Zé Carioca: uma aventura editorial no Brasil
A trajetória do simpático e malandro papagaio da Disney no mercado brasileiro de quadrinhos foi cheia de percalços que poucos leitores conhecem
Por Marcus
Ramone
Mundialmente
famoso após protagonizar os filmes Alô, amigos! (Saludos amigos,
no original), de 1943, e Você já foi à Bahia? (The Three Caballeros),
de 1945, que mesclavam desenhos com atores de carne e osso, Zé Carioca
foi criado no início da década de 1940, quando Walt Disney fez uma grande
turnê pela América Latina, tomando parte de uma campanha promovida pelos
Estados Unidos a fim de angariar apoio na II Guerra Mundial.
O cineasta (acompanhado de desenhistas de seu estúdio) concebeu personagens
para os países visitados, como o Gauchinho Voador, para a Argentina e
Panchito, para o México. Nosso adorável papagaio, batizado de Joe Carioca,
foi o representante do Brasil.
Um
personagem brasileiro criado por Walt Disney. Esse conceito agradava a
Editora Abril. E sua primeira aparição numa HQ brasileira aconteceu
em julho de 1950, na capa de Pato Donald # 1, desenhada pelo argentino
Luis Destuet. Coincidentemente, a revista que marcou a estréia da Abril
no mercado editorial.
Além disso, as histórias do papagaio vinham sendo regularmente publicadas
na revista do pato - Zé Carioca, Rei do Carnaval foi a primeira,
em fevereiro de 1951. Dois anos depois, Jorge Kato tornou-se o primeiro
brasileiro a desenhar o personagem, ilustrando uma capa de Pato Donald.
Em
suma, aquela figura de terno e gravata, chapéu de palha e guarda-chuva,
com jeitão de malandro inofensivo, já gozava há muito tempo da simpatia
do público brasileiro. Reza a lenda que ele foi inspirado em um passista
da Portela, numa apresentação que a escola de samba fez para Disney; entretanto,
foi um brasileiro, o ilustrador J. Carlos, que participou da escolha e
da criação junto ao grupo de desenhistas, fazendo o esboço de um papagaio
fumando charuto, protótipo do Zé Carioca finalizado pela equipe americana.
Assim, em 1961, Zé Carioca ganhava título próprio e chegava às bancas
do Brasil estampando na capa o número... 479! "A numeração da revista
do Zé Carioca se alternava com a do Pato Donald. Numa semana era o Donald
e na outra, o Zé, e a numeração era subseqüente", afirma Primaggio Mantovi,
ex-coordenador da Redação Disney da Editora Abril.
Após
um certo tempo, as revistas passaram a ter numeração própria, cada uma
partindo de onde estava. Entretanto, muitos colecionadores ainda hoje
procuram algo que jamais existiu: o número 1 da revista Zé Carioca.
Mas a verdade é que, quando Zé Carioca estreou sua HQ no Brasil, não havia
histórias suficientes para sustentar o título em banca. O personagem fora
publicado nos Estados Unidos por pouco tempo, em tiras e tablóides dominicais,
e a continuidade da publicação no Brasil ficaria ameaçada cedo ou tarde.
A Editora Abril não tinha intenção de cancelar a revista. Então,
em meados dos anos 1960, quando não havia mais material para ser publicado,
a saída encontrada foi algo grotesco: adaptar histórias do Mickey e do
Pato Donald.
Dessa
forma, os desenhistas da Abril substituíam os dois personagens
pelo Zé Carioca, o que explica as inusitadas "parcerias" entre ele e Pateta
em aventuras detetivescas, nas quais originalmente atuava o Mickey.
Também foi assim que surgiram Zico e Zeca (sobrinhos do Zé), que substituíam
Huguinho, Zezinho e Luizinho. Notadamente, sobrava um espaço nos quadrinhos
em que deveria estar o "terceiro" sobrinho.
