"Minhas mulheres"... Não, na verdade, as dele
Falar dos quadrinhos de R. Crumb sem falar dele mesmo, em trabalhos pessoais como Minhas Mulheres, por exemplo, é praticamente impossível. Seria como tentar falar dos filmes de Woody Allen sem falar de sua vida, ou tratar da protoliteratura de Charles Bukowsky sem dar a mínima para a sua biografia.
Por quê?
Todos eles registram suas neuras nas obras que produzem, tornando tudo muito difícil para alguém que não acha, como eu, que a crítica, a apreciação de um trabalho artístico, deve ser feita tomando como base os fatos da vida de seu autor; e não seu conhecimento formal, sua experiência enquanto, digamos, artista.
Meio confuso? Mas... Segundo Aristóteles, Literatura (e Arte, por extensão) é mimesis, imitação da vida. O que os artistas em geral, e os escritores em particular, fazem, então, é escolher, separar, colher momentos significantes de existências insignificantes, verdades factuais, enfim, e transformá-los em verdades humanas gerais que podem ser lidas, admiradas por qualquer um com um mínimo de discernimento.
A transformação de fato em ficção tem um êxito relativo, uma vez que, além do filtro do artista (o chamado élan francês), há a forma de arte escolhida e suas limitações, ou falta delas, dependendo, obviamente, da habilidade do sujeito-autor em manipular suas ferramentas.
O que cria um pequeno paradoxo. Para mim, é claro. Já que quero escrever sobre um trabalho de Crumb, e esse trabalho específico é autobiográfico, e me recuso a escrever sobre como a experiência de vida do autor influencia sua obra etc. Exceto, é lógico, que tenho o aval de Aristóteles para fazer isso... esse cara deve ter sido inteligente...
Assim...
A comparação feita no primeiro parágrafo procede porque quadrinhista, cineasta e escritor trabalham em registros muito parecidos e, ao mesmo tempo, extremamente pessoais. Crumb consegue, não com a mesma efetividade, tanto passear pelas reações neuróticas de Allen (em Titio Bob e sua crise dos quarenta) quanto penetrar (perdoe o trocadilho) no hardcore-cool-masturbatório de Bukowsky (em Se eu fosse um Rei, Minhas mulheres e Meus problemas com as mulheres) e essa falta de efetividade acontece porque Crumb não é escritor, como seus parceiros de texto. Ele é um cartunista.
O que é um cartunista? Alguém que navega entre formas numa forma que não é derivativa ou bastarda, como querem alguns, mas nova, experimental e ilimitada, ainda sem uma definição (pelo menos não uma que seja clara) dura de sua "gramática", apesar de tentativas nobres de pessoas como Will Eisner (Quadrinhos e Arte Seqüencial e Graphic Storytelling) e Scott McCloud (Understanding Comics e Reinventing Comics).
As histórias em quadrinhos são uma arte sinérgica, que envolve, antes de qualquer coisa, a compreensão de um todo, como Crumb faz; e não a dissecação desse todo em pequenas partes que podem ser lidas, esmiuçadas, compreendidas e digeridas.
Há, é claro, escritores que compreendem esse todo e conduzem a narrativa visualmente, como Alan Moore, por exemplo, mas ele também é desenhista (The Magic Cat). Outros que, quando acompanhados por grandes artistas, aparentemente entendem a arte, como Neil Gaiman, excelente libelista para os rompantes gráficos de Dave McKean. Não vou adiante por falta de espaço e tempo.
Voltemos a Crumb.
Do álbum todo, a história que salta aos olhos é Footsy, segundo o autor "A verdadeira história do que me transformou em um adolescente sexualmente pervertido". É a peça que tem a diagramação mais ousada, mesmo estando presa, ainda, numa grade de seis painéis e, talvez por isso, mais orgânica, com texto e desenhos provindo de um mesmo lugar, casando perfeitamente.
Os outros "contos gráficos" têm uma diagramação reminiscente das HQs da EC - Entertainment Comics, geralmente caindo na grade dura de seis painéis ou exacerbando e indo até doze quadros. Esta é, também, a história em que a arte é mais regular, na qual Crumb deixa de lado a linha mais clara e detalhada de seu trabalho tipicamente, hummm, "sujo" e avança em direção ao uso do preto mais chapado, quase abandonando as hachuras.
Não a muito que se acrescentar, a não ser no tocante à narrativa que, como já foi dito, trata da adolescência de R. Crumb. O trabalho tem um toque de nostalgia e inocência, e conta como se desenvolveu seu fetiche por pés, pernas e esteatopigia femininos. Favor não confundir com a "podolatria" do tupiniquim Glauco Matoso.
Mais uma vez há um referencial que gostaria de ressaltar: Footsy me fez lembrar de Misto Quente, de Bukowsky que, não coincidentemente, trata da infância e adolescência do escritor-não-tão-beatnik como dizem por aí. E, mais uma: Crumb ilustrou alguns/vários textos do Velho Safado, fato que deve ajudar a esclarecer tudo...
O downside do álbum fica por conta das histórias em co-autoria com sua mulher, Aline Kominsky-Crumb, cujos traços infantis e idéias datadas tornam o todo desagradável aos olhos e redundam num grande nada, num vazio quase absoluto.
Minhas Mulheres foi editado no Brasil pela L&PM Editora, em 1990.
Se você quer saber mais sobre Robert Crumb vá para http://www.robertcrumb.com.
Abs Moraes, além de apreciador de bons quadrinhos, é roteirista. Seu trabalho pode ser conferido no álbum O Gralha, lançado pela Via Lettera, em histórias desenhadas por seus amigos Antonio Éder, José Aguiar e Jairo Rodrigues.Fica a dica para os que querem conferir uma boa HQ nacional.