Os mares nunca dantes navegados no ano de 2500
A visão de Lailson de Holanda Cavalcanti dos Lusíadas, obra máxima de Luis Vaz de Camões
Por Sonia M. Bibe Luyten (05/06/06)
As armas e os barões assinalados, Que da ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados, Passaram ainda além da Taprobana,..
Com certeza, em algum período de sua vida, você já ouviu ou leu estas
primeiras linhas do mais famoso poema da língua portuguesa, Os Lusíadas,
de Luis Vaz de Camões. Mas, e o resto desta obra monumental? Quantas pessoas,
além dos especialistas, chegaram realmente até o fim desta epopéia?
Com certeza, Lailson de Holanda Cavalcanti foi uma delas. Foram necessários
meses de leitura, estudos e interpretações para se familiarizar com o
texto (que mesmo sendo traduzido para o português mais moderno, não é
de fácil leitura), para que pudesse compreender a obra e iniciar um verdadeiro
trabalho de artesão na tarefa executar Os Lusíadas 2500, cujo primeiro
volume (serão três no total) foi
lançado recentemente pela Companhia Editora Nacional.
Mantendo
o texto original, iniciou uma desconstrução da obra para reconstruí-la
em forma de uma outra arte: História em Quadrinhos. Lailson transpôs os
cenários da obra de Camões para uma interpretação pessoal, tomando o ano
de 2500 como data da maior aventura épica dos portugueses. Foi o maior
desafio de sua vida artística de mais de 25 anos de trabalho.
A partir do sucesso de seu livro Pindorama, o diretor editorial
da Companhia Editora Nacional sugeriu esta idéia, a qual o artista
tomou como um desafio, desde que fosse aceita uma condição: a adaptação
d'Os Lusíadas seria livre no tempo, espaço e estilo.
E aí aconteceu uma outra saga. Os nautas portugueses transformaram-se
em argonautas, as caravelas singraram o espaço do século XXVI, os personagens
se adaptaram ao estilo futurista, a começar pelos deuses, que assumiram
uma identidade mais contemporânea, como pop stars, supermodelos
e super-heróis, saindo do clichê dos deuses gregos seminus.
Vasco
da Gama, o personagem que narra a história, entrou num outro contexto,
partindo para o hiperespaço numa grande aventura, indo ao encontro de
nativos, só que com sensitividade psiônica.
Na época das descobertas, Portugal era a maior potência do mundo, conhecedora
e detentora dos segredos da arte de navegar. O monarca da época, o Infante
D. Henrique, fundou a Escola de Sagres que preparava os nautas
para desafiarem os "mares nunca d'antes navegados", constituindo-se na
NASA do século 20 em pleno século 16.
A cidade de Sagres está para Portugal como o Cabo Canaveral para os norte-americanos,
ponta de lança dos descobrimentos espaciais. Pela própria localização
da cidade, no extremo sul do país, percebe-se sua importância na era dos
descobrimentos ao se avistar, num dia claro pelos penhascos, a imensidão
do mar e as extraordinárias aventuras de que foi testemunha.
Iam
à Escola de Sagres tanto capitães de navio para relatar suas viagens
bem-sucedidas e suas experiências, como professores para instruir capitães
menos experientes sobre as correntes do Oceano Atlântico e os mais avançados
métodos de navegação, cartografia e discorrer sobre instrumentos náuticos
de última geração.
O mar com inspiração na literatura portuguesa: Os Lusíadas
A aliança entre a tecnologia da época e o espírito aventureiro fez os
portugueses partirem para os mares em busca de riquezas, provando sua
coragem nas descobertas de terras desconhecidas. Esta epopéia toda não
ficou indiferente aos literatos da época.
Pode-se dizer que o mar foi, sem dúvida, a principal fonte inspiradora
da literatura portuguesa do século 16, desdobrando-se em muitos temas.
