Morreu Trina Robbins, ícone dos quadrinhos mundiais
Autora norte-americana batalhou pela inserção das mulheres no mercado de quadrinhos
A morte de Trina Robbins, anunciada na manhã do dia 10 de abril por sua filha, Casey Robbins, deixa o mundo dos quadrinhos menos colorido. Com 85 anos, ela havia sido internada em decorrência de um AVC em fevereiro deste ano e, desde então, não se teve mais notícias de seu estado.
A vida de uma gigante como ela não cabe em poucas linhas. E sei disso porque já falei muito sobre Trina, em diversas ocasiões. E todo mundo que se interessa um pouco sobre quadrinhos, sabe da sua importância como a primeira mulher a desenhar a Mulher-Maravilha, mais de 40 anos depois que a personagem foi lançada (a autora se dizia grata a George Pérez por ter insistido que mulheres desenhassem a personagem, ao mesmo tempo que expressava sua insatisfação com vários desenhistas que também a retrataram).
O que talvez poucas pessoas saibam é de suas motivações, da sua doçura, mesmo quando falava sobre coisas que a tiravam do sério e do quão obstinada ela era.
Trina foi uma das principais responsáveis pelo interesse de muitas mulheres em fazer quadrinhos em vários lugares do mundo. Também conhecida por ter desenhado a primeira HQ com uma personagem lésbica dos Estados Unidos (Sandy Comes Out, 1972), seu ativismo político em prol de mulheres e pessoas LGBTQIAPN+ a levou a diversos protestos e eventos nos quais ela era bem vocal até recentemente.
Quando esteve no Brasil, em agosto de 2015, fez questão de marcar um encontro com autoras brasileiras para conhecer seus trabalhos e ouvir suas queixas. Mulheres de vários estados vieram a São Paulo na expectativa de encontrar com aquela que era uma referência não só para os quadrinhos, mas para a pesquisa sobre a produção feminina de quadrinhos nos EUA, à qual ela se dedicava há mais de 30 anos.
Durante o encontro, que também acabou definindo o rumo da minha própria pesquisa acadêmica, Trina contou que se mudou de Nova York para São Francisco no final dos anos 1960, devido à falta de oportunidades paras as quadrinhistas por lá, enquanto as HQs underground estavam em ebulição do outro lado do país.
Não demorou muito para que ela se desse conta que, mesmo em São Francisco, havia uma espécie de “clube do Bolinha” que não possibilitava o amplo acesso das mulheres às antologias que estavam sendo lançadas na época. Então, Trina se associou a outras artistas que se reuniam frequentemente para lançar coletâneas históricas, como It Ain’t me Babe (1970) e Wimmen’s Comix (1972), ambas com viés explicitamente feminista e com histórias que retratavam temas ainda considerados tabus para a época, como sexo, sexualidade, direitos reprodutivos das mulheres.
E, em 1994, fundou a Friends of Lulu (Amigas da Luluzinha) com outras quadrinhistas, uma associação sem fins lucrativos que promovia a leitura de quadrinhos produzidos por mulheres e que durou até 2011.
Para mim, Trina era um pouco mais do que isso. Autora da minha HQ favorita quando criança, foi por meio das histórias da Misty que peguei gosto pelo desenho e sonhava em ser estilista.
As horas que eu passava no período integral da escola voavam quando eu desenhava as roupas que enviaria à editora, na esperança de que a personagem as usasse. Misty era a sobrinha da Milli, a modelo, HQ dos anos 1950 a 1970 que fazia sucesso entre as meninas da época. Por isso que, apesar de Misty ser uma jovem muito independente, sua relação com a moda foi estabelecida por meio da possibilidade de as leitoras enviarem desenhos de roupas para que ela pudesse usar.
Quando alguém tinha seu desenho selecionado, os créditos apareciam nos quadrinhos. Obviamente, o meu nunca foi, pois se tratava de uma HQ norte-americana e nossos desenhos não eram enviados para os EUA.
