Quadrinhos não são feitos para crianças?
Há pouco mais de oito anos, publiquei no Universo HQ um texto sobre um jornalista norte-americano que escrevera um instigante artigo cujas palavras haviam repercutido bastante entre os fãs de HQs nos Estados Unidos. Na matéria, ele afirmara que quadrinhos não são feitos para crianças.
Isso também repercutiu no Brasil, com blogs e fóruns de debates sobre quadrinhos levantando questões como "Isso se aplica em nosso país?", "Mas como dizer que quadrinhos de super-heróis são coisa de adulto, se a própria essência de histórias com superseres fantasiados é ingênua e infantil?" ou "Seria isso apenas uma fase?".
Passados quase dez anos, o que mudou, lá e aqui? Independentemente da resposta, o assunto ainda é interessante e merece uma nova rodada de debates. Eis o momento de revivê-lo.
Segue abaixo, na íntegra, o texto que escrevi em março de 2007.
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"São os adultos, e não as crianças, que ajudam o mercado de quadrinhos a sobreviver". Esse foi o título de uma matéria publicada no último dia 13 de março no site do jornal norte-americano The Detroit News. Segundo o artigo, a média de idade dos leitores de HQs nos Estados Unidos, que já era alta (18 anos) em 1989, hoje é ainda maior: 30 anos.
No texto são levantadas questões como a que indaga se casos semelhantes à da chocante cena de estupro em Crise de Identidade, minissérie protagonizada por heróis famosos como Batman, Mulher-Maravilha e Superman, são um reflexo do quanto os quadrinhos estão virando coisa para adulto ou se apenas representam a causa do afastamento das crianças dessa mídia.
A verdade é que, ao mesmo tempo em que estimulam a renovação de leitores com ações promocionais e de marketing direcionadas às crianças, Marvel e DC Comics - só para citar as gigantes do setor nos Estados Unidos - produzem revistas em quadrinhos que dificilmente serão digeridas por esse público.
Isso, é claro, se reflete no mercado de outras praças, como o Brasil, um dos países que mais consome gibis de super-heróis das duas maiores editoras norte-americanas e de outras mais que eventualmente têm alguns de seus títulos publicados por aqui. Quem imaginaria, até pelo menos os anos 1990, ler uma recomendação de faixa etária na capa de um gibi com as aventuras de Demolidor, Pantera Negra e Cavaleiro da Lua, como pode ser visto na recém-lançada Marvel Action (Panini)?
Editoras dos Estados Unidos também estão investindo pesadamente em graphic novels, que acompanhadas dos adjetivos "luxuosas", "caras" e "adultas" são garantias de sucesso, mesmo que nos atuais padrões, longe das marcas recordes de milhões de exemplares vendidos de uma única edição. Tanto que, em 2005 e no ano passado, esses álbuns especiais com a indicação "para leitores maduros" (mesmo que, de fato, o conteúdo de algumas obras permitisse uma "censura livre") estiveram no topo do ranking de vendas de revistas em quadrinhos naquele país e estão ditando uma nova tendência.
Os recentes cancelamentos de títulos da Disney nos Estados Unidos são apenas um pequeno capítulo dessa história que cada vez menos envolve as crianças em sua trama. Quem tiver a oportunidade de adquirir algumas edições atuais dos gibis norte-americanos da turma de Patópolis verá que as seções de cartas contêm exclusivamente mensagens de leitores adultos. O fato de, em sua imensa maioria, essas HQs serem apenas republicações de aventuras dos anos 1960 a 1980, não é mera coincidência.
Vale lembrar que a Disney também foi vítima de uma enxurrada de cancelamentos no Brasil e em Portugal, países em que os leitores desses quadrinhos, a exemplo dos Estados Unidos, são representados em grande parte por maiores de idade.
Dessa forma, as revistas em quadrinhos adultas - e as juvenis - de todos os gêneros estão preenchendo muito mais da metade do espaço nas bancas ou comics shops.
No Brasil, dentre os poucos títulos infantis que ainda sobrevivem, os da Turma da Mônica, sozinhos, detêm mais de 70% do mercado nesse segmento. E, embora exista uma renovação constante de crianças leitoras das histórias dos personagens de Mauricio de Sousa, metade do público desses gibis ainda é composto por adultos, segundo informações do próprio quadrinhista.
Coleções luxuosas, como Luluzinha, Recruta Zero, O Melhor da Disney - As Obras Completas de Carl Barks e Turma do Pererê, lançadas no Brasil com preço alto e apelo saudosista, e da mesma forma nos EUA com Calvin & Haroldo, Peanuts, Pimentinha e muitos outros, só corroboram o fato de que, por mais paradoxal que possa parecer, a maioria das publicações infantis está sendo produzida somente para o deleite dos adultos.
Seguindo esse raciocínio, o jornalista Mike Antonucci, autor da matéria do The Detroit News, afirmou categoricamente que a indústria dos quadrinhos está e continuará em declínio. E não é preciso entender isso como um caso restrito aos Estados Unidos. Se, amanhã, não houver adultos suficientes com um interesse mínimo por gibis (pois eles seriam as crianças de hoje que têm pouca afinidade com esse hobby), como essa indústria sobreviverá?
A resposta pode estar no velho clichê de que "só o tempo dirá".