Um fã na New York Comic Con
O relato de um maluco por quadrinhos num dos maiores eventos de Cultura Pop do mundo
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Conversa com um amigo, em setembro de 2017:
– Para onde você vai nas férias de outubro?
– Vou para Nova York.
– Ah, que legal. Tem muita coisa boa lá pra se fazer...
Conversa com um amigo nerd, em setembro de 2017:
– Para onde você vai nas férias de outubro?
– Vou para Nova York.
– Sério? Não acredito, cara! Vai na New York Comic Con, né?
A diferença na reação das pessoas nos dois diálogos acima mostra bem o que um fã de quadrinhos, como eu, passa no dia a dia. Coleciono HQs há mais de 30 anos, mas sempre foi difícil encontrar gente que entenda o real significado dessa arte para mim.
O escapismo, o acesso a múltiplas formas e estilos de se contar uma história, as infinitas possibilidades... Posso afirmar que boa parte da minha bagagem cultural se deve a esse hobby. Após muito tempo como colecionador, e inspirado pela Comic Con Experience, no Brasil, consegui me estruturar para expandir meus horizontes e começar a frequentar feiras internacionais.
A New York Comic Con acontece desde 2006, sempre no mesmo lugar, o Jacob K. Javits Convention Center, no lado oeste da ilha de Manhattan. Mal sabiam os organizadores que os 33 mil ingressos vendidos naquele ano se tornariam mais de 200 mil na edição de 2017.
Nunca estive na San Diego Comic Con, mas, pelo que ouvi de amigos que já visitaram ambos os eventos, a parte de HQ é muito mais pulsante em Nova York. Por isso, tenho ido para lá nos três últimos anos.
Que fique claro uma coisa: não vou fazer um relatório da feira, seus expositores, seus anúncios e outras informações. Esta não é uma matéria jornalística. Quero passar um tipo diferente de informação e vivência, que é justamente estar lá como um fã de quadrinhos. Só para dar uma noção da grandiosidade da feira, ela apresentou em 2017 mais de mil expositores e 200 artistas convidados. Esse número de autores não inclui muitos dos que eventualmente ficam somente em estandes e não são devidamente anunciados.
Bem, fico confortável em dizer que 2017 foi o melhor ano do evento, para mim. Consegui encontrar praticamente todos os artistas que queria, e ainda contei com sorte em duas ou três oportunidades, que relatarei em seguida.
Correndo com Todd
Chego de manhã no segundo dia da feira. Gosto de chegar uns minutos antes de começar, pois, dependendo da concentração de público, a organização libera a entrada antecipadamente. Verme que sou, precisava espremer o evento até o bagaço. Geralmente, eu percorria os 483 metros do meu hotel até a feira em menos de cinco minutos. Desta vez, na metade final da jornada, minha visão periférica denunciou uma pessoa andando rápido, tentando me passar. Mas nossa velocidade era parecida.
“Hoje não, amigo. Você não vai me passar, a menos que queira correr”, pensei. O cara estava firme em seu propósito. Ele emparelha comigo. Continuo minha carreira. Ele faz que vai me passar. Olho para o lado. Olho para o chão. E finalmente olho para o céu, para agradecer a graça alcançada. Todd McFarlane passava ali, sozinho, disputando marcha atlética comigo.
Puxei conversa, tirei foto, pedi mensagem de vídeo para um amigo que é fã, e fomos conversando sobre amenidades até a entrada da feira. Eu me senti um executivo do alto escalão de uma multinacional do entretenimento, trocando ideias com o gerente de mídia. O cara foi nota 10.
Meu encontro com o mestre John
Uma das coisas que aprendi desta vez foi não pesquisar somente no site oficial do evento sobre autores que estarão no evento. Muitas editoras têm sua programação própria, e anunciam artistas fora do calendário normal, às vezes no mesmo dia da sessão de autógrafos. E, pior ainda: se o quadrinhista é muito famoso, você tem que pegar uma senha de manhã para poder entrar na fila à tarde.
Foi assim que descobri que meu ídolo máximo de infância, John Byrne, estaria na convenção. Pelo que ouvi recentemente, ele não tem sido figura fácil em eventos. Isso colocou ainda mais peso em mim e na minha malfeita pesquisa realizada antes da feira. Eu não tinha levado nada dele, e também não tinha pegado a famigerada pulseira-senha na parte da manhã. O que fazer?