No entanto, apesar de ter durado apenas seis edições, o sucesso no Brasil foi tanto, que as edições de 7 a 9 receberam os traços de Watson Portela e roteiro de Lúcia Nóbrega. A personagem ganhou decotes e se tornou mais sexualizada que sua versão americana. Ao vê-las, Trina também comentou que em uma das edições Misty aparece em sua cidade natal, que fica no Estado de Nova York, com palmeiras no cenário. “O estado de Nova York é muito frio no inverno. Não há palmeiras!”
Então, a partir de sua vinda em 2015, nos aproximamos e conversamos por e-mail algumas vezes. Realizei um sonho de criança ao conhecer um grande ídolo e saber de seus gostos pessoais, como seu amor por gatos e pela costura de roupas vintage. Ela era incrível.
Ainda que ter desenhado a Vampirella e a Mulher-Maravilha sejam pontos altos de sua carreira como quadrinhista, a sua pesquisa sobre a produção feminina de quadrinhos nos EUA possibilitou que a percepção sobre a presença das mulheres nesse mercado mudasse.
Trina sabia que as mulheres produziam quadrinhos desde sempre. Ainda assim, sentia uma enorme dificuldade de encontrar informações sobre elas. Então, quando tornou público seu interesse sobre o assunto, pessoas de vários lugares dos EUA começaram a lhe enviar recortes de jornais e quadrinhos de mulheres produzidos em décadas anteriores, o que lhe rendeu publicações históricas como Pretty in Ink (2013) e Great Women Cartoonists (2001).
Há muito mais que pode ser dito sobre Trina Robbins no intuito de honrar sua trajetória. Por isso, deixo aqui um trecho do artigo que apresentei nas Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos de 2015 sobre a Misty, seguido de uma entrevista que ela me concedeu na época.
Mesmo não falando português e com uma agenda lotada, Trina fez questão de assistir à minha comunicação e não tenho palavras para descrever o quanto sou grata pelo privilégio de tê-la conhecido. Descanse em paz, querida.
Conheça Trina Robbins
Nos anos 1960, Trina Robbins morava em Los Angeles, mudando-se para Nova York posteriormente. Influenciada pelas tendências das HQs da Marvel, cujos personagens passaram a ter maior aprofundamento psicológico, tentou desenhar algumas histórias de super-heróis, mas percebeu que não era seu estilo.
Naquela época, Trina desenhava roupas para roqueiros e suas namoradas, mas seu interesse pelas HQs não parava de crescer, principalmente depois do jornal independente The East Village Other começar a publicar tiras de diversos artistas que incorporavam vários ideais hippies.
Quando se mudou para Nova York, ainda nos anos 1960, ela abriu uma loja de roupas chamada Broccoli e conseguiu um espaço no The East Village Other para publicar uma história em quadrinhos que era basicamente uma propaganda de seu negócio. Contudo, por ser extremamente abstrata, as pessoas achavam que se tratava simplesmente de uma HQ.
Com o crescimento dos quadrinhos underground, principalmente em São Francisco, Trina resolveu se mudar novamente para a Califórnia. Em 1970, ela descobriu que a cidade era o centro do universo de HQs independentes e autorais para os homens, não para as mulheres. Trina havia recentemente se tornado feminista e, além dela, poucas mulheres desenhavam naquela cidade até então.
Trina acabou conhecendo as editoras da primeiro jornal feminista de São Francisco, o It Ain’t me, Babe, e em pouco tempo estaria fazendo ilustrações para as capas, contracapas e páginas internas. Com a coprodução de Willy Mendes, conseguiu enfim lançar a primeira antologia de quadrinhos exclusivamente feminina, que teve o mesmo nome do periódico.
Em 1971, Trina publicou sua primeira HQ solo, Girl Fight, e se juntou a duas artistas para produzir o livro All-Girl Thrills, pela Print Mint. Além disso, em decorrência do sucesso de It Ain’t me, Babe, a Last Gasp publicou mais duas edições com dez mil cópias cada.
