, saiu pelo selo Ultimates (Marvel Millennium, no Brasil) e All Star Superman, foi publicado pela DC.
All Star Superman, de Grant Morrison e Frank Quitely, é uma série independente, sem vínculos com o resto da cronologia e com as outras revistas do Super-Homem. É o único título dessa lista que saiu pela linha principal de uma das duas grandes editoras estadunidenses.
Morrison e Quitely sintetizaram a Era de Prata do Superman em 12 edições, mostrando que o mais clássico de todos os super-heróis ainda pode ser relevante. O resultado foi uma das melhores fases que o personagem teve desde sua criação, em 1938.
Outra opção explorando este mesmo gênero é o titulo vencedor do Eisner de 2005, DC - A Nova Fronteira (DC: The New Frontier), de Darwyn Cooke.
Y - O Último Homem, de Brian K. Vaughn e Pia Guerra (e outros desenhistas) é uma série de 60 edições publicada entre 2002 e 2008, pela Vertigo (que, para quem não sabe, é um selo da DC Comics). É um trabalho exemplar.
Embora Y - O Último Homem seja uma das boas séries desta década, é possível achar opções, pois outros títulos importantes foram esquecidos como, por exemplo, Promethea.
Promethea é uma série de Alan Moore (junto com J. H. Williams III), lançada pelo selo ABC, da Wildstorm, que poderia entrar com facilidade numa listagem das melhores HQs dos últimos dez anos. Mas ficou de fora da "lista da Time".
Desde a década de 1980, Alan Moore vem escrevendo HQs marcantes e muitas vezes polêmicas, que mostram a importância do autor até hoje. A lista é longa: Monstro do Pântano, V de Vingança, Watchmen, Miracleman, Do Inferno, Tom Strong, Promethea, Top 10, Liga Extraordinária e Lost Girls . O autor publicou várias HQs importantes nesta década. Ao menos uma delas merecia estar na tal lista.
Os Pequenos Guardiões (Mouse Guard), de David Petersen, é outra HQ que individualmente apresenta um pedigree impressionante: boa qualidade de texto e arte e vencedora de dois prêmios Eisner em 2008.
Mas a inclusão desta série numa lista das melhores obras da década vai gerar a pergunta "não havia nada mais importante?".
Owly, de Andy Runton, por exemplo é um título interessante que pode ser sugerido como alternativa. Ganhou cinco prêmios entre 2004 e 2006 (dois Ignatz, um Harvey, um Eisner e o Howard E. Day Prize). É um trabalho excepcional, dedicado ao público infantil, que se destaca pela ausência de texto. Os balões de diálogos da história fazem uso das imagens para se comunicar com os leitores.
Um nome esquecido na "lista da Time" é o de Chris Ware, que, só nesta década, ganhou cinco prêmios Eisner. Independentemente desse e de outros triunfos, Ware deveria constar de qualquer rol, pois ele é um dos poucos artistas que realmente está explorando os limites dos quadrinhos, experimentando com a diagramação e o design criando páginas de complexidade poucas vezes vistas.
É de autoria de Ware o livro Jimmy Corrigan (recém-lançado no Brasil pela Quadrinhos na Cia.), vencedor do Eisner, do Harvey, de Angoulême (entre vários outros) e aclamado pela revista New Yorker como a primeira obra-prima formal dos quadrinhos. Ware e seu trabalho foram esnobados ou esquecidos.
100 Balas é outra série que marcou época. Só o fato de ser um título policial que surgiu na Vertigo (em 1999), quando o selo só se concentrava em horror, mistério e assuntos afins já faz dele um marco. Mas, no decorrer de 100 edições, Brian Azzarello e Eduardo Risso deram um show de história em quadrinhos, com enredos envolventes, personagens marcantes e uma arte simplesmente brilhante.
Embora não tenha sido a precursora do retorno das HQs policiais, o sucesso de 100 Balas abriu caminho para várias outras obras do gênero, inclusive a excelente Criminal, de Ed Brubaker.
Quem prefere uma obra mais sintética, poderia escolher a excelente The Hunter, de Darwyn Cooke, HQ policial que adapta o livro de Richard Stark.
Dentro do espaço rarefeito das HQs policiais desta década, que inclui um punhado de bons títulos, 100 Balas se destaca não apenas pela longevidade, mas pela constância da qualidade.
Os Mortos-Vivos é um dos trabalhos mais notáveis de Robert Kirkman. A série foi lançada discretamente em 2003 e, aos poucos, foi ganhando público e ressuscitou praticamente sozinha o gênero dos zumbis - vide Marvel Zombies. E isso não apenas nos quadrinhos, mas também nos cinemas e na literatura - sem esta HQ, não teríamos Pride and Prejudice and Zombies, de Seth Grahame-Smith.
Felizmente para Kirkman (e para os leitores), apesar da overdose de zumbis que atualmente assola as mais variadas áreas da cultura, Os Morto-Vivos continua sendo uma das melhores obras do gênero.
Retalhos, de Craig Thompson, pertence à categoria das HQs autobiográficas. É uma obra de grandes méritos (venceu o Eisner, o Ignatz, o Harvey e o prêmio da Associação dos Críticos de Quadrinhos da França). O livro foi uma das unanimidades dentre os "Melhores do mês" do Blog do Universo HQ, em 2009.
Mas a lista de trabalhos biográficos independentes desta década é tão grande quanto o volume de prêmios que eles receberam. Dependendo do gosto do autor da lista, poderiam estar inclusas obras como O Chinês Americano (American Born Chinese), de Gene Luen Young (a primeira HQ a receber o prêmio Michael L. Printz); Epiléptico, de David B; Umbigo sem Fundo, de Dash Shaw; algum dos livros de Guy Delisle, como Pyongyang; Palestina ou Área de Segurança - Gorazde, ambos de Joe Sacco; ou até o recente Asterios Polyp, de David Mazzucchelli.
Uma década é um período grande de tempo. E selecionar o melhor da produção de quadrinhos, limitando-se a apenas dez itens não é uma tarefa pequena. Seria necessária uma lista mais criteriosa e abrangente.
Qualquer lista desagradará a alguns leitores. Afinal, qualquer que seja a escolha, sempre haverá algo de fora. Mas é possível criar uma listagem abrangente, limitando a polêmica em torno de alguns itens.
O que não dá para aceitar é uma lista criada supostamente a partir de uma "longa pesquisa" e conversa com outros leitores, que se limite a um pequeno nicho dos quadrinhos estadunidenses, com uma ou duas exceções independentes.
Essa tal lista, vale repetir, é pífia e não representa uma década de histórias em quadrinhos, mas sim, no máximo, o gosto de seu autor.
A historia em quadrinhos, como mídia, como cultura, teve uma década muito maior e mais importante do que as escolhas de apenas um país.
Sérgio Codespoti acha que, como o presidente Barack Obama está tentando reimaginar o papel dos Estados Unidos no contexto mundial, estava na hora de certos críticos abrirem os olhos e descobrirem que o planeta se estende além das fronteiras norte-americanas. Sim, existe muita coisa boa sendo produzida por aí.