Bem, brasileiro deve ser estudado, como dizem...
Decidi ficar na fila, mesmo sem pulseira. O pessoal da editora – a IDW, que tem muita coisa legal – me tirou duas vezes. Aí, tive que apelar: fiquei ao lado da fila e, quando o Byrne chegou, mostrei de longe um pequeno cartaz que escrevi na hora, falando que o Brasil o amava e pedindo uma foto.
Após algumas olhadas pra cá e pra lá, eis que ele vê meu cartaz e vem ao meu encontro! Foi bem simpático, encostou sua cabeça na minha, deu um abraço. E fiquei esperando terminar a sessão para tentar beliscar algo. A editora acabou ficando sensibilizada pela minha insistência, e me chamou no final para autografar algo com ele. Como não tinha nada, acabei pegando duas edições, uma de Star Trek e outra gigante de capas da Marvel. No fim, a perseverança venceu!
Esbarrando com Kirkman
Para minimizar seu tempo em filas no início da feira, você pode retirar sua credencial nos dias que antecedem o evento, em um processo chamado Will Call. Bem, lá fui eu, um dia antes, pegar a minha. É legal, pois, mesmo de longe, você pode ver os estandes tomando forma, além de se ambientar com o espaço. Peguei a credencial, e pensei: “Estou aqui de bobeira, vou dar uma volta”.
Peguei uma rua, outra, e, após umas duas negativas de seguranças que me impediram de passar em determinadas partes, cheguei ao Artist’s Alley. Vazio, nem 5% das centenas de artistas estavam arrumando suas respectivas mesas. Ando pelos corredores, vendo cartazes e banners com vários nomes famosos e outros nem tanto.
Ao fundo desse grande espaço, uma roda de cinco pessoas conversava calmamente. “Eu conheço esse barbudo”, pensei. “Ah, não pode ser: Robert Kirkman está ali”. O papo não terminava, e eu já tinha colocado em minha cabeça que iria pedir uma foto. Até que minha paciência terminou, a fome apertou e interrompi na maior cara-de-pau, pedindo licença e uma foto. Ele foi extremamente gentil, e tive minha foto com o morto-vivo-mor.
Um sujeito inacreditavelmente sozinho
Terceiro dia de NYCC, passo de bobeira no estande da DC, pois as roupas e armaduras do filme Liga da Justiça estavam em exposição. Ao lado, um espaço utilizado para sessões de assinaturas. À esquerda, uma fila até grande, mas nem lembro quem estava assinando naquele momento. À direita, um senhor, sentado calmamente, conversava com um dos coordenadores, sem muita atividade. Parei. Olhei. Dei três passos em direção. Parei de novo. Será que terminou a sessão? Cara, o que Paul Levitz, o maior escritor de todos os tempos da Legião dos Super-Heróis, e um dos principais executivos da DC Comics em todos os tempos, estava fazendo ali, sem nenhum tipo de assédio do público?
Entrei de sola.
“A sessão terminou?”, perguntei ao coordenador. “Não, ele fica mais 30 minutos.”. Poxa, eu não tinha visto o nome dele em nenhum momento nos anúncios e, portanto, não tinha nada em mãos para ele assinar. Corri como se não houvesse amanhã até o outro lado do pavilhão, para procurar algo da Legião. Do estande da DC até essa área de vendas de back issues (como são chamadas nos Estados Unidos), e ainda colocando um mar de gente no meio do caminho, posso dizer que fazemos uma “viagem” de 20 minutos. Fiz em 10.
No terceiro vendedor, achei Legion of Super Heroes # 294, com Darkseid na capa, com o final de A Saga das Trevas Eternas. Sorte. Nem lembro do preço, mas creio ter sido uns 10 dólares (uma pechincha na minha cabeça de fã da Legião e do Levitz). Voei de volta, pensando que ele poderia ter se entediado e terminado antecipadamente a sessão. Mas ali estava o cara, com uma aura de luz branca à sua volta. Cheguei ofegante e sem palavras, com a revista nas mãos e, após uma breve apresentação, o educadíssimo Paul começou a me dar dicas da cidade de Nova York, enquanto assinava meu gibizinho. Quem diria.
