Os 85 anos dos quadrinhos Disney
Das tiras de jornais aos gibis, os personagens de Walt Disney se tornaram nas HQs o que seu criador esperava deles nos desenhos animados.
Tudo começou com um rato...
Essa frase, repetida como clichê para se referir ao início da carreira de Walt Disney - o que não traduz a verdade histórica, levando-se em conta que o cineasta e produtor realizou dezenas de trabalhos comerciais antes de criar o camundongo mais famoso do mundo do entretenimento e que o Coelho Osvaldo tenha precedido o outro roedor -, também pontua a gênese de uma trajetória vitoriosa e longeva de seus personagens nos quadrinhos, uma seara que nunca foi o foco do artista e muito menos mereceu sua atenção.
Há 85 anos, mais precisamente no dia 13 de janeiro de 1930, Mickey Mouse saía da tela grande para estrear nas tiras de jornais. A King Features, que desde o ano anterior assediava Disney com a proposta de transformar o rato em uma série no ainda incipiente mercado de quadrinhos, passou a publicar em diversos jornais dos Estados Unidos a aventura Lost on a Desert Island (Mickey na Ilha Misteriosa, no Brasil), cujo sucesso fez com que o personagem, em poucos meses, veiculasse diariamente em 40 periódicos de 22 países.
Walt Disney colaborou nos roteiros das primeiras sequências de tiras, desenhadas por Ub Iwerks - cocriador do camundongo - e arte-finalizadas por Win Smith. Cerca de dois meses depois, com o pedido de desligamento dos dois desenhistas e a disponibilidade de tempo cada vez menor de Disney, o in-betweenner (intercalador de cenas) do estúdio de animação, Floyd Gottfredson, assumiu a criação integral da série.
Em toda sua vida, os interesses profissionais - que jamais deixaram de ser, também, pessoais - de Disney navegaram por diversas áreas, dos desenhos animados à criação da Disneylândia, passando pela miniaturização de cidades e fabricação de trens em escala reduzida, além de outros hobbies que se confundiam com trabalho.
Os quadrinhos, no entanto, jamais exerceram o menor fascínio no artista. O que o levou a firmar contrato com a King Features foi nada mais que o interesse em tornar a marca Mickey Mouse ainda mais famosa e lucrativa.
Na época, os primeiros produtos comercializados com a imagem e o nome do personagem começavam a surgir e, juntamente com o Clube do Mickey (uma grande ideia de marketing sugerida e organizada pelo gerente do cinema Fox Dome, em Ocean Park, Califórnia), fizeram daquele rato um fenômeno popular e cultural - e até mesmo social - sem precedentes nos Estados Unidos. Um ícone que, com uma força não menos avassaladora, ganhou popularidade em diversos outros países.
"Achei positivo que uma façanha publicitária como essa, combinada com uma tira em quadrinhos (...), possa nos ajudar a transformar essa série em uma das maiores coisas que já apareceram", escreveu Disney em uma carta particular citada pelo escritor Neal Gabler no livro Walt Disney: O Triunfo da imaginação americana.
Os primeiros gibis
A primeira revista em quadrinhos Disney, no formato e estilo editorial que definem esse gênero de publicação, foi lançada em janeiro de 1931, nos Estados Unidos, pela editora David McKay.
Mickey Mouse Series era um gibi que reunia, em 62 páginas em preto e branco, as tiras originalmente publicadas nos jornais. Tinha periodicidade anual e durou quatro edições.
Alguns historiadores apontam o álbum Mickey Mouse Story Book, lançado pela mesma editora no dia 15 de novembro de 1929, como o primeiro título em quadrinhos Disney. A confusão é compreensível: apesar de ser um livro de prosa ilustrada, com adaptações das aventuras dos desenhos animados, a publicação apresentava algumas páginas com painéis sequenciais semelhantes a tiras.
Enquanto isso, na Itália, já a partir do dia 16 de abril de 1931, quando apareceu no jornal L'Illustrazione del Popolo, Mickey dava o pontapé inicial para uma saga vitoriosa das HQs Disney naquele país, que ao lado da Inglaterra está entre os primeiros a produzir histórias da turma de Patópolis fora dos Estados Unidos.
Em dezembro de 1932, o personagem estrelava o tabloide Topolino Giornale, nem sempre apresentando materiais originais ou autorizados pela Disney.
O periódico se transformou, de fato, numa revista em quadrinhos somente em abril de 1949, quando adotou o tamanho tradicional de gibi - em 2009, o formato completou 60 anos e foi comemorado com uma edição especial.
Tutti buona gente
A Itália merece um capítulo à parte nessa aventura de mais de oito décadas. O país foi e continua sendo o maior produtor de histórias em quadrinhos da Família Pato e de outros personagens dos distintos núcleos editoriais das criações de (e atribuídas a) Walt Disney.
Ainda em 1938, quando o regime fascista de Benito Mussolini proibiu a entrada de quaisquer quadrinhos norte-americanos no país e seguiu assim durante a Segunda Guerra Mundial, iniciou-se por lá uma produção própria dessas HQs.
