Grilo, um importante momento dos quadrinhos no Brasil
Contracultura, moda psicodélica, ácido e Beatles são palavras que remetem diretamente a um importante momento cultural na história da humanidade. A década de 1960 rompeu paradigmas e influenciou toda uma geração, na música, no cinema e, como não poderia deixar de ser, nos quadrinhos.
A revista Grilo, da Espaço-Tempo Veículos de Comunicação Ltda., trazia reflexos desta época. Foi publicada entre 1971 e 1972, em 48 edições, a princípio semanais e, posteriormente, quinzenais. A tiragem por número era de 30 mil exemplares e boa parte do material nela encontrado surgiu justamente na década de 1960.
Grilo teve o grande mérito de apresentar, pela primeira vez no Brasil, diversos autores que marcaram época no universo dos quadrinhos.
O título era publicado no formato tablóide, com duas capas distintas e 16 páginas.
As duas capas eram por um motivo curioso: a revista chegava às bancas dobrada uma segunda vez (o que escondia a capa principal, sempre maior), ficando próxima do tamanho hoje convencionado como formato americano, tudo para facilitar sua exposição aos leitores.
A partir do número # 25, ela passou a sair em formato magazine. A mudança marcou também a ampliação dos títulos publicados na revista.
Do número 1 até o 24, o conteúdo era formado principalmente pela publicação de tiras. Confira:
Peanuts, por Charles M. Schulz - A turminha do Charlie Brown e o famoso cachorrinho Snoopy dispensam grandes apresentações;
Tumbleweeds, por Tom K. Ryan - Também conhecida como Kid Farofa. Heróis covardes e atrapalhados, apaches divertidos (quando não estúpidos), um bêbado impagável e outras figuras do Velho Oeste, em tiras engraçadas;
B.C. (a.C. em português), por Johnny Hart - A conhecida série dos homens pré-históricos, com problemas típicos dos nossos dias;
The Wizard of Id (O Mago de Id em português), por Brant Parker e Johnny Hart - O Reizinho querendo impor autoridade e nunca conseguindo, um mago e sua mulher mandona, o bobo da corte, o guerreiro preguiçoso, um prisioneiro há muito na masmorra e outros divertidos personagens, já publicados em diversos jornais;
Horace & Buggy, por Don Edwing e Paul Coker - Uma prova que o mundo dos insetos pode ser muito engraçado, quando não complicado;
Pogo, por Walt Kelly - Criado em 1948, trata de diversos animais em situações remetendo ao mundo de fábulas, com o autor refletindo sobre os valores da sociedade;
Luther, por Brumsic Brandon Jr. - Um garotinho negro e sua turminha de amigos;
Little No-No & Sniffy, por George Fett - O relacionamento entre pai e filho (cachorros) e muita confusão entre diversos animais;
Miss Peach, por Mell Lazarus - Um grupo de crianças vivendo a problemática dos adultos;
Valentina, por Guido Crepax - Uma grande estréia no número # 7 da revista. Pela primeira vez, a famosa criação do "papa" dos quadrinhos eróticos aparecia, com direito a uma introdução para o material que começava a ser publicado. Neste número, também teve inicio a seção de cartas;
Jules Feiffer - Espaço dedicado ao artista que iniciou carreira trabalhando com Will Eisner, em The Spirit. Com estilo próprio, faz críticas à sociedade em geral e à classe política.
Bristow, por Frank Dickens - Um homem filosofando em meio às minúcias do ambiente de trabalho;
Andy Capp, por Reg Smythe - Mais conhecido como Zé do Boné, esse malandro, que quer mais é ficar num boteco tomando umas, voltando quase sempre bêbado para casa, para desespero da mulher - e vivendo às custas dela, faz sucesso por aqui há tempos. Aliás, difícil não simpatizar com ele.
A segunda fase da revista começou a partir do número # 25 (dedicado exclusivamente a Charlie Brown e sua turma), com novo formato e mais páginas (36). Grilo apresentou novos personagens, e trouxe o underground americano ao Brasil.
Além das séries, diversas histórias foram publicadas. Essa mudança pode ser conferida no estilo das capas adotadas a partir de então, com cores fortes predominando.
E, falando em cores, o título, que era em preto-e-branco, passou a apresentar-se como "a cores" (nota do UHQ: o correto seria "em cores"), embora elas só existissem na capa e num pôster central. A seguir, o que foi apresentado nas edições:
Robert Crumb - A revista foi a primeira a publicar no Brasil histórias do famoso artista, considerado o maior nome do quadrinho underground americano. Crumb chegou no número # 26, com Whiteman, seguido por Mr. Natural e outros personagens e histórias;
Paulette, por Wolinski e G. Pichard - Uma deliciosa e voluptuosa garota que passa por grandes perigos após ser raptada, por ser herdeira de uma fortuna, em ritmo de art nouveau;
Wolinski - Um artista europeu que quebrou regras, com conteúdo sarcástico, principalmente erótico e também abordando outros assuntos;
Reiser (Jean-Marc Reiser) - Artista francês com charges e histórias de humor forte e, por vezes, cruel;
Willem (Bernard Willem Holtrop) - Outro quadrinhista da Europa, nascido na Holanda, com bom humor crítico e erótico;
Na Grilo # 27, a estréia de artistas nacionais. Começou com Cláudio Martins, de Minas Gerais, com a história SR. Outra mudança ocorreu neste número: as páginas internas, em vez do tom preto, passaram a ser impressas em azul. Nas edições seguintes, outras cores foram utilizadas.