A visibilidade alcançada com a antologia fez com que uma de suas editoras, Pat Moodian, chamasse artistas que pudessem contribuir em outro projeto. Assim, em 1972, com Trina Robbins e outras nove mulheres, ela deu início à primeira série de publicações exclusivamente produzida por mulheres, a Wimmen’s Comix, que circulou até 1992.
Na primeira edição de Wimmen’s Comix, Trina contribuiu com a história Sandy Comes Out (Sandy sai do armário), que se baseava na vida de uma amiga lésbica.
No entanto, a artista também lésbica e ativista feminista Mary Wings se sentiu ofendida, acreditando que uma mulher heterossexual produzir uma história homossexual seria ultrajante.
Por isso, em 1973, Mary produziu a primeira HQ sobre lesbianismo, a Come Out Comix. Trina conta que posteriormente elas acabaram se tornando amigas e rindo do episódio. De qualquer forma, por seu ativismo a favor do movimento LBTGQIAPN+, Trina foi convidada para uma das edições da conferência Queer & Comics em Nova York, cujo objetivo é ampliar a visibilidade e discutir as obras produzidas por e para esta comunidade.
No final dos anos 1970, ser ativista dos direitos da comunidade homossexual e feminista começou a ser tornar mais complicado, pois o único lugar onde era possível encontrar quadrinhos underground era nas Head Shops. Entretanto, com o enfraquecimento da cultura hippie, essas lojas foram se tornando mais escassas.
Na mesma época, as bancas de jornal dedicavam cada vez menos espaço para os quadrinhos, que passaram a ser vendidos quase exclusivamente nas lojas especializadas, cujos donos eram homens sem nenhum interesse na produção feminina.
Sem ter onde adquirir quadrinhos, as mulheres também passaram a comprar menos e, consequentemente, a opção que restou para as artistas foi recorrer aos jornais alternativos, que ainda publicavam suas tiras.
Em uma tentativa de fazer com que o mercado voltasse a publicar quadrinhos para mulheres, Trina sugeriu ao editor da Marvel, Jim Shooter, que publicasse Misty, sobrinha de Millie, The Model (Lili, a garota modelo), e que havia sido um grande sucesso nos anos 1950, que durou até a década de 1970. No entanto, devido aos motivos já mencionados, Misty não durou mais que seis edições nos Estados Unidos e nove no Brasil.
Trina chegou a desenhar a Mulher-Maravilha e a roupa da Vampirella, mas nas últimas décadas passou a se dedicar majoritariamente às pesquisas de HQs, que lhe renderam mais de dez livros sobre o assunto.
Com a palavra, Trina Robbins
A entrevista a seguir foi publicada originalmente no livro Mulheres e Quadrinhos, da Editora Skript, em dezembro de 2019.
Por que quadrinhos? Quero dizer, você lembra quando percebeu que seu trabalho poderia ajudar outras mulheres a lutarem por seu direito de fazer quadrinhos e terem seu talento reconhecido da mesma maneira que os homens têm?
Detesto desapontá-la, mas eu não tinha esses ideais nobres. Havia apenas uma outra mulher desenhando quadrinhos em São Francisco em 1970 e 1971; e eu só queria que pudéssemos fazer quadrinhos e ter nosso talento reconhecido.
Como os ideais da época influenciaram seu trabalho como artista? Nos anos 1970, por exemplo, como era a popularidade do feminismo e como isso se reflete na sua obra?
Quem me dera eu pudesse dizer que todas as mulheres inteligentes fossem feministas nos anos 1970! Mas muitas de nós não eram. Entretanto, obviamente, eu e outras mulheres com quem trabalhei eram feministas.
No início dos anos 1970, meu trabalho refletia muita raiva porque, honestamente, eu estava muito brava com a situação, não apenas em relação pelas mulheres que queriam fazer quadrinhos, mas por todas as mulheres.
E sobre a Misty? De quem foi a ideia e qual foi a razão que levou a Marvel a querer lançar uma HQ sobre a sobrinha da Millie?