Tudo foi motivo para ser cantando e louvado: as façanhas dos bravos capitães
e marinheiros, as saudades da terra, o heroísmo e, sem dúvida, a glorificação
nacionalista.
Luís
Vaz de Camões escolheu o mar e a viagem de Vasco da Gama para compor Os
Lusíadas, sendo o próprio Vasco da Gama o narrador da história com
uma seqüência cronológica dos acontecimentos.
Ao recriar a obra de Camões, Laílson, também bastante influenciado pela
arte de se fazer e manobrar as velas, quis transpor este sentimento em
seus desenhos, mostrar a exata dimensão do feito tecnológico, dos segredos
dos mares e as estratégias que estavam por trás das navegações.
Para compor Os Lusíadas, Camões baseou-se em cânones greco-romanos
do gênero épico para encontrar um protótipo de uma intriga entre deuses
apaixonados que incutissem caráter e paixão ao seu poema narrativo. Após
a familiarização com o texto original, que levou meses de leitura, Lailson
levou meio ano para fazer o que chamou de "trabalho braçal": a criação
dos personagens, caravelas, roteirização dos poemas e planejamento de
onde entrariam as páginas com suas intervenções em prosa.
Depois
dessa etapa, elaborou os esboços das cenas, montagem, roteiro e desenho
de quase 200 páginas nas quais o mar e o espaço se fundem, presenciando
o grande conflito entre deuses e homens, sereias e tritões.
A tecnologia a serviço de um texto seiscentista
Um navegador, para levar bem seu navio ou caravela, precisa saber fazer
bom uso de instrumentos para se localizar e seguir seu rumo. Um poeta,
para compor uma obra, necessita saber usar bem a língua na qual se expressa,
a métrica e transmitir seus sentimentos de modo a emocionar o leitor.
Um artista gráfico precisa dominar a técnica de desenho e, ao realizar
uma história em quadrinhos, ter, sobretudo, um enredo chamativo e criar
personagens atrativos.
O desafio de quadrinizar a obra de Camões não é tarefa fácil. Os Lusíadas
é uma obra tão grandiosa que não precisa, em si, ser necessariamente ilustrada,
pois já é ricamente descritiva. Lailson teve, portanto, que criar uma
outra narrativa gráfica, mas que não fosse redundante, senão incorreria,
como ele mesmo diz, "num Lusíadas ilustrado".
Como o texto foi mantido no original, foi necessário fazer a fusão das
duas narrativas, contar a mesma história de duas maneiras simultâneas
e reinterpretar um texto mais do que conhecido.
Como a nova obra se passa no ano 2500, foi necessário "traduzir" o poema
seiscentista da época de Camões e, ao mesmo tempo, manter sua grandeza
num contexto futurista.
O traço de Lailson em sua trajetória como chargista é mais caricato e,
para esta produção, precisou usar novas técnicas na construção dos personagens
e cenários. Uma delas foi a utilização de modelos vivos para dar mais
dramaticidade ao épico e aproximar a encenação da realidade. Dezenas de
fotos, com diversas poses foram tiradas e utilizadas.
A computação gráfica foi de grande valia para produzir a obra, saindo
do método tradicional e aproximando a arte quase como uma grande produção
cinematográfica. Pode-se notar nos Lusíadas 2500, de Lailson, grandes
cenários, closes e efeitos especiais, prova de que teve total liberdade
de criação para dar vazão à sua imaginação.
Assim, Lailson pôde deixar que as caravelas fotônicas cruzassem as correntes
do espaço em busca de novas terras e o ciborgue caolho KMOS1572 (que tem
implantado em si o DNA do maior poeta de Lusitânia) registrasse tudo o
que acontece nesta saga, enfrentando perigos, acompanhando os modernos
argonautas na missão de ir além dos limites dos espaços conhecidos.
Sonia M. Bibe Luyten é a autora dos livros: O que é Histórias em Quadrinhos, Histórias em Quadrinhos - leitura crítica e Mangá, o poder dos quadrinhos japoneses