A edição # 35 trouxe mais um aumento no número de páginas (56 páginas). E dois números depois, mais um salto: 64 páginas e a inclusão de fotonovelas de humor, a seção As Dicas do Professor Choron (criação de Wolinski), com pérolas ensinando, por exemplo, como transformar uma cueca velha em camiseta; e HQs completas. Seguem algumas:
Sonhos Cruzados, por Gore;
Os Herdeiros da Terra, por Gore;
O Karma de Gaargot, por Sérgio Macedo;
Casarão de Harvey, o Horrível, por Gore;
O Mensageiro, por Jim Osborne;
Bonnie & Clyde, por Guido Crepax;
Testicles o Tautologista, por Jaxon;
O Perdedor, por Jim Osborne;
O Segredo, por Jaxon;
Freak Brothers, por Gilbert Shelton;
As Aventuras de Zimmerman - Tony Hendra e Sean Kelly (roteiro) e Neal Adams (arte);
O Espírito, por Will Eisner;
A Queda da Casa de Usher, por Dino Battaglia;
Como Howie achou a saída no mundo real, por Gore;
Na Calada da Noite, por Jim Osborne;
As Aventuras do Super-Morto - Henry Beard e Dick Giordano (roteiro) e Neal Adams (arte);
Chapeuzinho Rasgado, por Max Bunker e Gianpaolo Chies;
Cacete em Quadrinhos, por Robert Williams;
Emma contra os Rebeldes, por Willem;
Perseguição, por Archie Goodwin e Alex Toth;
Conflito na Guerra, por Gore.
Boa parte das histórias acima é assinada pelo artista Gore, pseudônimo utilizado pelo hoje mundialmente conhecido Richard Corben, que tem desenhado várias HQs de super-heróis nos últimos tempos, como Cage, que foi publicada aqui em Marvel MAX, da Panini Comics.
Já a história O Karma de Gaargot traz o brasileiro Sérgio Macedo, que posteriormente iria trabalhar no exterior, na França, desenhando para a Métal Hurlant, Linus e para a Heavy Metal americana.
Algumas das HQs, como as desenhadas por Neal Adams, foram publicadas originalmente na famosa revista americana de humor National Lampoon.
Na edição # 39 houve mais uma estréia de peso, com Gilbert Shelton, criador dos Freak Brothers, na história Bem, eu não tenho ninguém. E, no número # 44, foi a vez de Don Martin, conhecido por seu trabalho na Mad.
Em relação às HQs publicadas, autores como o quadrinhista Jaxon (Jack Jaxon), Jim Osborne, Jim Franklim, Larry Welz e Robert Williams fazem parte da escola do underground americano. Inclusive alguns consideram Jaxon com o primeiro artista do gênero.
Merece destaque também A Queda da Casa de Usher, com belas ilustrações do grande artista italiano Dino Battaglia.
Na derradeira edição da Grilo, a número # 48, uma ótima entrevista com o saudoso Henfil.
Outro diferencial na trajetória da revista foi a publicação de contos curtos, geralmente de ficção e terror. Além disso, a partir da edição # 22, as seções Grilos e Super Grilos traziam informações sobre o que estava sendo publicado no exterior, os artistas, super-heróis, revistas estrangeiras, livros sobre quadrinhos e outros.
Algumas liberdades foram tomadas pelos editores. Por exemplo, a edição # 1 formava um pôster, na contracapa, com Lucy (de Snoopy) grávida, gritando "Você me paga, Charlie Brown!".
Já o segundo número tinha, também na contracapa, o mago de Wizard of Id conjurando um feitiço, e uma bela garota nua saindo do caldeirão.
Grilo também teve dois almanaques publicados:
Almanaque Grilo - Uma edição aumentada da revista, com HQs, tiras e textos sobre Feiffer, Crumb e Valentina;
Almanaque Underground - Diversas histórias completas de Crumb (inclusive Fritz the Cat), Richard Corben, Larry Welz, Gilbert Shelton e Jim Franklim.
Foram lançadas também três edições especiais: Valentina, por Crepax, e Paulette, por Wolinski e Pichard, como álbuns; e Mr. Natural, por Crumb, em formato pocket.
Embora alguns aspectos deixassem a desejar, como a tradução de algumas histórias ou impressão ruim neste ou naquele número, ainda assim, Grilo foi um grande passo, um diferencial em relação aos quadrinhos até então direcionados para o público jovem e adulto no Brasil. E virou referência e inspiração para inúmeras publicações posteriores.
Marcelo Naranjo gostaria de ter aproveitado os anos 1960, com aquela história toda de liberdade e mulheres sem roupa. Nós achamos que o cara anda tomando muito chá de cogumelo, mas... sem grilo!