Valeu a pena continuar sonhando
Sandman: Endless Nights, uma das obras mais aguardadas deste ano, foi lançado no final de setembro nos Estados Unidos, pela DC Comics, com grande estardalhaço. Afinal, estreou na 20ª posição da lista de best-sellers do jornal New York Times. Em novembro, a obra deve chegar ao Brasil, publicada pela Conrad Editora, com o título Sandman: Noites Sem Fim.
A obra foi feita para saciar a vontade de Neil Gaiman de trabalhar com alguns renomados artistas e para esclarecer alguns pontos obscuros da "mitologia" de Sandman. Além disso, acabou servindo para celebrar os 10 anos do selo Vertigo.
São sete histórias, todas escritas por Gaiman e ilustradas por algumas das maiores "feras" dos quadrinhos. Vamos a elas:
Paul Craig Russell ficou com a primeira, intitulada Morte e Veneza, que, originalmente, seria feita por Moebius (imagine!), mas o francês não pôde aceitar, por estar doente à época.
A arte maravilhosa de Russell (com quem Gaiman já havia trabalhado em Ramadan, o quarto capítulo da saga Espelhos Distantes, publicada aqui em Sandman # 50) encaixa-se perfeitamente nesta história, cujo título faz uma alusão ao clássico da literatura Morte em Veneza, de Thomas Mann.
Com dois momentos cronológicos distintos, a trama conta, ao mesmo tempo, de um homem que conheceu a Morte; e de uma ilha veneziana onde o dia é eterno e todos os excessos são permitidos a seus decadentes habitantes. Gaiman, bem ao seu estilo, une ambas as histórias com perfeição e fecha um circulo interessante.
O que eu experimentei de Desejo, a segunda história, foi desenhada por Milo Manara, um artista com quem Gaiman, em sua entrevista para o Universo HQ, em 2001, mencionou que adoraria trabalhar.
Manara faz um relato histórico que fala essencialmente da relação e da importância que o desejo tem nas nossas vidas.
A arte está belíssima e a história é boa, mas quem ansiava demais por esta parceria pode ficar com aquela sensação de "eu queria ver mais". Afinal, Manara tem duas obras-primas, que são históricas, junto com Hugo Pratt (El Gaucho e Verão Índio) e é considerado o "papa" do quadrinho erótico mundial.
Numa história sobre a (o) Desejo, desenhada por Milo Manara, há um certo desapontamento que a ousadia, no que se refere ao erotismo, tenha sido pequena, com algumas cenas muito discretas. Paira a dúvida se Gaiman se conteve para escrever algo que não fosse vetado pela DC.
Segundo a introdução do álbum, assinada pelo roteirista, a história foi inspirada por uma anedota histórica de George McDonald Fraser.
A terceira, e talvez a melhor história, chamada O Coração de uma Estrela ficou a cargo de Miguelanxo Prado. O artista galego dá um show de arte, numa ótima trama, que esclarece alguns pontos obscuros da família dos Perpétuos.
Nestas páginas, vemos Sandman e toda a sua família. Estamos no início dos tempos, antes da briga do Mestre dos Sonhos com sua irmã(o) Desejo, quando Delirium ainda era Deleite. De quebra, Gaiman ainda "amarra" a história com a origem dos Lanternas Verdes e do planeta Krypton, mas é melhor nem mencionar estas coisas para não estragar o prazer de nenhum leitor.
Os Quinze Retratos de Desespero é uma viagem vertiginosa pelo trabalho gráfico de dois grandes artistas: o ilustrador Barron Storey (arte) e Dave McKean (design).
Imagine-se visitando uma galeria de artes onde existem quinze trabalhos integrando artes visuais e narrativa, cujo único tema é o desespero; e com a disposição visual planejada por Mckean. O resultado é estranho e forte; e chega incomodar em alguns momentos. Alguns podem estranhar os textos de Gaiman, mas ele nitidamente "vestiu a pele" da personagem Desespero. Por isso, o resultado é altamente justificável.
Bill Sienkiewicz deve ter ficado muito feliz quando foi convidado para fazer a história da Delirium. Afinal, seu trabalho muitas vezes parece um delírio gráfico.
Em Adentrando, Daniel (o filho de Sandman, que herdou o manto de Mestre dos Sonhos) e Barnabás (o cão que Delirium ganhou de seu irmão Destruição) reúnem alguns loucos de uma cidade para um trabalho perigoso.
A trama é um pouco confusa (é até irônico dizer isso de uma história sobre Delirium) e demora a ser esclarecida. No entanto, novamente, é nítida a preocupação de Gaiman em "se transformar" na personagem, para deixar cada palavra com sua tresloucada assinatura. Visualmente, trata-se de um espetáculo à parte.
Neil Gaiman escreveu Na Península, a trama de Destruição, como uma homenagem ao falecido autor R. A. Lafferty, que tinha um conceito para uma história que nunca conseguiu desenvolver e, numa entrevista, o expôs para que outras pessoas tentassem. Foi o que o "pai" de Sandman fez. O resultado foi belamente desenhado por Glenn Fabry.
Na península de San Raphael, uma equipe arqueológica descobre algo que pode mudar o destino da humanidade e acaba se encontrando com Delirium e Destruição.
De acordo com Gaiman, esta é a única história do álbum que deve ser lida numa ordem, ou seja, após a história da Delirium.
Para finalizar, Destino é interpretado pelo talentosíssimo Frank Quitely. Noites Sem Fim é uma história mais curta que as demais, e serve como uma espécie de epílogo para o álbum, esclarecendo alguns pontos sobre o mais misteriosos dos Perpétuos.
O resultado geral de Sandman: Noites Sem Fim é ótimo, mesmo que exista a sensação de que poderia ser ainda melhor. Fica nítido, por exemplo, que Gaiman é sempre mais brilhante em histórias de maior fôlego. Mas esta obra é algo absolutamente imperdível para os fãs de Sandman.
Na introdução, Neil Gaiman afirma que escrever este álbum foi como "voltar para casa". Para os leitores, a sensação é mais ou menos a mesma. Afinal, depois de tantos anos de espera por novas aventuras dos Perpétuos, parece que Sandman: Noites Sem Fim é a prova de que sonhar vale a pena!
Sérgio Codespoti e Sidney Gusman, possivelmente, foram os primeiros brasileiros a ler Sandman: Noites Sem Fim (ainda em fotocópias), pois fizeram a tradução e preparação do texto do álbum, respectivamente, para a Conrad, antes mesmo do lançamento nos Estados Unidos. Esta matéria não foi ao ar na época, porque, apesar da vontade de dar um "furo" mundial, ambos prezam demais algo chamado ética; e não seria correto beneficiar o UHQ, fazendo uso de informações que obtiveram em trabalhos pessoais.
Codespoti foi colaborador da revista Sandman, quando de sua publicação na Editora Globo, para a qual inclusive desenhou um pin-up na edição especial Orpheus.
Gusman foi redator da Editora Globo durante a publicação de Sandman, assinando várias matérias na seção HQ Press; e até maio de 2003 era editor executivo da Conrad.
Ambos se encontraram com pessoalmente com Neil Gaiman duas vezes. Na versão traduzida e preparada para a Conrad, foi utilizada a maioria dos padrões publicados originalmente no Sandman da Editora Globo.