Dizem que sou louco
Último dia de feira, ando na parte mais tumultuada do pavilhão. Ali, muitos estandes menores e viabilizados com menos investimento. Faltava uma editora para eu visitar, a Heavy Metal, que se encontrava em um espaço bem pequeno e denso, com muitas revistas em exposição.
Inspirada na francesa Métal Hurlant, a Heavy Metal americana tem um papel importantíssimo nas HQ adultas desde 1977. E a fase atual conta com ninguém menos do que Grant Morrison como editor-chefe. Sim, o Morrison, de LJA e Homem-Animal. De Os Invisíveis e Patrulha do Destino. Ele... está ali sentado, autografando?! Pois é.
Sessão obscura de assinaturas do louco escritor. Três, sim, três pessoas na fila. Promoção de “Leve cinco revistas por 20 dólares” rolando. Olhei para cima, mais uma vez agradeci pela sorte, comprei as cinco revistas, e pedi para ele assinar. Todas. Não fui fominha, pedi autógrafos para amigos também. Foto, claro, não pôde faltar. E um aperto de mão, elogiando seu trabalho. Como foi regra na NYCC, mais um grande nome, e extremamente gentil e atencioso.
Manual de Sobrevivência
Não quero parecer pretensioso nem extremamente experiente, mas consegui acumular alguns aprendizados nas três edições da NYCC em que estive. Se eu conseguir ajudar pelo menos uma pessoa com essas dicas, já fico bem satisfeito. Mas lembre-se, são dicas para fãs de quadrinhos! E vou utilizar o velho clichê de Os Dez Mandamentos! Lá vão:
1) Leve uma mochila. Pode parecer básico demais, mas, mesmo se não comprar absolutamente nada, você sai de cada dia da feira com dezenas de brindes, mesmo aqueles mais obscuros. E isso também te dá espaço para levar uma água (acredite, dependendo da parte do evento em que você estiver, vai ter fila até pra comprar água).
2) Tente assinar suas edições já no primeiro dia de feira. A NYCC tem sempre artistas que não costumamos ver em feiras daqui, e é normal querermos levar algumas HQs da nossa coleção para assinaturas. Comece a separar essas edições pelo menos uma semana antes de viajar, pois, aos poucos, até o dia da viagem, você vai eliminando algumas que não são realmente prioridade.
Uma vez que chegue à feira com as selecionadas, tente assinar o máximo possível no primeiro dia. Assim, você: a) não fica sujeito a possíveis indisponibilidades de alguns autores nos dias posteriores, b) evita filas que aumentam ao longo da feira, e c) já elimina peso da sua mochila para os dias seguintes.
3) Leve dinheiro trocado para o Artist’s Alley. Muitos autores, principalmente os mais antigos, cobram para assinar. O preço varia. Pode-se ter um Chris Claremont cobrando 5 dólares até um Rob Liefeld, com 30. Outros pedem doações para instituições como a Hero Initiative, que ajuda artistas em necessidade, e é de bom tom que as façamos. O dinheiro trocado ajuda você a viabilizar e/ou agilizar essa transação.
4) Fila pequena em artista famoso? Aproveite no primeiro momento! Parece besteira, mas vi grandes artistas, como Skottie Young e Alex Maleev, com momentos de filas enormes e também de pequenas. Então, se você vir alguém legal com pouca gente em volta, aproveite! Essa sorte pode não se repetir nos dias posteriores.
Decidi postergar a entrada na fila do Adam Kubert, de quem gosto muito, e me arrependi, pois não consegui mais sincronizar quando eu estava no Artist’s Alley com a presença dele. Voltei para o Brasil com o encadernado de Superman – Last Son lisinho, lisinho...
5) Faça uma agenda ou uma lista de pendências. Outra coisa que parece básica, mas me ajudou muito. Uma vez no meio do tiroteio, você não sabe bem o que fazer na NYCC. Olha para um lado, tem um painel da DC. Olha para o outro, vê Ramon K. Pérez com a mesa vazia no Artist’s Alley. Escrever o que quer fazer ajuda você a priorizar e a não esquecer coisas importantes.
Até porque tem muita coisa acontecendo ao mesmo tempo. Aí, você precisa fazer escolhas. O aplicativo da convenção ajuda bastante nesse sentido, mas somente para a agenda oficial. Lembre-se que há também as sessões em paralelo das editoras em seus estandes.
