Idéias Comuns
Há idéias flutuando por aí.
Os matemáticos fractais chamariam-nas de "padrões"; os estudantes de mitologia, antropologia e outras disciplinas que estudem o comportamento humano, de "arquétipos"; para Grant Morrison elas são "memes" (idéias contagiosas); para Alan Moore é o "ideaspace" (um tipo de campo morfogenético que as mentes de artistas e cientistas, enfim, de criadores, alcançam e compartilham), conceito similar ao do etnobotanista Terrence Mackenna, que o chamou de "inteligência coletiva".
Boas ou ruins, as idéias estão em toda parte. O único requisito para percebê-las é saber olhar. Existe essa coisa chamada Internet em que as pessoas entram e se perdem durante horas. O que isso significa? Idéias estão em trânsito, para o bem e/ou para o mal.
Antes disso, existia um outro método de propagação de idéias muito utilizado. Não os livros, que são uma invenção mais recente do homem. Falo do velho bate-papo. As pessoas conversavam, concordavam e discordavam. E isso era bom. Não que esse método de interação e troca de idéias tenha sido descartado, mas sabemos como é o mundo em que vivemos, cheio de "políticas de correção". Conversando com um amigo, ele me lançou essa coisa engraçada: em contrapartida à energia cósmica (não a do Surfista Prateado), ele "criou" a energia DAMIÂNICA.
Assim, enquanto a primeira ajuda o indivíduo a sintonizar-se com o todo, a harmonizar a vida e partir para pastos mais verdes; a segunda faz com que ele interiorize tudo o que há de negativo, (des) energizando a si mesmo, envenenando seu sistema com preocupações e tirando-o da sintonia do mundo e das outras pessoas, lançando-o numa espiral de auto-obsessão que o levará ao caminho da autodestruição.
A primeira vez que me falou disso quase rolei de tanto rir. E é tão simples! Absurdamente simples. Parece algo saído do livro A Lei de Murphy ("Tudo o que pode dar errado dará errado").
Quero falar das conseqüências da energia damiânica nas histórias em quadrinhos com dois (bons) exemplos para ilustrar.
1. Ruínas
Warren Ellis e os Nielsen são os responsáveis pela história que traz desconforto para o marvelmaníaco compulsivo. O plot é elementar: Phil Sheldon, já conhecido por ter sido o foco narrativo de Marvels (de Kurt Busiek e Alex Ross, lançado no Brasil pela Editora Abril), volta à carga tentando descobrir, desta vez, o que deu errado, por que ele vive em um mundo em (pausa dramática desnecessária) Ruínas.
Sheldon segue pistas que o levam a personagens como Mar-Vell, porta-voz da raça Kree, cujos sobreviventes são mantidos presos num campo de concentração radioativo. Outros exemplos são similares: Motoqueiro Fantasma faz parte de um freak show e incendeia a própria cabeça de tempos em tempos para fazer seu número. O destino do próprio Sheldon é tão bizarro quanto o das ruínas humanas (ou super-humanas) que ele encontra. Há, é claro, uma citação explícita à Lei de Murphy na história. A energia damiânica pulula por todas as páginas. O título foi publicado originalmente na década de 1990 e saiu no Brasil pela Mythos Editora. Ele vinha sob o selo Marvel Alterniverse, o mesmo que publicou O Justiceiro Massacra o Universo Marvel (Garth Ennis e Doug Braithwaite, lançado aqui pela Pandora Books).
2. Hell Eternal - Inferno em Vida (lançado no Brasil pela Brainstore Editora).
Jamie Delano e Sean Phillips, conhecidos por sua parceria em Hellblazer e por muitos outros trabalhos individuais dignos de nota (Outlaw Nation, New Statesmen ou até mesmo WildC.A.T.s) entregam uma das HQs mais duras e realistas dos últimos tempos.
Delano, um dos grandes roteiristas ingleses de sua geração, poderoso estilista e ainda assim subestimado pelos leitores de HQs, traz à vida a história de um amor homossexual entre duas garotas, acrescentando cores neonazistas a toda a trama com a chegada de um terceiro elemento, um jovem obcecado com a "filosofia" ariana que traga as amigas num redemoinho de loucura, armas e morte. É o ultimate-ménage-a-trois que não deu certo.
Mais uma vez, energia damiânica e a lei de Murphy permeando a trama. Agora que já temos exemplos, pense bem: o que aconteceria com essas histórias se não fossem esses revertérios?
É uma questão estrutural simples, que se repete nas histórias em quadrinhos ou em qualquer filme hollywoodiano:
- Há uma situação inicial simples e calma;
- Um nó narrativo (ou o problema que os protagonistas precisam resolver);
- O desenvolvimento (a resolução do problema, o desatar do nó);
- E a conclusão.
O que faz essas histórias diferentes?
Elas trazem um final que não é feliz, depois de várias oportunidades perdidas para que os problemas sejam resolvidos. É a energia damiânica em ação. Isso tudo me faz lembrar de uma das primeiras colunas (Master of the Obvious) de Steven D. Grant que li. Nela, o autor descrevia uma conversa de bar que teve com Dennis O'Neil, que dizia: "Quando não tenho idéias para criar uma história interessante, uso a velha fórmula: duas lutas, uma perseguição e um mistério resolvido". Quer coisa mais simples? Quer coisa mais óbvia?
Leia os quadrinhos de hoje em dia, particularmente os publicados pelas GRANDES (isto é uma ironia, ok?) editoras. É a mesmice de sempre, a fórmula de O'Neil utilizada e reutilizada à exaustão. E sem a energia damiânica servindo como desculpa.
Abs Moraes, é um leitor contumaz de quadrinhos e pode enumerar dezenas de autores do mercado que estão "infestados" de energia damiânica!
P.S.: Entropya # 0 está pronto, trazendo os suspeitos de sempre numa coleção estranha de histórias com tema único: o carnaval. O zine Réptil, quadrinhos de hemoglobina (editado por mim e Antonio Éder) está prestes a alcançar sua terceira edição e a iniciar a serialização da história Prefixo: Super. Para adquirir qualquer uma das publicações, entre em contato.