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Matérias

Pecados e memória

30 junho 2001

Adam WarlockDe repente, inspirado pelo paradoxo criado intencionalmente por mim mesmo na última coluna, tive flashes mnemônicos da infância (conforme uma amiga, não tão distante) quando ler quadrinhos era algo inocente e prazeroso. A lembrança em questão era, para ser um bocado mais específico, relativa a uma das "grandes sagas cósmicas" de Jim Starlin.

A história começou sendo serializada, se não me falha a memória, em Heróis da TV. Para quem não sabe, esta era uma revista mix que trazia as melhores histórias publicadas pela Marvel Comics, com coisa de 10, 15 anos de atraso para o público brasileiro. Mas se me disperso nessas explicações, não chego a ponto algum.

Adam Warlock, o guerreiro iconoclasta, auto-intitulado "matador de deuses" era o personagem "diferente" que protagonizava as HQs citadas. Além da angústia típica de todo herói, digamos, "cósmico" da Marvel (Surfista Prateado, por exemplo), ele era uma espécie de alegoria de Cristo (o ungido, ou escolhido, conforme a mitologia cristã). Obviamente, que na época eu não me dava conta disso.

Warlock, no traço de Jim StarlinO personagem não era originário de nosso velho planeta Terra, muito menos de Nova York, como a grande maioria dos super-heróis da Marvel, mas de um mundinho estrategicamente criado pelo Alto-Evolucionário para comportar suas criações, a, tã-dã, Contra-Terra.

Se você não sabe quem é o Alto-Evolucionário, pense no doutor Moreau (H.G.Wells) usando a máscara de ferro do personagem de Dumas Pai. E foi com Warlock, se não me engano, que começou uma das séries mais duradouras da Editora Abril ou Abril Jovem (ou seja, lá como eles se chamam hoje em dia), Grandes Heróis Marvel. Era o final da "GRANDE saga cósmica", a primeira ou a segunda de Starlin, mas não a última, é claro.

Todos os personagens mais importantes estavam presentes: Capitão América, Quarteto Fantástico, Vingadores, Homem-Aranha, Hulk e mais uns gatos pingados criados por Starlin... Pip e Gamora, ou um troço assim. Parecia um grande carnaval, aquela gente uniformizada, com colantes coloridos, capacetes, visores e máscaras, mas, por Deus, juro que adorei cada pequeno painel (e, naquela época, pequeno era pequeno mesmo!).

Esta viagem ao passado não é para falar da sensação de maravilhamento que os quadrinhos traziam antigamente (gostaria de acrescentar que, ao contrário do que um pen-pal eletrônico pensa, esta sensação não é comercial, mas sim derivada da inocência do leitor que, aos 12 anos, lê com olhos de criança; e aos 30, deveria - ênfase no deveria - deixar as tentativas de encontrar maravilhamento nos quadrinhos de lado e passar a procurar prazer estético, idéias novas e ousadas, enfim, material para um upgrade cerebral nas histórias), mas de uma coleção de histórias curtas publicadas pela Knockabout Comics anos atrás: Seven Deadly Sins (ou Os Sete Pecados Mortais).

Não que os autores tenham se preocupado em adaptar qualquer coisa diretamente. Ao contrário, dada a temática flexível que os pecados representam, a liberdade corre solta e traz resultados extremamente agradáveis, mas que chocariam os incautos e desinformados que comprassem o gibi pelo título.

Assim, temos, em ordem de aparição:

- Pride (Orgulho), de Roz Kaveney e Graham Higgins;
- Envy (Inveja), de Tym Manley e Hunt Emerson;
- Sloth (Preguiça), de Neil Gaiman e Bryan Talbot;
- Gluttony (Gula), de Dave Gibbons e Lew Stringer;
- Greed (Cobiça), de Mark Rodgers e Steve Gibson;
- Anger (Ira), de Davy Francis e Jeremy Banks;
- Lust (Luxúria), de Alan Moore e Mike Matthews.

