Overman: super-herói de Laerte vira filme e visitamos o set de gravação
O Universo HQ conversa com o diretor Tomás Portella e o ator Caco Ciocler sobre os desafios de adaptar a tira para os cinemas
As milhares de pessoas que transitam diariamente pelo centro do Rio de Janeiro nem imaginavam que, no oitavo andar de um dos vários edifícios da cidade, aconteciam as filmagens para o filme do maior (segundo ele mesmo) super-herói do Brasil.
Overman fará sua estreia nos cinemas em breve, e são muitos os desafios para adaptar o personagem criado pela cartunista Laerte em 1998. As filmagens aconteceram durante cinco semanas até o fim do mês de agosto e, para apenas um dia de gravações, em uma das locações – no caso, o consultório do Dr. Lights –, foi necessária uma equipe de 133 pessoas na produção, entre elenco, equipe técnica e até mesmo os responsáveis pela alimentação.
O longa-metragem tem direção de Tomás Portella (Impuros, Lá Situación e Operações Especiais) e produção de Iafa Britz e Carolina Castro, da Migdal Filmes. O elenco conta com o ator Caco Ciocler como Overman, além de Otávio Muller (Governador), Karina Ramil (Pâmela, a Mulher Cachorro), Victor Lamoglia (Ésquilo). Raphael Logam (Dr. Lights), Marina Provenzzano (Pane), Maria Lucas (Poline Pilsen), Caio Riscado (Maníaco Flatulento), Isabele Riccart (Alexandra) e Saulo Arcoverde (Passador de Trote).
As origens nos quadrinhos
Criado como paródia de super-heróis clássicos, Overman estrelou tiras de jornais na Folha de S.Paulo. O tom satírico sempre esteve presente, ainda mais incluindo situações familiares aos brasileiros. Ele pode voar, é superforte e usa um uniforme com máscara e capa amarelas, mas jamais as tira porque não tem identidade secreta. Vive em uma pensão no Ipiranga, em São Paulo, dividindo o quarto com um sujeito chamado Ésquilo. Sem dinheiro, é comum atrasar o aluguel.
Tem uma visão de mundo simplista e enfrenta vilões do "naipe" do Maníaco Flatulento, Pane, Passador de Trote, Capitalista Imundo e outros. Além disso, lida com problemas cotidianos do Brasil, é viciado em fliperama e toda sexta-feira sai à procura de sexo.
Tenta fazer o certo, mas corriqueiramente se atrapalha e causa mais destruição do que salva o dia. Já teve a companhia da ajudante Mulher Cachorro para combater o crime e, para lidar com questões pessoais, conta com o terapeuta Dr. Lights, que invariavelmente acaba levando um soco do herói.
O filme e as gravações
Coincidentemente, as filmagens acontecem justamente no aniversário de 25 anos de criação do herói. No filme, Overman busca desesperadamente encontrar um propósito em meio à realidade estressante da burocracia, dívidas e crises existenciais. Quando lhe é oferecido um emprego na Secretaria de Segurança Pública pelo Governador, ele vê uma oportunidade de reerguer-se, mas logo descobre que as coisas são mais complicadas do que parecem.
Ao trabalhar ao lado de Pâmela, sua fiel parceira, que começa a ganhar reconhecimento igual ao dele, Overman confronta sua masculinidade tóxica e descobre segredos obscuros envolvendo o Governador. Agora, ele precisa confrontar seus demônios internos e um inimigo antigo para evitar que a cidade caia no caos irreversível. Seu objetivo final é conseguir farrear com tranquilidade nas noites de sexta-feira.
O Universo HQ acompanhou filmagens que têm como cenário o consultório do do terapeuta Dr. Lights e as visitas de Overman em busca de ajuda e para desabafar seus problemas. Algumas vezes, atrapalhando outras consultas e até causando danos no lugar.
Em entrevista exclusiva, o diretor Tomás Portella falou sobre o processo de adaptação e como o tom satírico e escrachado dos quadrinhos teve que ser dosado na transposição para a telona.
"Acho que primeiro o trabalho das adaptações das tiras para o filme foi modernizar o discurso. As tiras são dos anos 1990 e têm um tipo de humor que não cabe mais hoje, em certos pontos. Em outros, trouxemos do jeito que era. Mas em alguns tivemos que adaptar para 2023. E nas tiras ele é bidimensional, então pro filme tivemos que trazer uma tridimensionalidade maior", explica.
