O outro Sandman
Como você certamente já percebeu, Sandman tem sido o personagem de quadrinhos que recebeu maior destaque este ano, aqui no Brasil. Seja pelas visitas de Neil Gaiman ao Rio de Janeiro e a São Paulo, ou pelo lançamento da luxuosa edição Caçadores de Sonhos e de O Livro dos Sonhos, ambos da Editora Conrad, o imponente Lorde Morpheus esteve presente em praticamente todos cadernos culturais de nossos periódicos. Destaque merecido, não há dúvidas. A beleza e a densidade de suas histórias proporcionaram não apenas uma das melhores séries de HQs de todos os tempos, como também uma obra literária que conquistou o público não adepto da arte seqüencial.
Embora seja um personagem menos badalado, foi meu encantamento com o outro Sandman que resolvi expor desta vez. Aquela versão mais antiga, criada pela DC Comics durante a Era de Ouro dos quadrinhos. O combatente do crime com máscara anti-gás e uma arma que dispara gás sonífero, que foi membro da Sociedade da Justiça da América e teve uma série mensal na linha Vertigo, até bem poucos anos atrás, Wesley Dodds, o Sandman original.
Patrulha do Destino e Homem-Animal foram casos de séries de super-heróis que passaram a integrar o selo Vertigo quando esta foi estabelecida oficialmente, ao lado de Hellblazer, Monstro do Pântano e do próprio Sandman, de Neil Gaiman, entre outros. Mas Wesley Dodds foi o primeiro super-herói da "velha guarda" a ter uma revista mensal criada especificamente para a linha adulta da editora.
O título Sandman Mystery Theater começou sua carreira no Brasil, em março de 1995, no primeiro número da saudosa antologia Vertigo, da Editora Abril. Formato americano, papel de luxo e 100 páginas. Nada impressionante na era das revistas Premium, mas era uma publicação diferenciada na época do formatinho, e a qualidade do material pagava o preço elevado.
Um detalhe importante é que ela trouxe também a estréia do roteirista Garth Ennis em Hellblazer, a primeira história do criador de Preacher a sair no Brasil. E foi do que mais gostei quando li a revista. O roteiro incisivo de Ennis me arrebatou de imediato e, por isso, dava menos atenção ao Sandman. Encarava-o como uma atração secundária.
Gradualmente, contudo, a série Máscara do Mistério foi subindo no meu conceito. Hoje, continuo gostando das desventuras de John Constantine narradas por Garth Ennis, mas tenho a saga do primeiro Sandman, apresentada por Matt Wagner e Guy Davis, também entre minhas preferidas.
O cenário das histórias não é dos mais comuns nos quadrinhos, a Nova York de 1938. Wesley Dodds estava no início de suas atividades heróicas, penetrando o submundo violento e degradante de uma metrópole sem igual. Sandman era, na verdade, um empresário com aspirações literárias, que herdara a fortuna do falecido pai, retornando após anos no oriente, perturbado por sonhos enigmáticos e cultivando o hábito de perseguir assassinos.
O primeiro arco de quatro capítulos, intitulado Tarântula, definiu bem o clima da série e introduziu o seu interessante elenco de apoio. Começou com o rapto e tortura de jovens e belas mulheres, e acabou revelando uma sórdida trama familiar envolvendo incesto e traição. Sandman chega a enfrentar os malfeitores apenas nas últimas páginas do conto, passando a maior parte do tempo agindo sorrateiramente, como detetive, investigando suspeitos e seguindo pistas. Um vigilante obstinado como Batman (mas menos neurótico), carregando a mesma aura sombria e soturna do Cavaleiro das Trevas, que não desiste até capturar o inimigo.
Seu envolvimento com a encantadora Dian Belmont, com quem futuramente se casaria, gerou um romance bem humorado, com ótimos momentos. Ela foi a personagem que melhor se desenvolveu ao longo das histórias, passando de uma mulher sem perspectiva de vida (além da diversão), a uma detetive amadora e ativista em obras beneficentes para crianças, com o grupo Caminho da Vida.
Outros coadjuvantes que não podem deixar de ser citados são o mordomo Humphries, eficiente e com certa pinta de Alfred, o promotor público Lawrence Belmont, pai de Dian, e o tenente Burke, policial capaz de métodos nada ortodoxos ao interrogar suspeitos, e que vivia "trombando" com Sandman em suas investigações.