6) É um caça-autógrafos? Livros com trabalhos de múltiplos autores ajudam. Eu, por exemplo, sempre levo a essas feiras um livro do Hellboy chamado The Hellboy 100 Project, um dos projetos da Hero Initiative, no qual pelo menos 100 autores fazem capas variantes de algum personagem e toda a renda é convertida para ajudar autores que precisam.
Ou seja, ando com 100 potenciais autógrafos em apenas um livro, reduzindo minha carga, principalmente de autores que não sejam do chamado primeiro escalão. Aqui no Brasil, já vi muita gente fazer isso na CCXP com o livro Ícones dos Quadrinhos ou as coletâneas MSP 50, MSP + 50, MSP Novos 50 e Mônica(s), todas publicadas pela Panini. Se o dia for produtivo, você consegue umas 25 assinaturas, pelo menos, no Artist’s Alley da NYCC.
7) Gosta de fotos com celebridades de HQ, cinema e séries? Aproveite, pode ser uma chance única. As fotos nos chamados photo booths da feira são geralmente bem caras, e é sempre uma decisão difícil sobre comprá-las ou não. Na NYCC, você pode adquiri-las antes, com dia e horário marcados.
Geralmente, as celebridades disponíveis são uma mescla de séries de TV em voga (neste ano, tivemos atores de Dr. Who, American Gods e outros) e ídolos clássicos da TV e do cinema (que tal uma foto com William Shatner, o eterno Capitão Kirk, de Star Trek, ou com Mark Hamill, nosso Luke Skywalker?). No ano passado, fiquei em dúvida sobre tirar ou não uma foto com a Carrie Fisher, e decidi na última hora! Mal sabia eu que aquela seria uma de suas últimas aparições oficiais...
8) Procure hospedar-se perto do evento. Você vai estar com mochila, sacolas, prints e tudo mais. Que tal sair da feira na hora do almoço, andar no máximo dez minutos, deixar a carga de brindes e quadrinhos já assinados no quarto do hotel e voltar mais leve para o evento? Ficar perto ajuda muito, acredite. E diminui também a ansiedade com o trânsito de Nova York.
Tive a sorte de achar um hotel com preço razoável a menos de 500 metros do espaço onde ocorre a NYCC.
9) Revise a agenda do evento e das editoras um dia antes de viajar. Infelizmente, há cancelamentos de artistas e de sessões. Por isso, é importante não ocupar espaço na sua agenda ou na sua mochila com coisas que não vão mais acontecer. E, às vezes, aparecem surpresas de última hora também, como aquele artista legal de HQ que ganha uma mesa no Artist’s Alley.
Foi assim que fiquei sabendo que Gerry Conway, escritor clássico da Marvel e da DC, estaria no evento, e pude pegar, no dia da viagem, uma HQ em minha coleção para ele assinar.
10) Se puder, programe suas compras. E não precisa levar tudo de casa. Há dezenas de estandes vendendo quadrinhos novos e antigos na área de exposição, e, pesquisando, você acha boas edições a partir de 1 dólar. Sabe aquela capa de X-Men # 14, da Abril, de 1989, com o Visão lutando contra o Colossus? Pois é, ela foi retirada de X-Men # 191, a original dos EUA. Essa lindeza poderia ser adquirida por alguns dólares e levada ao Artist’s Alley para uma assinatura do Chris Claremont.
Portanto, não queira levar tudo do Brasil. Você vai ter chance de encontrar edições boas e baratas por lá e pegar uma assinatura de um grande artista!
É isso. E foi animal. Minha contabilidade final fechou com quase 100 HQs na mala, dentre edições compradas e ganhas, e mais de 50 artistas com quem autografei algo, tirei foto e comprei revistas ou prints. Ir à NYCC é uma experiência única para qualquer fã de quadrinhos, e apresenta a você um “Universo HQ” como poucos eventos no mundo. Então, que tal se programar, guardar uma grana e tentar ir na feira, daqui a um ou dois anos? A gente possivelmente se encontrará por lá.
Marcelo Bouhid coleciona HQs desde 1986, quando ganhou de seu pai a revista Superamigos # 15, da Abril. Engenheiro com pós-graduação em marketing, trabalha atualmente em marketing e é um dos sócios do Social Comics, a maior plataforma de streaming de quadrinhos do Brasil.