O resultado é sentido até hoje. Os quadrinhos da turma de Patópolis estão dentre os mais consumidos na Itália, que se "apoderou" dessa galeria de personagens como se fosse sua e a tornou uma poderosa instituição editorial que se mistura com a própria origem da nona arte italiana e já se enraizou na cultura local.
Júlio Schneider, redator responsável pela tradução dos quadrinhos da Sergio Bonelli Editore publicados no Brasil pela Mythos Editora, viu isso de perto. Em outubro de 2009, ele participou da 37ª Mostra Internacional de Quadrinhistas de Rapallo, cujo tema foram os super-heróis da Disney, com destaque para o alter ego heroico do Pato Donald.
"Os patinhos me levaram à Itália para, junto a alguns dos autores das historinhas que sempre me fizeram sonhar, comemorar o aniversário do Superpato, que, criado pelos disneyanos da 'Velha Bota', foi às bancas em 1969", celebra Schneider, recordando a mostra que realizou no evento, na qual apresentou reproduções de imagens dos heróis Disney criados por artistas brasileiros - o catálogo da exposição publicou ainda um artigo do tradutor sobre o assunto.
A despeito da aversão que as HQ italianas da Disney provocam atualmente em parte dos fãs brasileiros - graças à alegada queda de qualidade e artistas sem o mesmo brilho de ícones como Romano Scarpa, Giovan Battista Carpi e Giorgio Cavazzano, para citar alguns nomes clássicos que ganharam fama mundial escrevendo e desenhando aventuras para Mickey, Pato Donald, Tio Patinhas e outros -, não é exagero afirmar que há muitos anos elas são o esteio dessa turma em todo o mundo, ao lado de Suécia, Dinamarca, Alemanha e Holanda, países que continuam produzindo e exportando esses quadrinhos.
É da Itália que tem surgido a maior parte dos novos personagens e onde os antigos e tradicionais estão fora do limbo, ainda ganhando aventuras inéditas. De lá, também são exportadas as HQs que compõem a totalidade ou a maior parte do mix de dezenas de revistas em quadrinhos Disney que ainda se sustentam em alguns poucos países.
Meu Brasil brasileiro
Quando, ainda no início dos anos 1930, as tiras em preto e branco de Mickey Mouse estrearam em O Tico-Tico, rebatizando o camundongo como Ratinho Curioso, começava a longa história dos quadrinhos Disney no Brasil.
Em 1934, as tiras seguiram para outro tabloide, o Suplemento Juvenil de Adolfo Aizen, editor que ficou conhecido como o "pai das histórias em quadrinhos no Brasil" e em alguns anos fundaria a Ebal - Editora Brasil-América.
Aizen escolheu os personagens Disney para estrelar o primeiro gibi da Ebal, lançado em 1946: Seleções Coloridas, cujo número de estreia, com 32 páginas em formato americano, trouxe o Pato Donald na capa e, no decorrer das 17 edições publicadas, apresentou diversas outras criações da mesma galeria.
Mas foi em julho de 1950, com o lançamento de O Pato Donald, pela Editora Abril, que as HQs Disney ganharam uma casa definitiva no País. Uma morada que em 2015 completará 65 anos, muitos dos quais servindo de porta de entrada de milhares de leitores no universo dos gibis ou como auxiliar nos primeiros passos do aprendizado da leitura.
São mais de seis décadas nas quais os leitores acompanharam o que de melhor foi produzido por artistas de outros países, mas em que também assistiram ao surgimento de quadrinhistas nacionais que emprestaram um sabor brasileiro a Patópolis e alcançaram um sucesso pouco - ou nunca antes - visto no mercado editorial do Brasil, empurrando o conjunto de títulos desses gibis ao patamar de milhões de exemplares vendidos por mês, uma história de ascensão, glória e queda que pode ser conferida no artigo HQs Disney no Brasil: criadores e criaturas, publicado no Universo HQ em 2004.
"Meu maior desafio, todos os dias, é manter vivo esse legado", diz Paulo Maffia, que participa da edição e pesquisa das HQs Disney publicadas atualmente pela editora.
Maffia afirma que a grandiosidade e a importância dos quadrinhos Disney transformam seu trabalho em um exercício diário de humildade. "Ainda mais quando se faz isso em um lugar como a Editora Abril, que ao longo de todo esse tempo de parceria influenciou e influencia de maneira positiva a vida de tantos leitores, por meio do trabalho de profissionais do nível de Ivan Saidenberg, Renato Canini, Euclides Miyaura, Gérson Teixeira, Julio de Andrade Filho e o grande mestre de todos nós: Primaggio Mantovi".