"Uma das soluções que a gente deu é que existe o Overman 'pessoa física' e existe o Overman quando ele acha que precisa agir como um super-herói. Inclusive, muda a voz e fala de um jeito mais grosso, porque acha que é assim que deve agir um super-herói. E o filme fala muito sobre isso, sobre ele descobrir que tipo de super-herói tem que ser, não aquele que impuseram a ele. E o que acho mais interessante é ser um super-herói que está em busca da felicidade. Mais do que salvar o mundo ou acabar com seus inimigos, a busca do Overman é um pouco a de todos nós, o que vai nos fazer felizes, em qual lugar vamos ser felizes", analisa o diretor.
O ator Caco Ciocler também falou sobre como interpretar a versão live-action do Overman e sua reação com o papel.
"Então, estou me fazendo essa pergunta até hoje (risos). A Laerte é genial, mas não é fácil decifrar o trabalho dela. Como eu tinha que interpretar esse cara, comecei a pensar em quem é ele, como pensa... é um cara engraçado, mas tem que saber o porquê. É difícil de entender qual é a do Overman", reflete Caco ao UHQ. "Mas acho que, basicamente, é uma criança. Tem uma alma de criança, mas over. É extremamente mal-humorado, grosseiro e politicamente incorreto, mas tem algo que encanta. Isso que foi difícil de entender, de onde achar isso nele."
E ele corrobora a opinião do diretor. "E são justamente essas sessões de terapia, uma supersacada que já vem das tiras da Laerte, que é um super-herói que faz análise. Alguém que procura análise é alguém que quer ser feliz. Então, acho que essa é a alma dele. Alguém que nasceu com esses poderes, mas não é feliz, não saber o que fazer com isso".
Apesar das tiras serem uma paródia aos super-heróis, o filme não será calcado nisso.
"A verdade é que o filme não é uma paródia aos filmes de super-heróis. O personagem que é uma paródia a um super-herói. O que é diferente, porque o filme não fica brincando com os filmes, a gente brinca com ele. Todos os clichês do gênero e o jeito de falar é o nosso personagem tentando ser o super-herói que ele acha que deveria ser", pontua Tomás.
"O Batman, por exemplo, fala assim do início ao fim dos filmes, não é um personagem que está fazendo. O nosso é. Ele é cultivado pelo cinema internacional, tem inveja do Batman e de outros super-heróis. Ele fala que ser super-herói no Brasil é complicado, não tem estrutura e fica reclamando da máscara. Junta dinheiro pra comprar uma nova, porque a que estava usando é ruim e reclama dos padrões que Hollywood impõe de vestimenta. Overman não consegue ter uma roupa como os caras têm lá. Tem uma brincadeira nesse sentido, mas o filme não é uma paródia total; o universo é um pouco mais realista mesmo", afirma o diretor.
Além disso, o perfil de um filme como Overman é diferente da maioria das produções do gênero. "A verdade é que esse personagem é muito mais interessante quando está vivendo a vida de uma pessoa comum, com os problemas de um brasileiro. Ir na análise, devendo, viciado em jogo e em bebida, com as sextas-feiras que ele sai pra putaria. Então, tem todo um outro lado que a maioria dos super-heróis não têm. Ele é mais profundo, é frágil, na verdade. Essa violência e tudo mais é um reflexo da fragilidade dele", argumenta.
A escolha de Caco Ciocler para o papel principal
Caco Ciocler tem uma carreira longa e premiada, tendo trabalhado em diversos projetos, com mais de 35 filmes e 20 novelas, além de séries, minisséries e peças de teatro.
Conhecido por papéis mais sérios, teve que entrar de cabeça em um projeto cujo humor é a principal característica.
"Eu fui assistir uma pré-estreia do último filme do Tomás, Lá Situación. Eu não o conhecia, mas conhecia muito a Iafa, que foi produtora do filme dele e também de um que eu tinha acabado de fazer, chamado As Polacas. E por causa de uma outra série que fiz, estava com umas costeletas bem esquisitas. Parecia um pouco o Wolverine, uma coisa assim. Aí, quando encontrei a Iafa, ela ficou meio diferente e não entendi. Depois de assistir ao filme, ela me apresentou o Tomás", relembra Caco.