Histórias em quadrinhos lidando com temas bíblicos não são novidade. Desde há muito tempo que se fazem adaptações da Bíblia para os quadrinhos. Que me lembre, a EC (previamente, enquanto a sigla significava Educational Comics - depois de herdada por Willian M. Gaines tornou-se Entertainment Comics) publicava esse tipo de material.

Capa de Seven Deadly SinsOs destaques de Seven Deadly Sins, nenhuma novidade, vão para os suspeitos usuais: Alan Moore (com Mike Matthews que, queira ou não, é um clone - no sentido positivo - de Graham Ingels), que escreve uma fábula pornográfica na qual os Estados Unidos são um homem e a ex-União Soviética é uma mulher. É a história da Guerra Fria que, como no jogo da sedução, começa com olhares (espionagem?) e termina de modo mais quente e úmido. O fato de a história ter sido escrita antes do término (?) da guerra citada faz com que percebamos, com clareza, o pessimismo de Moore em relação ao assunto.

Gaiman, em boa forma, em colaboração com Talbot, entrega uma de suas histórias mais interessantes: um grupo de monges peregrinos têm a revelação de como Deus (ou um deus) criou o mundo segundo uma teologia apócrifa, que prega a preguiça como uma virtude e não um pecado. A coisa poderia ficar por aí, mas não. A trama justificou seu tema e não foi terminada. A última página, apenas com a marcação de quadros, tem um bilhete afixado de Talbot ao editor, no qual o desenhista explica os motivos de não tê-la terminado, pede desculpas por isso e pergunta quando vai receber seu cheque. É genial.

Mas, voltando, coisas simples assim podem - e devem - ser exploradas pelos quadrinhos. Por que criar uma série "cósmica", com gente uniformizada voando para lá e para cá, trocando sopapos entre si, para falar a respeito do cristianismo ou de temas bíblicos em geral, mesmo que como pano de fundo, quando se pode usar um pouco mais (ou menos) de imaginação e fazer a coisa diretamente?

Quer dizer, já que vivemos, ocidentais que somos, numa "civilização" tipicamente cristã - onde a TV, em plena Páscoa, tem uma programação toda voltada para o assunto e mostra, sem cortes, coisas deprimentes, como a "crucificação" de Jesus -, os pecados passam, pelo menos em teoria, a ser parte da cultura transmitida; e assim são aceitos também como verdades humanas gerais, tornando possível sua identificação a todos os indivíduos que compartilham a mitologia cristã, ou pelo menos, a judaica. Por que transformar tudo em símbolos? Por que usar o super-herói como figura alegórica de Cristo? Por que metaforizar e tornar tudo tão... fútil?

Super-heróis devem ser super-heróis e ponto. Nada contra o gênero, ou melhor, subgênero. Quem lê esse tipo de história, com certeza, não está atrás da iluminação ou de significados ocultos, só de diversão rápida e barata (apesar que faz tempo que o adjetivo "barata" não se aplica às HQs).

O leitor de histórias de super-heróis faz o que Amélie Nothomb chama de "leitura predatória". E é isso o que deve ser buscado quando se trata de diversão: sugar a coisa até os ossos e depois jogar fora. Vejam só: tenho essas lembranças maravilhosas a respeito de Warlock justamente porque quando o li era jovem e ingênuo demais para estabelecer a conexão Adam = Jesus. Mas, apesar da pretensão, a historinha era um inferno de ação, extremamente divertida e, por isso, valia a pena. Inclusive, sinto vontade de relê-la, mas mais para ver os vôos da imaginação de Starlin, do que para analisar a tese embutida na história.

Abs Moraes, é um cara extremamente calmo. Basta que você não diga o seu nome de maneira errada, tipo "Abêesse" (tal qual os famosos freios)! Aí, o cara fica nervoso! Por isso, quando o encontrar, para o bem de sua integridade física, pronuncie corretamente: "Abs", exatamente como se lê! :o)

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