Os quadrinhos nacionais estão doentes
or André Diniz
Antes de tudo, quero deixar claro que começar uma nova coluna no Universo HQ é uma grande satisfação para mim. E por saber que aqui há um público bem vasto, sei que muitos aqui não me conhecem. Por isso, acho que cabe uma pequena apresentação, para que os leitores saibam do que estou falando.
É curtinha: desde 2000, venho editando quadrinhos nacionais pela minha editora, a Nona Arte, que ainda chamo de meu trabalho "perde-pão".
Mesmo com pouco tempo de vida, a editora ganhou três prêmios Angelo Agostini e três HQ Mix. A proposta principal da Nona Arte é, além de produzir, debater os quadrinhos nacionais, envolvendo produção e comercialização. E é aqui que começa a nossa conversa!
Já que a moda agora é terapia em grupo, vamos lá. Eu levanto aqui várias questões e você, leitor, passa o seu ponto de vista por e-mail (anota aí:andrediniz@nonaarte.com.br). Na próxima atualização, essa coluna vai trazer a sua palavra, e a de outros leitores.
Qual o alvo da análise? Vamos admitir: o quadrinho está doente. É fácil culpar a crise e dizer que o público tem preconceito contra HQs. Nos anos 80, a animação era uma arte fadada a desaparecer, e os vilões eram os mesmos.
Bastou uma mudança de paradigmas por parte dos artistas, e uma boa dose de criatividade para sumir com crise, preconceito ou o que quer que fosse - começando com Os Simpsons, que rompeu com todo aquele modelo arcaico do que podia e do que não podia num desenho animado.
Com isso, a animação tornou-se uma das poucas artes que cresceram - e muito - na década de 1990, ganhando os públicos infantil, jovem e adulto. E os quadrinhos?
Há uma contradição que me cerca: produzo quadrinhos, mas quase não os leio. E descobri que não sou o único. Muitos autores com quem conversei não têm mais a leitura de HQs como um hábito. Opção? Não creio. Afinal, fora alguns ótimos álbuns nas livrarias, quais são as alternativas? Veja só, não estou atrás unicamente de obras geniais. Contento-me com um bom entretenimento. Uma história bem contada e desenhada. Mas... cadê?
Não vou abordar aqui os defeitos e limitações dos super-heróis, até porque isso já foi feito à exaustão. Os mangás até poderiam ser uma alternativa (de cada 30 títulos sai um interessante), mas eu, particularmente, abomino como leitor essa moda de ler a revista de trás para frente, como é no Japão. É me anular demais, em função do que vem de fora.
Seria bom vermos o que edifica outras formas de expressão, para ver o que nos falta. O cinema, por exemplo: já imaginou se só houvesse os filmes infantis e de ação? Muitos cinéfilos, nessas condições, jamais teriam entrado em um cinema. E haveria bem menos aparelhos de vídeo e DVD nas casas.
E como falar de preconceito, se as bancas de jornal praticamente só oferecem super-heróis, mangás e Turma da Mônica? Não se trata de denegrir estes gêneros, mas será que não tem um público gigantesco excluído, que não se encaixa em nenhuma destas três opções?
A "culpa" é das editoras? Não somente. Na produção independente nacional, 90% é exatamente repetição de um destes três gêneros. E aí não tem desculpa, pois não há o peso das "regras de mercado", nem a figura do "editor conservador" podando a criatividade.
Voltando ao cinema: já imaginou a responsabilidade de um diretor? Ele está empregando milhões de dólares em uma idéia, com centenas de profissionais envolvidos. E sempre há diretores que, mesmo com toda este fardo, fazem obras ousadas, fora do padrão, que podem tanto ser um sucesso como um fracasso homérico. Exemplo é o que não falta, desde filmes mais antigos, como O Anjo Exterminador, de Luis Buñuel, até o recente Cidade dos Sonhos, de David Linch.
Parece que os editores independentes nacionais não acordaram para o veículo maravilhoso que tem em mãos.
No nosso caso, a impressão de 4 mil exemplares do jornal Informal (de onde "nasceu" o convite para esta coluna) custou pouco mais de R$ 400,00, e os autores são também os editores da publicação. Então, cadê o obstáculo? Por que vamos nos ater aqui em copiar um estilo já criado lá fora para contar uma história comercial, seguindo um padrão usado à exaustão? Ora, nós aqui somos livres, viva a criatividade.