Isso acabou fragmentando o Zé Carioca em várias personalidades, pois ele
se comportava sempre de um modo diferente de seu conceito original, à
mercê das situações às quais se adaptava em histórias que não eram suas.
Essa, digamos, aberração editorial permaneceu assim por um certo tempo,
até que as histórias passaram a ser totalmente feitas no Brasil.
Reformulação
"Quando
entrei na equipe - justamente para produzir o material que faltava -,
começamos a desenvolver desenhistas e roteiristas para dar cobertura à
revista do Zé Carioca. Acho que, quando não se sabe que caminho tomar,
o melhor é voltar às origens. Se Disney fez assim, é porque era bom. Vestimos
o Zé com a roupa original (mais tarde ele foi modificado de novo), e ele
voltou a ser um malandro... politicamente incorreto", conta Primaggio.
"Daí, devido à possibilidade de exportar suas histórias, tiramos ele do
morro e lhe demos uma casa do BNH (nota do UHQ: Banco
Nacional de Habitação, que financia a compra de casas próprias)".
Foi então que ele passou a morar na fictícia Vila Xurupita, localizada
no subúrbio do Rio de Janeiro.
Os personagens coadjuvantes criados nos Estados Unidos, Rosinha e seu
pai, o milionário Rocha Vaz (que estrearam no Brasil na revista Pato
Donald # 440), passaram a ter participação mais efetiva. Outros surgiram
e tornaram-se grandes parceiros do papagaio malandro (como Pedrão e Afonsinho)
ou inimigos (Zé Galo, cuja estréia se deu no ano de 1982, em Zé Carioca
# 1635).
Nasceu
também a Anacozeca (Associação Nacional dos Cobradores do Zé
Carioca), uma grande "sacada" do roteirista Paulo Paiva, que estreou
em 1976, com desenhos de Renato Canini
(premiado em 2002 como Grande Mestre da HQ Nacional, pelo Troféu
HQ Mix; e que teve as clássicas tiras do seu personagem Tibica
publicadas aqui no UHQ em 2001).
As histórias ficaram, então, bem "abrasileiradas". Cada vez mais eram
usados temas de nosso País. O Cristo Redentor, o Pão-de-Açúcar, as paisagens
do Rio de Janeiro eram recorrentes nas aventuras. Até mesmo um time de
futebol (querem algo mais brasileiro que isso?) foi criado, o Vila
Xurupita Futebol Clube, cuja sala de troféus não tem nada além de
teias de aranha.
O resultado dessa mudança foi que a revista passou a vender mais que a
do Pato Donald, até então a menina dos olhos da linha Disney na
Editora Abril.
Até
os anos 90, novos personagens não pararam de surgir, enriquecendo ainda
mais esse vasto universo de malandragens, calotes e vagabundagens: os
primos Zé Paulista, Zé Baiano, Zé Pampeiro, Zé Queijinho e Zé Jandaia;
Átila, o cachorro de Rosinha; Paladino Mascarado (alter-ego de Zeca),
Morcego Verde (identidade secreta tão heróica quanto divertida do Zé Carioca)
e outros de menor ou maior aceitação no coração dos leitores.
Nessa fase do personagem, mereceram destaque os quadrinhistas Ivan Saidenberg
e Renato Canini, que "moldaram" o caráter malandro do Zé Carioca
e criou diversos elementos e personagens de suas aventuras, como sua moradia
no morro, o time de futebol, o Morcego Verde, a Vila Xurupita, Zé Paulista,
Zé Baiano, Zé Pampeiro, Zé Queijinho, Zé Jandaia, Pedrão, Afonsinho, Zé
Galo e outros.
Anos 90
Uma nova onda revisionista atingiu a revista na década de 90. E, apesar
do que se poderia imaginar, agradou bastante aos leitores. A Anacozeca
não mais existia, fora há anos dissolvida quando Zé Carioca descobriu
que seu pretenso sogro, Rocha Vaz, era o criador e financiador da entidade.