Os dois arcos de histórias posteriores publicados pela Editora Abril, A Face, em Vertigo #3 e #4, e O Bruto, nas edições #6 e #7, contaram com os desenhistas John Watkiss e R. G. Taylor, respectivamente, perdendo um bocado da elegância do traço de Guy Davis. O texto, por sua vez, manteve o alto nível, explorando o lado podre da sociedade e da alma humana, centrado nas tongs de Chinatown e na máfia das lutas clandestinas e das drogas.
O Bruto, por exemplo, mostrou o drama de um boxeador honesto, que desejava apenas cuidar bem de sua filha pequena, mas passa a ser perseguido após denunciar um esquema de corrupção. Por força de acontecimentos além de seu controle, tornou-se um assassino. Foi marcante a cena em que encontrou sua filha ensangüentada, chorando, e ela conta, de forma ingênua, como havia acabado de ser estuprada.
A revista Vertigo da Editora Abril foi cancelada no número 12, sem mais histórias do Sandman, que passaria, ao lado de Hellblazer, para a Editora Metal Pesado. Com o nome de Sandman: Teatro (e não Máscara) do Mistério, teve publicada, em maio de 1998, a mini-série A Vamp, que teve a volta de Guy Davis como desenhista e marcou a entrada de Steven T. Seagle como co-roteirista.
Em julho do mesmo ano, foi a vez de Sandman: Teatro da Meia Noite, um crossover do Sandman Wesley Dodds com o Sandman Morpheus, cortesia de Neil Gaiman e Matt Wagner, no texto, e Teddy Kristiansen, com sua estranha e admirável arte pintada. Versava sobre a viagem de Wesley a Londres, para investigar o suicídio de um velho amigo, e envolvia os eventos da primeira parte da saga Prelúdios e Noturnos, justamente a abertura do trabalho de Neil Gaiman, em que o Mestre dos Sonhos encontrava-se capturado por um culto, durante anos.
Houve mais duas mini-séries, Escorpião e Dr. Morte, além de um especial que corresponde ao anual americano de Sandman Mystery Theater. Se você puder comprar apenas uma revista com o personagem, é esta que eu recomendo. Escrita por Wagner e Seagle, ilustrada por diversos artistas, entre os quais destaco Guy Davis, George Pratt, David Lloyd, John Bolton e até mesmo Alex Ross. O tema era um ladrão mascarado agindo no Central Park. E estava tudo lá. Wesley e Dian namorando, o dedicado mordomo fazendo de tudo para ajudar seu patrão e, por fim, Sandman concedendo esperança e alento onde poderia haver apenas punição. Afinal, nem toda história na linha Vertigo tem que ser trágica.
Nos Estados Unidos, Sandman Mystery Theater foi até o número 70, e chegou a mostrar encontros entre o Sandman e outros personagens antigos da DC Comics, como o Homem-Hora e o Falcão Negro, de Will Eisner. Já idoso, Wesley Dodds teve seu destino final nas páginas de JSA: Secret Files and Origins #1, ao confrontar o poderoso imortal Mordru, no que foi o estopim para a formação da atual Sociedade da Justiça, de James Robinson e David Goyer.
Além disso, o legado de Dodds passou a viver em Sanderson Hawkins, seu ex-sidekick Sandy, o Menino de Ouro, herdeiro de sua fortuna, líder e financiador da nova Sociedade da Justiça; e que passou 40 anos em sono profundo, sem envelhecer, devido a um experimento fora de controle que o transformara num monstro de silício.
Com o nome simplificado de Sand, Hawkins desenvolveu uma versão aprimorada da arma de gás sonífero de Wesley e agora se transforma em areia pura. Com visual no maior estilo G. I. Joe, Sand pode ser visto mensalmente em JSA.
Sandman Mystery Theater foi uma série que manteve a qualidade do início ao fim, e pode servir de exemplo para reinterpretações de heróis clássicos, em séries situadas em seus períodos históricos originais. Wesley Dodds pode não ser o Sandman mais famoso, mas é certo dizer que ele jamais será esquecido. E que, ao lado de Lorde Morpheus, zela pela tranqüilidade de nossos sonhos.
Marcus Vinicius de Medeiros estava escrevendo esse texto, quando subitamente sentiu os olhos pesados, como se alguém tivesse soprado areia em seus olhos...Foi aí que se deu conta que já eram quatro horas da manhã! Seria o Sandman? Que nada, era sono mesmo!