O leitor que curte super-heróis vai querer ler o trabalho de quem já domina o assunto, que são as editoras Marvel e DC. Eu não tenho nada a acrescentar a este gênero.
Outra falha dos quadrinhos: por que são tão poucos os batalhadores dessa arte? Há cineastas que vendem a casa e o carro para bancar seu próprio filme, e diretores de curta-metragem que levantam verbas de 20 ou 30 mil para concretizarem seu sonho. Viajam de um canto a outro do País para filmar cenas que podem durar três minutos.
E quanto aos escritores que, como laboratório, internam-se em hospícios, entram no meio da bandidagem, ou vivem por três meses em uma favela, tudo isso para captar o clima ideal dos seus personagens?
E a turma do teatro, que viaja para todos os cantos para apresentar sua peça - até em aldeias indígenas?
Já os quadrinhos... Este é um meio onde reina um comodismo assustador, tanto em termos criativos, como práticos. Os novos quadrinhistas - sem generalizar, é claro - não procuram se diferenciar. Parece que fazem questão de ser mais um. Não defendem um ponto de vista diferente, e não contestam nada. Copiam fielmente as fórmulas prontas.
Ninguém dá colorido de computador em HQ estilo mangá, pois mangá é em preto em branco. E ninguém usa retícula em super-heróis, porque não é essa a tradição. Não dispensam um "continua" no final da edição, sem saberem sequer se vão conseguir lançar uma próxima - afinal, lá fora faz-se assim; e com direito a créditos by fulano, onde a assinatura aparece sobre uma pequena folhinha de papel envelhecida, jogada ao vento.
Desculpem-me os envolvidos, mas uma das obras que mais me incomodou sob este aspecto foi a série Spirits of Amazon, publicada há alguns anos. Quanto ao aspecto técnico, nota 11. Mas me espantou ver - além do título em inglês - uma história onde o Brasil se resume à Amazônia, com índios musculosos e todos os clichês de filmes americanos que falam de nosso país. Só que, neste caso, os autores são brasileiros...
Quanto à humildade, já vi exemplos assustadores da "falta de". Quase ninguém quer "começar". A maioria quer levar sua idéia pronta para uma editora grande, sonhando com que esta publique seu trabalho sem qualquer tipo de interferência.
E mesmo que não haja um público formado previamente ou qualquer diferencial nesta obra, é sempre o editor que não tem visão, na hora em que o autor vê seu trabalho ser recusado sem maiores explicações. Ou então, "é panelinha". Já vi quadrinhistas com trabalhos fraquíssimos, sem uma página publicada em fanzines, se comportarem como estrelas. Enquanto isso, lendas como Shimamoto, Flávio Colin, Mozart Couto e Elmano Silva são de uma humildade e simpatia exemplares. Bem, nem tudo está perdido...
Pessoal, vamos sacudir esse meio, ou ele morre de vez. Temos um veículo excelente em mãos, e só não vê quem não quer. Não dependemos - necessariamente - de mercado, nem de grandes verbas. Não temos as limitações do cinema, quanto a locações, quantidade de atores, maquiagem ou efeitos especiais. Com o lápis na mão, você controla até as mais sagradas leis da física.
Aqui no Brasil há temas muito mais interessantes para se falar do que lá nos Estados Unidos, sem precisar lançar mão do índio ou do saci-pererê. E por que não contar em quadrinhos a experiência de vida que marcou alguém que conheça? Será que você mesmo não viveu algo interessante de ser contado? Sei de quadrinhistas com experiências de vida riquíssimas, mas na hora de pôr no papel, só sai o esquadrão mutante que luta contra o mal. Não é um desperdício?
André Diniz sabe do que está falando. Afinal, já desbravou as florestas brasileiras e acabou desaparecendo, já foi torturado no período militar, já foi assassinado ao se passar por travesti e se meter numa complicada trama política...Opa! Você não sabe do que estamos falando? Então, o que está esperando para visitar o site da Nona Arte e fazer o download das HQs escritas pelo nosso talentoso amigo?