O
visual dos personagens se adaptou aos novos tempos: roupas coloridas e
esportivas, que nunca se repetiam (até que encontraram o modelo que se
tornou oficial). Ninguém andava mais descalço e passaram a usar tênis
da moda... Nada disso, porém, interferiu na qualidade da revista, que
chegou a publicar apenas histórias do papagaio, teve o número de páginas
aumentado e, por uns breves meses, até melhorou o papel e a impressão.
Preguiçoso. Dorminhoco. Folgado. Trambiqueiro. Aproveitador. Malandro.
Caloteiro. Zé Carioca permaneceu o mesmo, mas as suas histórias ganharam
um estilo mais dinâmico e envolvente, cujos maestros foram os roteiristas
Genival de Souza, Gerson Teixeira e Arthur Faria Júnior;
e os desenhistas Rogério Soud, Luiz Podavin, Aluir Amâncio, Gustavo Machado
e Paulo Borges, só para citar alguns nomes.
O impagável Morcego Verde também foi reformulado, agora com um visual
mais sombrio, feito um Batman de penas. Mas ainda assim continuava o mesmo
trapalhão, e tentando convencer a si próprio de que ninguém conhecia sua
identidade secreta. Outra hilária inovação foi o "efeito" da capa esvoaçando
ao sabor do vento, gerado pelo ventilador que o inseparável amigo Nestor
carregava acompanhando o pretenso herói. Pouco depois, esse detalhe foi
abolido das aventuras.
A primeira graphic novel
Apesar de suas diversas edições especiais, almanaques e minisséries durante
os mais de 40 anos de vida editorial no Brasil, Zé Carioca jamais havia
ganhado uma graphic novel, ao contrário de outros dos principais
personagens Disney.
Entretanto,
em abril de 2000, a espera teve um fim: chegou às bancas uma luxuosa edição
em formato magazine, com 84 páginas, intitulada Zé Carioca - Especial
Brasil 500 anos. Uma aventura inédita, dividida em sete capítulos
intercalados por textos didáticos sobre o Descobrimento.
Na história, Zé Carioca conta as diabruras de seu "tatatatataravô", José
Manuel dos Calotes, clandestino na esquadra de Cabral, que teria sido
o verdadeiro descobridor do Brasil e, pasme, o introdutor do futebol em
terras tupiniquins! Impossível não considerar essa HQ um clássico dos
quadrinhos nacionais.
Ainda em 2000, Zé Carioca reapareceu em escala mundial numa história de
Don Rosa - autor da Saga
do Tio Patinhas -, intitulada O retorno dos três cavaleiros,
que trouxe de volta o trio completado por Donald e Panchito. A aventura
foi publicada no Brasil em Zé Carioca # 2182.
Entretanto, numa aventura produzida em 1982 na revista mensal do personagem,
os três já haviam se reunido novamente para fazer uma viagem à Espanha
e assistir à Copa do Mundo... torcendo pelo Brasil!
Passando
por um "recesso", o estúdio de quadrinhos da Editora Abril está
com a produção parada. Na Holanda, onde o Zé também faz muito sucesso,
continuam publicando regularmente suas histórias. Não deixa de ser curioso
o interesse que o personagem desperta naquele país, considerando que isso
não acontece em nenhum outro lugar do mundo - além do Brasil, é claro.
Atualmente, o título quinzenal do Zé Carioca traz apenas republicações.
Com a revista já no número 2239 (setembro de 2003), ainda existem muitas
histórias a serem reapresentadas. Mas, o que uma imensa legião de fãs
deseja, mesmo, é a volta do "terror dos cobradores" em aventuras inéditas.
Há boatos de que isso possa acontecer no próximo ano. Vale a pena torcer
por isso!
Marcus Ramone é um fã inveterado de Zé Carioca, mas garante que
seus credores não precisam se preocupar com isso! Será?