"No dia seguinte, ela disse que quando me viu achou que eu era o Overman que estavam procurando, e que o Tomás achou a ideia incrível, mas queria marcar um encontro comigo. Ele adora meu trabalho, mas queria ver se eu topava ser bagaceiro o suficiente (risos). Marcamos o encontro e tinha uma roupa bem bagaceira de super-herói pra eu vestir. E aí rolou", revela.
Tomás Portella também conta como foi a escolha do ator.
"Caco é um grande ator e embarcou no projeto. Ele tem o distanciamento dos super-heróis pra conseguir criticar e brincar com isso. A ideia de chamar o Caco foi da Iafa e achei muito boa e interessante, mas será que ele não se leva a sério demais pra fazer humor? Mas cinco minutos depois que o encontrei, falei que tinha que ser ele mesmo", afirma.
"É totalmente Overman, se joga no humor com muita verdade. O humor precisa de muita fé cênica. Se fizer humor tentando fazer piada, não tem graça. No fundo, o humor é um drama levado às últimas consequências, algo tão dramático que fica engraçado", analisa o diretor. "Caco tem muita experiência e a idade que estávamos buscando pro Overman, que não é mais um garotão e já passou por muita coisa na vida. Está meio deprimido, com problemas existenciais, dúvidas fundamentais. Ele acabou se encaixando perfeitamente."
Mas como sempre costuma acontecer em filmes de super-heróis, a roupa é um dos principais desafios. Ainda mais no calor do Rio de Janeiro.
"Pois é, meu camarada. Quando vi as entrevistas dos atores que fizeram super-heróis, era clássico todo mundo falar da roupa, como é incômodo e não conseguir fazer xixi. E olha que lá o sistema deles é supermoderno, tem um ar-condicionado na própria roupa. Primeiro, que lá todo mundo tem um trailer, né? Segundo, que é só ligar o ar-condicionado e a roupa resfria... e a gente não tem isso aqui! É uma loucura. E acho que eles esperam que a qualquer momento eu vá dar um chilique", brinca o ator.
"Ainda bem que não tenho a força dele. Mas é que é desesperador, mesmo. Hoje, está fresquinho, mas em dias muito quentes... Pra você ter uma ideia, eu não faço xixi o dia inteiro, e não é porque seguro. Acho que elimino tanta água pelos poros no suor, que não sobra pro xixi. E se eu quisesse fazer xixi, teria que tirar a roupa inteira, então é realmente um inferno!", relata.
Cinema e quadrinhos brasileiros
Esta não é a primeira experiência do diretor Tomás Portella com super-heróis. Ele participou de O Incrível Hulk (2008), como assistente de direção, uma produção que teve diversas cenas rodadas no Rio de Janeiro.
"Vi como eles trabalham em filmes de super-heróis. E minha conclusão lógica é que preciso lutar contra eles com outras armas. Se eu tentar usar as mesmas armas, vou perder. Eles têm 80 milhões de dólares no orçamento de um filme barato", reflete Tomás.
"No fundo é: como a gente encontra uma forma nossa de fazer super-herói? Que respeita o gênero na hora de ter as lutas, brigas e voos, mas tentando fazer uma coisa real? Não estamos fazendo um super-herói cartunesco. Queremos que ele voe de forma realista, mas de outra maneira. Não preciso buscar essa virtuose do cinema norte-americano em que o cara voa e a câmera fica girando em volta e tudo mais. Ele voa e a gente vai junto com ele, quando precisa", explica.
Alguns quadrinhos nacionais viraram filmes em anos recentes, como Turma da Mônica – Laços e Lições, Tungstênio e Doutrinador. Seria esse um momento de estreitar a relação entre as duas mídias?
"Acho que o cinema brasileiro se desenvolveu muito e estamos buscando boas histórias, seja onde for. Na literatura, nos quadrinhos, nos nossos mitos, nas histórias de jornal, nos crimes e desastres que aconteceram. Penso que é um movimento natural em busca de histórias. O ser humano sempre foi muito ávido por histórias, desde o início das civilizações. E a história audiovisual nunca teve tanto acesso. Então, acho que sim. Os quadrinhos, nossa cultura popular, os acontecimentos históricos... tudo isso vai cada vez ganhar mais força", finaliza Tomás.
As entrevistas completas podem ser conferidas na cobertura da visita ao set de filmagens no canal do Universo HQ no YouTube.