Júlio Schneider não dispensa o saudosismo ao tocar no assunto. "Vivi mil aventuras com o Tio Patinhas; desvendei crimes com o Mickey e voei com o Superpateta; dei boas risadas com a teimosia do Pato Donald e com as trapalhadas do Peninha; acompanhei o surgimento do sobrinho do Peninha, o Biquinho; e, algum tempo depois, joguei bola com a turma do Zé Carioca. Mas o que eu sempre curti demais foram os passeios ao sítio da Vovó Donalda: os afazeres dali eram parecidos com os da minha avó. E a minha dívida com os patinhos só aumenta".
Não falta quem sinta o mesmo. "Eu lia Disney antes de aprender a ler. Não sabia ainda formar as palavras, mas esforçava-me para entender as histórias do Pato Donald", lembra o jornalista e escritor Gonçalo Junior, autor do livro A Guerra dos Gibis e nome de destaque na imprensa especializada em quadrinhos.
Para ele, o personagem ranzinza e azarado é uma figura marcante de sua infância. "Por dois ou três anos foi assim: eu só consumia Pato Donald, dentro do meu universo restrito de criança urbana, que ignorava a existência de outros personagens. Até que, um dia, deparei-me com um anúncio do Manual do Escoteiro Mirim, que passei a desejar de modo obsessivo - como o dinheiro lá em casa era pouco (meu pai gastava fortunas com meus problemas de saúde), só consegui um exemplar em 2001, presenteado por ninguém menos que seu criador, Cláudio de Souza, quando eu escrevia o livro O Homem-Abril".
Embora O Pato Donald não tenha sido a primeira publicação da Abril - foi Raio Vermelho, em maio de 1950, que abriu as portas da editora (alguns historiadores não consideram isso) e durou apenas duas edições -, a revista se tornou o marco do grupo editorial, ao ponto de ser atribuída a seu fundador, Victor Civita, a paráfrase "Tudo começou com um pato".
Gonçalo revela que, em 2000, durante uma entrevista com o presidente do conselho editorial da Abril, Roberto Civita, para o jornal Gazeta Mercantil, ouviu do empresário a afirmação de que "enquanto existir Abril, haverá um gibi do pato em circulação, mesmo que em forma holográfica".
"Uma consultoria de uma empresa argentina havia recomendado à editora cancelar todos os títulos Disney, porque suas vendas estavam muito baixas e aquém do porte da editora. Contou-se, na época, que Civita recebera a sugestão com irritação e a jogou na lata de lixo. Creio que isso explica por que a Abril continua a editar as revistinhas Disney", disse o jornalista.
A atual fase dos gibis da turma de Patópolis no Brasil, com muitos - e excelentes - lançamentos, agradece a Civita por aquela decisão.
Para sempre
Se na Itália e em outros países da Europa, de onde sai a maioria das HQs Disney inéditas que circulam pelo mundo, revistas são canceladas e novos títulos deixaram de ser lançados com a frequência de outrora, situação pior vive os Estados Unidos.
Em 2003, os gibis voltaram a circular no país depois de quatro anos ausentes das comic shops. Ao assumir a publicação dos personagens Disney naquele ano, a Gemstone Publishing prometia abastecer o mercado com muitos lançamentos.
A alegria durou pouco. As vendas caíram, os cancelamentos aconteceram e os gibis saíram novamente de circulação em 2009.
Ainda naquele ano, a Boom! Studios reviveu os quadrinhos Disney nos Estados Unidos, de forma comedida, apostando em dois títulos baseados em criações recentes dos desenhos animados e mais dois que traziam HQs italianas protagonizadas por personagens clássicos, como Mickey, Pateta e Donald, em versões aventureiras nos estilos super-heroico e magia e fantasia.
Dentre os títulos ressuscitados, estava Walt Disney Comics and Stories, o primeiro gibi dos personagens a editar somente aventuras inéditas e exclusivas, lançado em outubro de 1940 e, até julho de 1942, composta somente por republicações. A revista, que durante sua existência saltou entre editoras sem perder a sequência original de numeração de capa, completou 70 anos quando estava na Boom! Studios. Mas, assim como os outros títulos Disney da editora, ela foi cancelada.
A boa nova é que, no próximo mês de abril, os Estados Unidos voltarão a publicar os gibis da Turma de Patópolis, desta vez pela editora IDW. E o retorno de Walt Disney Comics and Stories está confirmado.
Não é absurdo imaginar que os quadrinhos Disney, mesmo com todos os percalços por que costumam passar, percorrerão mais 85 anos produzindo novas e marcantes histórias em papel ou no que servir de plataforma para uma HQ no futuro distante.
Desde que Walter Elias Disney entregou Mickey Mouse a essa mídia para promover a imagem do camundongo e perpetuar sua marca, o grande conglomerado de entretenimento em que se transformou o pequeno estúdio de animação do "Mago de Burbank" não dispensa os gibis para divulgar seu maior patrimônio: os personagens, em torno dos quais a companhia continuará girando.
Marcus Ramone estará sempre junto dos quadrinhos Disney, mesmo que, algum dia, reste a ele apenas a opção de reler os gibis antigos de sua coleção.