Misty foi ideia minha. Eu acreditava que, fazendo que ela fosse sobrinha da Millie, teria mais chances de vê-la publicada pela Marvel. E acertei. No fim das contas, Jim Shooter, que era o editor na época, tinha começado sua carreira escrevendo Millie. Então, ele tinha afeição pela nova personagem.
Na época, quais eram os principais ideais femininos? Com o que as mulheres sonhavam?
O que as mulheres realmente querem e sonham? Freud fez esta pergunta e a resposta é: sapatos! (risos). Falando sério, acredito que as mulheres querem simplesmente ser tratadas como iguais, o que inclui pagamentos iguais, claro… E sapatos!
Ouvi dizer que a California é mais liberal, comparando com outros estados americanos. Você acredita que as mulheres poderiam ter ideais diferentes de um estado para outro? A Misty fez mais sucesso em algum estado em particular?
California e Nova York são provavelmente os estados mais liberais dos Estados Unidos, mas meninas de todo o país liam Misty e me mandavam cartas.
Por que você acha que Misty não durou mais?
Não preciso nem pensar. Eu sei por que não durou mais! Nos anos 1980, o único lugar para comprar HQ nos EUA era nas lojas de quadrinhos, que pertenciam ou eram gerenciadas por homens que atendiam meninos e jovens oferecendo prioritariamente quadrinhos mainstream de super-heróis.
A cultura predominante era que meninas não liam quadrinhos, mas obviamente se uma loja está lotada de meninos de 12 anos que fedem a meias velhas e cujos quadrinhos à venda mostram grandes caras musculosos se batendo, a maioria das garotas nem entraria em uma loja dessas.
O resultado é que as lojas ou não pediam nada para meninas ou pediam muito pouco e, quando as HQs acabavam, elas não solicitavam mais. Então, se você não encontrava Misty nas lojas, obviamente não podia comprá-la.
Por isso, depois de seis edições, ela foi cancelada. Misty não foi a única HQ que teve este problema: a DC distribuía Angel Love, da Barbara Slate, que também não deslanchou devido à falta de distribuição.
Qual foi a maior dificuldade de desenhar e escrever Misty?
Eu nunca tive dificuldade alguma com a Misty. Era um prazer fazê-la.
Já que nos anos 1980 o mercado era direcionado principalmente aos homens, você acredita que Misty teve um papel importante no que diz respeito à formação de um público leitor feminino de quadrinhos? Que outros quadrinhos tinham o mesmo perfil?
Como mencionei, Angel Love era um deles. A Renegade Press estava publicando Vickie Valentine e a Eclipse lançava California Girls. Nenhuma delas foi bem-sucedida, e todas pelo mesmo motivo.
Um rapaz que era fã de California Girls enviou alguns desenhos. Um deles, eu cheguei a usar. Ele ficou muito empolgado, mas a loja de sua cidade não vendia a revista. Então, ele acabou ligando para a loja para falar com o gerente. E ficou impressionado que nem telefonando a loja iria vender a HQ. Eu mesma tive que enviar uma cópia para ele.
No Brasil, a série foi mais popular que nos Estados Unidos (apesar de não dispor dos números de venda) e teve uma continuação de mais três exemplares. Como funcionou isso? Você sabia das alterações no roteiro? Chegou a trabalhar com desenhistas brasileiros?
Nem fiquei sabendo que ela teve continuação no Brasil (e na Inglaterra também!) até alguém me mandar um exemplar. A Marvel nunca me contou e nunca me pagou. Eu não entendo português (desculpa!), então não saberia dizer como eram os roteiros, mas me parece que o novo artista desenhou Misty e suas amigas de uma forma muito sexualizada, com vestidos mais curtos e mais decotes.
O erro mais engraçado foi terem desenhado a cidade natal dela com palmeiras! Misty vivia no estado de Nova York, que é bem frio no inverno, e sem palmeiras! Risos